Vida e Obra de Nelson Rodrigues
Elza Rocha Pinto
Em O Projeto Inconsciente de Machado de Assis,
M. L. Assumpção lembra que um escritor vai “revivendo todas as figuras e
lugares da infância, todas as implicações que estes trazem” através da
elaboração de seus romances; e é nesta medida, diz a autora, que vai ocorrer
uma “interrelação entre a dinâmica do espaço e do tempo vivido. Certa vez
Nelson Rodrigues afirmou em relação a Vestido
de Noiva:
...eu
estaria fazendo, ali, uma imitação da vida. Era Roberto que morria outra vez,
assassinado outra vez. E confesso, - o meu teatro não seria como é, se não
tivesse chorado, até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto. [1]
No
segundo capítulo desta dissertação, procuramos deixar claro como o estudo da
biografia do autor se torna importante, quando queremos ampliar a dimensão das
interpretações de uma obra de arte, de um texto literário, ou de uma produção
cinematográfica. O autor e o diretor, direta ou indiretamente, estão se
confessando, utilizando para tanto recursos os mais variados. Quase sempre
tentando camuflar alguma coisa. Um livro, um filme, uma fotografia são paradoxos que revelam e ocultam ao mesmo
tempo. Metáfora do sonho, o enredo pode misturar ficção com realidade,
produzindo o pensamento manifesto de um conteúdo latente, que caberia ao leitor
interpretar. Despistamentos, camuflagens, máscaras são recursos que criam
obscuridades, sombras e lacunas, disfarçando a verdade do artista.
Nelson
Rodrigues, como jornalista, lidava quotidianamente com a realidade brasileira,
através das notícias que chegavam às redações de seu jornal. Mas certamente
quando escrevia, ele não poderia se restringir apenas a reproduzir esta
realidade. Como um pintor ao corrigir nuances em sua paisagem, o jornalista
também faz seus retoques na crua fotografia. Kris (1950), por saber disto,
afirmou que os noticiários de jornais
com freqüência tratavam “de acontecimentos semelhantes aos temas genéricos da
mitologia e da fantasia individual da
mesma forma que as grandes obras literárias”.[2] Isto é ainda mais
verdadeiro no que se refere a Nelson Rodrigues. Criado por um pai que
acreditava na produção das notícias, Nelson impregnou este lema em seu estilo:
algumas de suas crônicas jornalísticas são misturas indisfarçadas da ficção com
a realidades. A ponto de alguns de seus personagens
reclamarem.[3]
Personagens reais, vida real, mas sempre retocada pelos conteúdos da
subjetividade de Nelson. Em seu folhetim
Asfalto Selvagem, a vida de Engraçadinha se misturava com pormenores
do quotidiano dos amigos e inimigos de Nelson: Otto Lara Resende, Hélio
Pelegrino, J. C. Tinhorão, e outros tantos se imortalizaram nas aventuras da
heroína .[4]
O autor não consegue se libertar de seu mundo
interior. Fato reconhecido não apenas pela psicanálise, mas também pelos
próprios artistas. Por isto foi muito grande a tentação de direcionar esta
dissertação para uma análise do autor, tentando apreendê-lo a partir de sua
obra. Existem diversos trabalhos analíticos deste tipo, no domínio da
literatura. Mas este não era o nosso propósito. Para realizar tal objetivo, sem
cair em radicalismos ou incorrer em erros grosseiros, seria necessário
desenvolver um trabalho bem mais detalhado.
Poderíamos,
é claro, partir de um suposto corte diacrônico. Em avaliação diagnóstica
tomamos uma pequena amostra do comportamento do sujeito (sua realização nos
testes projetivos, e as observações das entrevistas) para fazer inferências
sobre sua vida passada, presente, e futura.[5] Porém, para se chegar a
uma adequada conclusão diagnóstica, sempre é necessário examinar várias
situações.[6] Da mesma forma, para
desenvolvermos uma tal interpretação sincrônica de Nelson Rodrigues, partindo
da produção de Álbum de Família,
seria necessário uma pesquisa muito mais ampla do que aquela que nos
interessava fazer nesta dissertação. Caberia levar em consideração vários
outras realizações de Nelson, crônicas, reportagens, folhetins, contemporâneos
de Álbum de Família. E o que
queremos, neste momento, é centralizar nossa análise apenas nesta peça.
Tendo
em conta que a obra é efeito de uma comunicação interativa entre a
subjetividade e o social, temos intenção de apresentar o contexto que a
sociedade brasileira oferecia para Nelson naquela ocasião. Através das
expectativas, anseios, temores, conflitos e desejos de seus personagens, Nelson
falava não só dele e de sua família, mas de toda uma época.
Este
relato sobre a vida de Nelson pretende sublinhar as vivências individuais e as
influências familiares que podem ter levado Nelson a escrever Álbum de Família. Tomamos, por vezes,
trechos da autobiografia do autor, relatada fragmentariamente em suas memórias
e confissões; outras vezes nos remetemos às lembranças de sua irmã Stella.[7] Porém a base desta
apresentação está centrada no livro de Ruy Castro (1992), o qual foi para nós
uma agradável surpresa. Pois ele oferece muito mais do que uma pálida
biografia. Além da paixão pelo autor, Ruy Castro tem a paixão do jornalista. De
uma forma equivalente a Samuel Wainer,[8] o autor nos faz percorrer
as redações dos principais jornais e revistas brasileiras nestas últimas
décadas. E assim, através dos noticiários e editoriais, vamos entrando em contato com toda uma época. Suas
informações são cuidadosamente datadas, e bastante minuciosas. Acho que podemos
afirmar, sem grandes riscos de erro, que Ruy Castro se tornou, com O Anjo Pornográfico, o principal
biógrafo de Nelson Rodrigues. Outros autores escreveram sobre Nelson,[9] porém nenhum destes
trabalhos foi feito a partir de uma tão extensa pesquisa quanto o livro de Ruy
Castro.[10] Tendo acesso a inúmeros
documentos e a diversas pessoas que
conviveram com Nelson, ele nos forneceu um material além daquilo que
procurávamos. Seu livro acabou oferecendo um
excelente panorama cultural e político do Brasil, do início do século
até 1980.
A vida
de Nelson foi marcada por várias desgraças. As diversas prisões do pai, sempre
envolvido em atentados à lei da imprensa; o absurdo assassinato de seu irmão
Roberto, na redação de Crítica; a
morte do pai, desgostoso com a perda do filho; as privações financeiras e o
desemprego dos Rodrigues; o prolongado período de miséria e fome; a doença com
a qual teve que conviver durante tanto tempo; a morte de Joffre, seu irmão predileto,
contaminado por sua tuberculose; a prematura morte de Mário Filho; o trágico
desaparecimento de seu irmão Paulinho e toda sua família, poucos meses depois,
vítimas de um desabamento de prédios em Laranjeiras, em noite de temporal; o
suicídio da cunhada um ano após a morte de Mário Filho; a prisão e as torturas
de seu filho Nelsinho; e, como se não fosse suficiente, a tragédia de Daniela,
a filhinha de Nelson. Diante de todos
estes trágicos acontecimentos é difícil termos uma idéia do intenso sofrimento
de Nelson Rodrigues. No entanto, a primeira tragédia, sem dúvida, deixou uma
marca indelével, pois Nelson estava presente quando seu irmão foi assassinado:
Nunca mais me
libertei de seu grito. Foi o espanto de ver e de ouvir, foi esse espanto que os
outros não sentiram na carne ou na alma. E só eu, um dia, hei de morrer
abraçado ao grito de meu irmão, Roberto Rodrigues. [11]
Por tudo isto é que o próprio
Nelson Rodrigues dizia que se não fosse pelo seu ofício de escrever, ele teria enlouquecido. Como nosso
interesse se centraliza mais no período que vai até o surgimento de Álbum de Família,[12] vamos nos limitar a
configurar os eventos até esta época, delimitando ainda a intervenção da
censura na obra de Nelson Rodrigues. E é isto que passamos a apresentar agora.
Porém organizamos uma cronologia, que pode ser encontrada no Anexo II, onde oferecemos a orgânica de
todos os eventos significativos ocorridos na vida de Nelson Rodrigues, desde
seu nascimento até sua morte, em 1980.
[1] Nelson Rodrigues, Memórias de Nelson
Rodrigues, p. 128.
[2] O grifo é nosso. Ernst Kris, Psicanálise da Arte, p.ag. 26
[3] Nelson que tinha uma
admiração imensa por Otto Lara Resende,
vivia citando o escritor em suas crônicas. Otto se queixava., reclamando. Mas Nelson Rodrigues continuava, apoiado porpelas
observaões de Héhlio
Pelegrino, que observava dizia que Otto no fundo gostava de tudo aquilo.
Mas o fato é que na opinião de Otto, Nelson extrapolou, quando aliou chegou a aliar sseu nome ao título de uma de suas peças, Otto Lara Resende ou BBonitinha,
mas Ordinária, ou Otto Lara Resende”.. Para
mostrar sua indignação, Otto nem foi ver
a peça, que ficou meses em cartaz, deixando Nelson Rodrigues bastante sentido..
[4] Na segunda parte de Asfalto Selvagem,
Nelson começa a misturar fantasia e realidade. Ou seja, mistura seus
personagens de ficção com figuras reais. Em geral, seus amigos jornalistas, que
apareciam no folhetim com seus próprios nomes, participando da história: Otto Llara Resende, Fernando Sabino, Paulo
Mendes Campos, Wilson Figueiredo,
Carlinhos de Oliveira, Raimundo Pessoa, Helio Pelegrino, Hermano
Alves, Paulo Reis, eEtc. O
fotógrafo Amado Ribeiro era descrito
em Asfalto Selvagem como um repóorter
policial bem cafajeste, capaz de subornar suspeitos, inventar culpados, de
fazer chantagens com mulher de vítima, etc. Tudo isto para vender jornal. Amado Ribeiro em vez de se aborrecer,
sentia-se orgulhoso. Um soneto erótico de Otto
Lara Resende poderia ser usado pelo Ddoutor Odorico
como forma de seduzir Engraçadinha. E
assim por diante; um ginecologista, praticante de abortos ganhava o nome de Alceu (em referencia a Alceu do Amoroso Lima). Políticos como Juscelino, Carlos Lacerda, Juraci
Magalhães, Jânio Quadros, Israel Pinheiro, Lourival Fontes, Gilberto Amado, Sobral Pinto, Neiva Moreira,
Almino Afonso e outras pessoas
públicas como Augusto Frederico Schmidt,
Abraão Medina, Abdias do Nascimento, o poeta Lêedo Ivo,
o historiador Pedro Calmon, todos
eles entravam e saiam da história, como temas das conversas entre os
personagens. E assim Nelson ia fazendo colunismo político, crítica literária e
crônica social - sem paralisar a ação. Ao mesmo tempo, ia escrevendo o que
pensava de cada um. Nem sempre conhecia as pessoas que citava no folhetim. Assim o Tinhorão, por exemplo, que foi descrito e sugerido por seu
colega Wilson Figueiredo do Jornal do Brasil, tinha realmente um
carro bem velho. Freqüentador do Bar do Pepino,
na Av. Niemeyer, ele e seu carro vão aparecer na estória, como o principal suspeito de ter
deflorado e engravidado a filha de Engraçadinha.
caindo aos pedaços. Frequentador do Bar do
Pepino, na Av. Niemeyer, foi tido como o principal suspeito de ter deflorado e
engravidado a filha de Engraçadinha. - Silene.
[5] As projeções feitas para o
futuro são chamadas de prognóstico.
[6] O levantamento da anamnese e
do ambiente sócio-familiar devemrãos ser
articulados com as análises de diversas observações; as histórias dos testes temáticos serão alinhadasadas com aos
paradigmas dos testes estruturais, e às expressões dos testes gráficos.
[7] Stella Rodrigues, Nelson
Rodrigues, meu irmão.
[8] Samuel Wainer, Minha Razão de
Viver.
[9] Entre eles podemos citar Maria Hhelena Pires Martins, Nelson Rodrigues; a monografia de Angela Leite Soares, Nelson
Rodrigues e o fato do palco; Carlos
Vogt e Berta Waldman, Nelson
Rodrigues, flor de obsessão; Mário
Guidarini, Nelson Rodrigues: flor de
obsessão. E o livro de Stella
Rodrigues, sua irmã, Nelson
Rodrigues, meu irmão. Informações sobre Nelson Rodrigues também podem ser acessíveis através de dois
locais, que visitamos: a Biblioteca
Nacional, que tem o registro de depoimentos feitos por ele ao Museu da Imagem e do Som; e a Biblioteca da SNT, que contém inúmeros
dados jornalísticos sobre Nelson, organizadas em pastas divididas por peças,
contendo reportagens, notas de
divulgação, e críticas sobre cada montagem, além de inúmeros documentos sobre a
vida de Nelson, de modo geral. Apesar estarem cuidadosamente catalogados, não
acrescentaram novas informações à biografia feita por Ruy Castro. Já o livro de Sábato
Magaldi, Nelson Rodrigues:
dramaturgia e encenações¸ outra obra fundamental para quem pretende se
dedicar ao estudo de Nelson Rodrigues,
trabalha dentro de uma outra perspectiva, a dramaturgia de Nelson; nesta medida
suas informações biográficas são mais reduzidas.
[10] Exceção feita ao livro de Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações.
[11] Citado por Stella Rodrigues, Nelson Rodrigues, meu irmão, p. 49..
[12] Ou
seja, de 1912 a 1946