____________________O Discurso Médico sobre as Perversões
Elza Rocha Pinto
Em meados
do século XIX a Medicina teve seu interesse despertado pelo estudo do
homossexualismo. Os primeiros estudos sobre as inversões sexuais foram feitos
com objetivo de corrigir a severidade da legislação penal. E acabaram por
afirmar a normalidade dos invertidos, admitindo que existiam diversas formas
para se chegar ao orgasmo, sem que os médicos tivessem qualquer direito de
designá-los como doentes.
Um
jurista, C. J. Ulrichs,[1]
contribui muito para o início destes estudos, afirmando que os uranistas[2]
tinham uma alma de mulher num corpo de homem, e só podiam experimentar desejo e
paixão por homens viris. Isto não significava patologia, constituindo, somente,
uma disposição singular da natureza. Os
homossexuais não eram doentes. E era ilusória a expectativa de uma modificação
em seu comportamento, já que se tratava de uma disposição natural. A disposição não indicava a presença de uma
degeneração. Separava-se, assim, o
homossexualismo da doença mental, e da devassidão. Ser homossexual ,
agora, significava apenas ter um modo
particular de satisfação sexual.
Aos poucos
vai se fortalecendo a ideia de que o homossexual apresenta uma sensibilidade sexual inversa, inversão essa que ele trazia
desde seu nascimento. O homossexualismo deveria ser considerado como sua própria natureza. Os casos eram
congênitos. Não no sentido de implicar hereditariedade mas, sim, significando
que a inversão sexual era natural.
Era um comportamento que podia ser
expresso pela metáfora da “alma de mulher num cérebro de homem e de
cérebro de mulher num corpo de homem”. O
termo contra natura perdia seu
sentido. Estava estabelecida, também, a
fronteira com o vício. A medicina não tinha nada a fazer, a não ser descrever,
compreender, e, quando chamada pelo interessado, aliviá-lo. Mas apesar de tudo,
o discurso médico vai conseguir o domínio do homossexualismo, organizando um
vínculo entre a inversão e a neurose.
Por outro
lado, Daumezon nos informa que em paralelo a esta luta pela liberdade e
naturalidade do homossexualismo, a medicina legal, no final do século XIX, se
achava empenhada em combater os abusos e maus tratos que eram dirigidos aos
doentes mentais. “Todo tratado de psiquiatria inclui extensos argumentos
condenando a barbárie dos tempos precedentes, que queimaram tanto bruxos, como
inocentes enfermos”.[3]
O psiquiatra continuava a acompanhar as perícias
judiciais, e reunia uma variedade de
bizarros comportamentos sexuais, com o propósito de convencer o juiz, sobre a
enfermidade de uma pessoa em julgamento, pela comparação com o catálogo de
casos. Krafft-Ebing, em seu
Traité clinique de psychiatrie, em l897, vai
tentar organizar esta multiplicidade de comportamentos. Faz classificações,
distinguindo algumas espécies fundamentais. Entre outros casos, reconhecia como
anomalia do instinto sexual, quando
este instinto se manifestava “de maneira perversa, isto é, quando o tipo de
satisfação não tem por finalidade a preservação da espécie (parestesia)”. [4]
As
perversões são colocadas ao lado da esterilidade,[5]
do prazer e da patologia, numa oposição à sexualidade normal, onde a saúde se
relacionava com uma quantidade média de prazer, e com a reprodução. E se o
prazer, no homem, parecia estar ligado à função reprodutora, na mulher
dissocia-se dela:
Como a mulher pode
ser fecundada sem gozar, o gozo já não extrai sua legitimidade da propagação da
espécie, não é absolvido nem por Deus, nem por Darwin, e, por conseguinte,
opera-se sub-repticiamente uma vinculação - um vinculum substantiale, teria escrito Leibnitz - entre o gozo e o injustificado, o proibido, a
transgressão. [6]
Esta coletânea de Krafft-Ebing
era um “inventário de sintomas”, sem sequer alcançar a “descrição da evolução”.[7]
Mas, em função do uso do termo “parestesias”,
Krafft-Ebing delimitou o campo
específico das perversões, que passam a abrigar “todas as satisfações eróticas
cujo objetivo não parecia ser a preservação da espécie”. Desta forma o próprio prazer ficou
contaminado como perverso, “ou, pelo menos, viciado e depravado”.[8]
O livro
de Krafft-Ebbing é um clássico. Ele não apenas unifica as perversões dentro de
uma grande categoria mas, seguindo a tendência da época,[9]
ele vai descrever e classificar em espécies toda a diversidade clínica. O eixo
central é o homossexualismo, em torno do qual ele organiza diversos
comportamentos: desde impotência e frigidez até comportamentos ridículos e
monstruosos. O ridículo corre por conta dos capítulos dedicados ao sadismo, ao
masoquismo, ao fetichismo e ao exibicionismo:
descritos
como uma espécie de comédia, da qual a seriedade, em última instância é
excluída: a crueldade do sadismo ou o sofrimento do masoquismo surgem como
condutas teatrais, e é bem sabido que as instituições em questão eram comumente
chamadas de casas das ilusões,[10]
onde tudo acaba se reduzindo a espetáculos.
(...) O sadismo e o
masoquismo conservam uma certa dignidade, devida à dor presumida; o fetichismo
aparece principalmente como ridículo, às vezes tocante, mas muito
frequentemente derrisório, e o exibicionismo parece um péssimo negócio:
arriscar tudo por tão pouco... O conjunto resume-se num grotesco bastante digno
de pena: o do cliente que desembolsa um preço tão alto por tamanha ilusão. [11]
Segundo a
análise feita por Lanteri-Laura, as perversões acabaram caindo no domínio do
grotesco ou do monstruoso. Zoofilias, teratologias,[12]
pedofilias, gerontofilias aparecem como variedades de uma depravação monstruosa. Os perversos
passam a ser vistos como monstros perigosos, ou como palhaços que provocavam
risos. A clínica das perversões vai provocar riso ou horror, dependendo dos perversos se entregarem à
monstruosidades como a zoofilia, ou a encenações ridículas e grotescas no
estilo do sado-masoquismo ou do travestismo.
É neste
ponto que Freud (1905) vai surgir,
contribuindo para a compreensão da
gênese das perversões. Seu livro Três
Ensaios sobre uma teoria da Sexualidade, decididamente, traz novidades para
a moral da época. Ele consolida a mudança de concepção no que se refere ao
homossexualismo, libertando estes bons
perversos dos limites da psicopatologia.
Sua teoria das pulsões, desenvolvendo-se através dos diversos estágios
libidinais durante a infância precoce, acaba tornando as perversões parte da
sexualidade normal.
[1]
Lanteri-Laura,G - Leitura das Perversões.
[2]
C. H. Ulrichs inventou o termo uranismo, para designar um tipo
específico de homossexualismo. O nome era inspirado em Afrodite
Urânia, locução usada por Platão, através da qual ele separava os aspectos divinos
(celestiais, ouranios) dos aspectos
vulgares do amor.
[3]
G. Daumezon, O encontro da perversão pelo psiquiatra, em La
Perversion, p. 19.
[4]
Lanteri Laura, Leitura das Perversões, p. 36.
[5]
O eixo do excesso e da falta não é o do gozo, mas o da preservação
da espécie. No polo negativo, a impotência do homem é um obstáculo para a
fecundação. Porém, na mulher, a frigidez não impede a geração; a rigor é a
esterilidade deveria ser levada em conta, o que vai remeter a questão da
perversão para um campo totalmente diferente.
[6]
Op. cit., p. 38.
[7]
G. Daumezon, “O encontro da perversão com o psiquiatra”, em La
Perversión, p. 22.
[8]
G. Lanteri Laura, Leitura das
Perversões, p. 39.
[9]
Ver sobre esta questão o livro de Roberto
Machado, Ciência e Saber - A
Trajetória da Arqueologia de Foucault.
[10]
Ver o livro de A. Robbe-Grillet, La maison
de rendez-vous, Paris, Minuit, 1a. ed., 1965, citado por Lanteri-Laura.
[11]
G. Lanteri Laura, Leitura das
Perversões, p. 41
[12]
Segundo A. B. Hollanda, o termo
tem origem grega - teratología -, onde significava
“narração de coisas maravilhosas”. Daí passou a ter uma conotação
patológica ligada ao estudo das monstruosidades.