A Dramaturgia Perversa de Nelson Rodrigues
Elza Rocha Pinto
Texto escrito em 1996
Elza Rocha Pinto
Texto escrito em 1996
Sábato
Magaldi, em Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações,[1]
faz uma análise muito interessante sobre as peças, terminando em uma
classificação que tem norteado as recentes teses sobre Nelson Rodrigues. Ele
divide a dramaturgia do autor em peças psicológicas, peças míticas, e tragédias
cariocas. Álbum de Família faz parte do período mítico. Esta fase
corresponderia à necessária trajetória de Nelson que, partindo do plano da
consciência, faz um mergulho em seu inconsciente, passando por estágios
subconscientes, para completar o ciclo através do retorno ao plano da
consciência. Neste processo, Álbum de Família representaria o
inconsciente mais profundo.
Considerada
como uma peça trágica por muitas pessoas,[2]
Álbum de Família é uma peça complexa. Nela, Nelson apresenta uma visão
crítica da família brasileira de classe média, analisando suas contradições
internas. Ao mesmo tempo ele aborda, com bastante liberdade, questões
pertinentes ao fenômeno das perversões.
Em
benefício da clareza, achamos interessante explicitar alguns conceitos teóricos
vinculados à psicanálise. Por isto vamos publicar outro artigo, examinando
questões relacionadas com o referencial psicanalítico, fundamento de nossa
leitura. Neste texto, após traçar uma visão geral sobre a teoria psicanalítica,
apresentaremos um quadro bastante sintético sobre a teoria das
perversões.
De fato,
o trabalho sobre as peças de Nelson Rodrigues esbarra a todo momento com
fenômenos de transgressão. Sua obra várias vezes foi atacada e tachada de
imoral. Brincando, ele costumava dizer que substituíra Freud, que era o tarado
oficial do início do século. Entre as 17 peças que escreveu, existem
várias que abordam personagens perversos. Por isto nos sentimos à vontade para
propor uma análise desta temática em Álbum de Família. Sua dramaturgia
se serve das perversões como uma excelente estratégia, pois intensifica a
expressão dramática e trágica das cenas, e dos personagens. Podemos desde já
recapitular rapidamente alguns destes personagens. Lembramos o belíssimo
exemplo de fetichismo feminino em Dorotéia, onde Das Dores
fica noiva de um par de botas; a partir de então, sua mãe e suas tias passam a
se atormentar, sonhando acordadas com botas desabotoadas. E é esta
imagem, ou seja, a presença do fetiche, que vai permitir que a adolescente se
entregue imaginariamente a seu noivo, numa cena de alta expressão dramática.[3]
Às vezes a perversão chega a ser cômica, porque Nelson radicaliza pelo excesso.[4]
Por exemplo, quando o exibicionismo vem a vencer a morte, em A
Falecida; numa mistura de orgulho e vingança Zulmira compara seu
corpo com o de sua prima, e constata que ela, Zulmira, será “a
morta que pode ser despida”. Lembramos também um voyeurismo ao
reverso, explícito em Anjo Negro, quando por formação reativa,[5]
o negro Ismael cega seu irmão, e mais tarde vai cegar a própria filha.[6]
O homossexualismo é tratado em O Beijo no Asfalto, e retorna em Toda
Nudez Será Castigada, através da presença invisível e hilariante do ladrão
boliviano, com quem foge o amante de Geni no final da peça. Isto para
não falarmos dos incestos, que além de serem “bíblicos”,[7]
em Álbum de Família, vão se espalhar à vontade por toda a obra. São
tantos e inumeráveis os indícios, que é até difícil escolher algum que seja
exemplar. Os incestos ultrapassam as peças de Nelson e se introduzem inclusive
nos folhetins. Já em seu primeiro folhetim, Meu Destino é Pecar, Suzana
Flag escreve uma história onde os incestos são sugeridos,
através de intensas paixões entre parentes, onde cunhado tenta seduzir cunhada,
e prima é apaixonada por primo.[8]
Posteriormente, o incesto se torna explícito em outro folhetim de grande
sucesso, Asfalto Selvagem, que conta a saga de Engraçadinha,
amante de seu próprio irmão, com quem acaba tendo um filho. Em 1940, Engraçadinha
tem 18 anos e vive com sua família em Vitória. Está noiva de Zózimo, mas
esconde uma paixão por seu primo Silvio, o qual na verdade é seu irmão. Silvio
nasceu de uma relação semi-proibida entre seu pai e a cunhada. Ao descobrir que
é irmão de Engraçadinha, Silvio se castra com uma navalha,
deixando Engraçadinha grávida. O pai, diante da decadência moral de sua
família, suicida-se com um tiro na cabeça. Enfim, as perversões transbordam em Nelson Rodrigues,
justificando plenamente nosso enquadramento teórico.
Álbum de
Família é a
terceira peça que Nelson escreve. Na trajetória
levantada por Sábato Magaldi, Mulher sem
Pecado, a primeira peça de Nelson, se coloca no plano da
realidade-consciência. No plano da sub-consciência estaria Vestido
de Noiva. E no plano do inconsciente profundo surgem Álbum de Família, Anjo Negro, Senhora dos Afogados, e Dorotéia. O ciclo se completa com Valsa nº 6, depois da qual Nelson
Rodrigues faz seu retorno à realidade consciente, com A Falecida, peça que inaugura um
novo período seu, as tragédias cariocas.
Faz alguns anos
Antunes Filho remontou Álbum de Família,
sob a óptica de Mircea Eliade. Através do mito do eterno retorno, utilizando-se ainda dos arquétipos junguianos, o
diretor achou que tinha chegado a uma compreensão do universo rodrigueano. Em
sua opinião, a dramaturgia de Nelson Rodrigues apontaria para “um sopro, um
vendaval que vem da terra”. Álbum de
Família se ligaria ao mito das cavernas, ao mito primordial. Para Antunes
Filho, Nelson estaria retomando o mito de Adão e Eva, com sua marca do pecado
original que estigmatizou o homem.[9] Como vemos, a proposta do diretor era descobrir o universo profundo de
Nelson Rodrigues. É o que também nos propomos a fazer, em relação a Álbum de Família, partindo, entretanto,
de uma outra perspectiva.
Já na fase inicial de sua dramaturgia Nelson
mostrava um dom excepcional: o de mergulhar no interior das aparências, e expor
com crueza toda a brutalidade das mais primitivas paixões e emoções do ser
humano. Sua sensibilidade para determinados sentimentos permitiu que ele
imprimisse, em seus personagens, características de personalidade pouco
socializadas. Em suas peças míticas, Nelson atinge o excesso. Ele vai lidar com
o avesso das emoções humanas, com o lado negro da alma, com aquelas pulsões
parciais que a socialização costuma recalcar e manter sob controle. Isto ocorre
sobretudo em Álbum de Família, texto
que vamos analisar neste último capítulo. Trabalhar neste texto, é trabalhar na
desumanização, na ausência das normas, no anarquismo da libido fora da lei. Em Álbum de Família a perversão explode em
toda sua paixão.
[1]
Este livro é o resultado de sua tese de livre docência, onde o autor refaz a
trajetória criativa de Nelson Rodrigues,
tratando não somente das encenações, como também do enquadramento estético e
histórico de sua obra. É uma referência obrigatória para qualquer trabalho
sobre Nelson Rodrigues, da mesma
forma como O Anjo Pornográfico de Ruy Castro.
[2]
Angela Leite Lopes, em seu livro Nelson Rodrigues - Trágico, então Moderno,
faz uma análise sobre o sentido e o alcance do fenômeno trágico em Nelson Rodrigues, e inclui Album de Família entre as oito tragédias que ele escreve.
[3]
Dorotéia é considerada por muitas
pessoas como a obra prima de Nelson Rodrigues. De fato, estes
fragmentos mostram que Nelson está rompendo definitivamente com o tipo de
teatro que se fazia então. Na época de sua estréia, a peça foi mal recebida, e
mal compreendida pela crítica, transformando-se num fracasso de bilheteria. No
entanto algumas pessoas perceberam a qualidade de Dorotéia. Paulo Francis,
ainda iniciante e sem espaço nos jornais, assistiu a peça mais de uma vez. Anos
mais tarde, jornalista já reconhecido, ele escreve um artigo com o título Nelson nunca foi um intelectual, onde
afirma que Dorotéia era “uma comédia noire sem
paralelos em nossa dramaturgia, comédia que hoje seria chamada de ‘do absurdo’
(e Nelson precedeu Ionesco, Beckett e Pinter)...” Folha de S. Paulo, 28/12/80.
[4]Aliás
o próprio Nelson reconhece este recurso. Em Teatro Desagradável, ao falar de Album de Família é ele próprio quem
comenta: “Na verdade, visei um certo
resultado emocional pelo acúmulo, pela abundância, pela massa de elementos”.
Teatro Desagradável, p. 19
[5]Mecanismo
de defesa através do qual a pessoa desenvolve um comportamento oposto e
contraditório com a pulsão original.
[6]
Na verdade, filha de sua mulher com seu meio irmão branco. Em um preconceito às
avessas, idetificado com o agressor, Ismael não quer ser reconhecido como negro
pela menina.
[7] Nelson Rodrigues,
revoltado com a proibição de Album de
Família, argumentava para todo mundo que a Bíblia era uma campeã de incestos.
[8]
O folhetim conta a história de uma jovem feia e ingênua que vem a se casar com
um viúvo dominador. Ele não consegue se esquecer da primeira mulher. O viuvo é
aleijado, e tem um irmão bonito e irresistível. Este irmão tem uma amante, que
se esconde na floresta. Mas começa a tentar seduzir a nova cunhada. Na casa da
fazenda mora também uma prima, que é apaixonada pelo viúvo.
[9] Através desta interpretação Antunes Filho entende a inserção de um
outro mito na peça - o de Sísifo, que
fundamenta a ideologia da repetição permanente. “Leva-se o fardo até o alto da montanha, e ele rola até em baixo,
para se recomeçar tudo de novo outra vez. Este é o castigo para quem cometeu o
pecado original. A obra de Nelson é circular: as peças, de fato, não saem do
lugar”. Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações,
p. 171.