Escrito em 1995
Que
obras são estas que são contempladas com a aura peculiar que se empresta à
palavra ARTE?
Que
homens foram estes que as criaram, e que significado tinha para eles e para seu
público a obra realizada? [1]
Ernst Kris
Nelson
Rodrigues, uma flor de obsessão,[2]
inaugurou o moderno teatro brasileiro. Ele foi uma das grandes expressões
culturais de nossa época. Sua produção é imensa, e inclui vários gêneros, como
as crônicas e folhetins que escreveu para os jornais,[3]
e os romances e peças teatrais. Ele trabalhou em importantes órgãos de
comunicação do país. E foi um dos primeiros jornalistas a marcar sua presença
na televisão brasileira. Seu trabalho, que se inicia com reportagens policiais
em 1925, atravessou diversos regimes
políticos, que vão do Estado Novo à ditadura militar, passando por breves
períodos de democracia liberal. Sofre a mais massacrante campanha que um
dramaturgo poderia suportar, sendo durante vinte anos considerado o único autor
obsceno do Brasil.[4]
Teve quatro peças interditadas, foi vaiado duas vezes no Municipal, e várias
vezes despertou tumultos na platéia. Sua vida foi marcada por diversas
tragédias. Viveu grandes paixões. Muitas vezes não correspondido, entregou-se a
profundas depressões. Entretanto toda esta intensidade parece ter fortalecido
sua obra. Pois foi desta matéria que Nelson construiu sua dramaturgia.
Nelson Rodrigues é reconhecido como um dos
nossos maiores autores, tendo inaugurado o moderno teatro brasileiro.[5]
Ele revolucionou não apenas a dramaturgia, como a própria encenação. Um autor
que dirigia seus atores a partir das rubricas,[6]
uma de suas marcas registradas. Através delas Nelson assumia o papel de
diretor: armava a cena, as marcações, as intenções emocionais e dramáticas dos
atores.
Sua
construção cênica é vibrante. Resgata a imagem e o movimento, deixados em
segundo plano pelo teatro do início do século. Abre-se a todas as técnicas
teatrais - desde o coral da tragédia grega até os palcos móveis, múltiplos.
Cores, sons, luzes. Não foi à toa que Ziembinsky pôde iluminar com tanto
talento a inauguração do atual Teatro
Nelson Rodrigues, tornando por vezes diáfano o Vestido de Noiva. Ele já tinha o brilho rodrigueano na marcação da
cena em planos e dimensões diferentes.
Podemos
dizer que Nelson, sem o menor pudor, quebrou com a linguagem teatral de sua
época, recorrendo aos flash-backs
cinematográficos, ao plano do maravilhoso e do fantástico,[7]
às intensidades sonoras utilizadas pelo rádio. Enfim, ele imprimiu uma grande
transformação no teatro brasileiro, através de uma multiplicidade de recursos
que nos lembra o teatro empesteado de Artaud.[8]
O teatro de Nelson, sem dúvida, é cheio de peste.
O impacto
de suas peças em várias ocasiões provocou revoltas. A radical falta de moral de
alguns de seus personagens ofendeu inúmeras vezes a sensibilidade da família
burguesa brasileira. A obsessão exasperada pelo sexo, levado muitas vezes ao
paroxismo do incesto, fez com que o teatro de Nelson fosse interditado pela
censura, vaiado em palco aberto,
criticado pelos jornais, incompreendido por muitos de nossos
intelectuais. [9]
Interessante
esta reação, na medida em que Nelson Rodrigues é um dos autores teatrais
que melhor retrata o espírito e a ideologia da classe média das grandes cidades
brasileiras. Por que esta resistência tão intensa à sua dramaturgia? Por que
ele comoveu de tal forma o Brasil? Onde seus textos violentam o cidadão
pacatamente instalado no confortável equilíbrio de sua família? Para tentar
responder a um tal questionamento seria necessário um mergulho profundo na obra
de Nelson.
Porém
tomar a totalidade de sua produção estava fora de nosso atual propósito. Foi
necessário, então, fazermos um recorte. Seria preciso escolher um texto através
do qual iniciar nossa investigação. Que
critério utilizar para selecionar um segmento significativo da obra de
Nelson? Para solucionar este problema, resolvemos partir de um dos pressupostos
psicanalíticos. Ou seja, da suposição de que existe uma intensa relação entre o
artista e sua obra. Assim, poderíamos
limitar nossa seleção, acreditando que a leitura e interpretação de um único
texto permitiria trazer alguns elementos de compreensão, os quais poderiam ser
aplicados a outras produções de Nelson Rodrigues.
Inicialmente
pensamos em utilizar as crônicas jornalísticas. Porém surgiu um problema: as
crônicas não se esgotam em si. Seus motes se
apresentam em
seqüências. Ou seja, Nelson desenvolvia seus temas através de
vários dias sucessivos. O livro O Óbvio
Ululante exemplifica esta elaboração à intervalos. Justificando a seleção
cronológica das Confissões publicadas
em O Globo, seu organizador Ruy Castro (1993),
comenta na breve introdução, feita ao livro:
A obediência à
cronologia era indispensável porque não raro Nelson martelava o mesmo assunto
em crônicas seguidas, até esgotá-lo. [10]
Nelson
explorava um mesmo assunto, desfiando crônicas diferentes. Mas estas crônicas
não foram publicadas integralmente. Houve uma seleção prévia, conforme nos
informa o organizador do livro. E nesta seleção algumas foram eliminadas, por
terem sido consideradas redundantes ou repetitivas. Mas num estudo como o que
pretendíamos fazer este não seria o problema. Ao contrário: através das
repetições poderíamos ver as diferenças se cristalizando em torno de posições
mais definidas.
Por isto,
abandonamos esta primeira idéia, para escolher uma obra cujo recorte - ou
unidade -, tivesse sido realizado pelo próprio Nelson. Na verdade este abandono
dos textos jornalísticos foi feito sem muitas tristezas: suas crônicas -
folhetins, à parte - nem sempre podiam
apresentar a dramaticidade das peças teatrais. Levando-se em conta a totalidade
de suas criações literárias, Nelson se destaca, sem dúvida, a partir de sua
dramaturgia. Imaginamos até que tenha sido sua paixão verdadeira, visto a
intensidade com a qual ele se entregava a elaborar suas peças, a conseguir suas
montagens e, principalmente, a elogiá-las cabotinamente, através de seus vários
pseudônimos. Chega a ser comovente o esforço de Nelson no sentido de se
preservar como autor teatral, e que resultou nos pseudônimos de Suzana Flag e de Myrna, suas máscaras femininas. Para prestigiar este desejo de
Nelson, nos decidimos por seu teatro. Como objeto de nosso estudo escolhemos Álbum de Família. Por ela ser uma das
mais expressivas peças dentro do teatro de Nelson Rodrigues. E pela
singularidade de sua proibição durante mais de 20 anos.[11]
Além disto, era a peça predileta de Nelson, que certa vez confidenciou a Sábato
Magaldi (1987) sua secreta preferência pelas peças míticas, sobretudo por Álbum de Família.
[1]
Ernst Kris, Psicanálise da Arte, p. 11
[2] Nelson
escreveu em uma de suas crônicas: “Se eu
fosse mais importante, e entrasse numa enciclopédia, gostaria que fosse assim,
mais ou menos assim - NELSON RODRIGUES - Autor Brasileiro, também conhecido por
flor de obssessão, etc. etc”, Nelson
Rodrigues, O Reacionário, memórias e
confissões, p. 359.
[3]
Com o pseudônimo de Suzana Flag e de Myrna.
[4]
São inúmeras as opiniões contrárias a Nelson Rodrigues, que podem ser
encontradas ao longo de sua carreira. Como exemplo, citamos a opinião que Gracinda Freire declarou a Fatos e Fotos, em 1965: “Li três páginas de Toda Nudez Será Castigada, e o personagem principal me repugnou.
Nelson Rodrigues é o maior comerciante do teatro. É o dono absoluto da
indústria do sensacionalismo”.
[5]
Ver a este propósito o livro de Sábato
Magaldi, Nelson Rodrigues:
Dramaturgia e Encenações.
[6]
Este termo se refere às orientações marcadas antes do início de suas falas.
[7]
Embora sabendo que tais termos apresentam definições mais precisas, pensamos
que eles poderiam ser aplicados a algumas peças de Nelson. Em Dorotéia, uma das personagens é a
misteriosa Das Dores, que nasceu
morta, mas que pensa que é viva. Já Valsa nº. 6 traz para a cena a figura de
uma encantadora menina que, ao morrer, tenta recordar-se do que aconteceu; o
aparecimento de suas memórias delirantes, imprime um caráter de maravilhoso, sem no entanto empobrecer a
dimensão trágica da peça. Vestido de
Noiva já havia demarcado um interesse iniciante de Nelson pelo fantástico, traduzido nas alucinações e
delírios de Alaíde. Como o próprio Nelson vai afirmar, numa entrevista que dá
ao O Cruzeiro, três meses depois da
estréia, referindo-se a Alaíde, que
está morrendo: “Sua memória entra em
franca dissolução, perde qualquer harmonia, digo mais, qualquer ordem
cronológica. Tudo se superpõe monstruosamente: fatos, imagens e sonhos. Não há
mais noção de tempo: Vestido de Noiva
está, então, fora do tempo” (Ruy
Castro, O Anjo Pornográfico, p.
178). Na peça entramos em outras dimensões temporais e espaciais. Esta atração
pelo fantástico vai reaparecer em outros momentos. Lembramos que Dorotéia
poderia ter inaugurado o teatro do absurdo,
caso Nelson Rodrigues não fosse um
brasileiro.
[8]
Em O teatro e seu duplo, Artaud
(1984) abre seu livro com um artigo
entitulado O teatro e a peste, onde
ele registra os parâmetros de seu teatro. Ele quer um teatro cruel, rigoroso,
porém extremamente plástico e belo, de forma a
contaminar a platéia, como uma peste.
[9]
Ver a este respeito a análise realizada por Pompeu de Souza, em Teatro Quase Completo, vol 1.
[10]
Ruy Castro,
in: Crônicas, coletânea de crônicas de
Nelson Rodrigues.