______________________________________A Projeção na Arte
Elza Rocha Pinto
A arte de versejar e de poetar
É dizer a
verdade do sonhar. [1]
Freud vai chegar à conclusão que a obra do
artista será função de uma formação de compromisso.[2]
Na constituição do aparelho psíquico, as defesas funcionam com o objetivo de
manter a estrutura da personalidade, evitando a angústia. E, a dinâmica da
personalidade permite que elas acabem por constituir um compromisso entre os
três sistemas,[3]
contribui para a manutenção do equilíbrio psíquico. Esse trabalho é nítido no
sonho, no sintoma ou no ato falho.
Mas a
formação de compromisso também aponta para outros comportamentos. As defesas
são funções do ego. Assim, sem sair do contexto freudiano, podemos afirmar que
qualquer ato do ser humano surge também
de um compromisso. Pois todos os comportamentos vão ser resultado desta
barganha interativa entre as três instâncias da personalidade, onde as defesas
têm um papel central. E a obra do artista não vai fugir à regra, revelando-se
bastante sensível a este contrato subjetivo; contrato que acaba por facilitar a
expressão de fantasias e conflitos inconscientes.
Em suma,
as produções culturais sempre revelam a vida interior de seus autores. Esta ideia
esteve sempre presente em Freud. Isto pode ser revelado, entre outros caminhos,
através do percurso feito pelo conceito de projeção. Freud desenvolveu este
conceito em dois momentos distintos. E, dentro de perspectivas bastante
diferentes. Quando Freud (1911) examina a biografia do presidente Schreber, a
projeção ainda é um conceito limitado. Ela trata do deslocamento do ódio sobre
outra pessoa, no caso de alguém que foi humilhado:
Na produção de
sintomas da paranoia ressalta, em primeiro termo, aquele processo que
designamos com o nome de projeção. Nele uma percepção interna é reprimida e como
sua substituição, seu próprio conteúdo, depois de sofrer uma deformação, vai
surgir na consciência como percepção vinda do exterior.[4]
Aos
poucos Freud vai desenvolvendo sua ideia. Já em Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901-1904), no tópico sobre Crença no Acaso e Superstição, o
conceito é ampliado o suficiente para permitir englobar uma gama maior de
fenômenos. Freud está trabalhando na idéia do determinismo psíquico, e para exemplificar, começa a analisar o
fenômeno da superstição. Compara os mecanismos psíquicos do paranoico e do
supersticioso. O paranóico projeta na vida psíquica dos outros aquilo que
existe na sua, de forma inconsciente. Quanto ao supersticioso, Freud lembra que
ele, por desconhecer a causa interior, projeta esta causalidade psíquica no
exterior, interpretando como intencionais determinados fatos puramente casuais.
Ou seja, o indivíduo vai atribuir uma significação aos fatos externos, sentindo
de algum modo que este tem correspondência com seus próprios sentimentos e
representações que lhes são ocultos, por serem inconscientes:
O supersticioso, por ignorar a motivação dos próprios
atos casuais e porque o fato desta
motivação luta por ocupar um lugar em seu reconhecimento, se vê obrigado a
transportá-la por meio de um deslocamento, ao mundo exterior. (...) Creio, com
efeito, que grande parte daquela concepção mitológica do mundo que perdura
ainda na entranha das religiões mais modernas não é outra coisa que
psicologia projetada no mundo exterior. A obscura percepção (poderíamos
dizer, percepção endopsíquica) dos fatores psíquicos e relações do
inconsciente, se reflete na construção de uma realidade sobrenatural que deverá ser transformada pela ciência em
psicologia do inconsciente. (...)
Quando os homens começaram a pensar se acharam, sem dúvida compelidos a
interpretar antropomorficamente o mundo exterior como uma pluralidade de
personalidades feitas à sua própria imagem. [5]
A
projeção, agora revisitada dentro da vida cotidiana e normal, ganha mais uma
qualidade. Além do significado da expulsão
paranoica, passa a representar também o simples desconhecimento, por parte do sujeito, de desejos e emoções que
não são aceitas por ele como sendo suas (ou então das quais é parcialmente
inconsciente), e cuja existência ele atribui à realidade externa.
Neste
deslizamento, a projeção passa a se aplicar a outros fenômenos dentro da vida
quotidiana, quando antes esta defesa só se referia à expulsão de desejos
intoleráveis em si próprio, tendo um viés patológico. Com a extensão do
conceito, passa-se a utilizar a projeção como explicação para o deslocamento de sentimentos, idéias e
emoções consideradas positivas e valorizadas. Em Totem e Tabu (1912), o “deslocamento
para fora”, o qual é a essência da projeção, mescla-se com a atribuição de
qualidades (agora negativas ou positivas) ao objeto externo.
E esta
desterritorialização vai permitir que, agora, o conceito se constitua como base
de fenômenos tais como o animismo, o pensamento mágico e a onipotência das idéias, todos resultados
da projeção dos processos psíquicos primários sobre o mundo exterior. As
histórias míticas adquirem o estatuto de formação de compromisso; e podem
desempenhar o papel de expressão e elaboração de conflitos. Da mesma forma, a
obra de arte vai poder conter uma projeção do artista.
Fazendo
um rápido parênteses, é justamente esta leitura freudiana que fornece a base
para as técnicas projetivas da psicologia, as quais afirmam a possibilidade de
dizermos algo sobre alguém, através de sua produção, de suas visões. Tanto a closura guestáltica das manchas do teste
projetivo Rorschach, quanto o
rabiscar de um desenho através das chamadas técnicas de Grafismo, ou ainda a
produção de uma estória nos testes temáticos ao estilo do T.A.T.[6]
ou do C.A.T.[7]
- todos estes processos vão permitir a leitura da vida emocional do indivíduo.
Os desenhos, por exemplo, podem ser toscos e grotescos, sem a maestria da
técnica dominada pelos grandes pintores
como Da Vinci, Renoir ou Picasso. Ou bem a técnica poderá ser sofisticada, traduzindo-se
em desenhos muito bem elaborados. A
forma definitiva não importa. O que interessa é que todos eles, desde as
garatujas de uma criança, até o elegante e sofisticado traçado de um arquiteto,
podem revelar o mundo interior daquele que desenha. Ou seja, a presença ou
ausência do domínio da gramática e da sintaxe da linguagem gráfica, dos pontos,
linhas e sombreados, não impede a revelação da vida subjetiva de uma pessoa.
Os
próprios pintores são os primeiros a reconhecer este fato. Foi um artista,
Elbert Hubbard,[8]
quem observou o seguinte: “quando um artista pinta um retrato, em rigor pinta
dois, o do modelo e o próprio; e é de outro pintor, Alfred Tunnelle,[9]
o comentário de que “o artista não vê as coisas como são, mas como ele é”.
Existem múltiplas constatações desta vinculação entre o retrato e seu pintor.
Estudiosos de Leonardo já afirmaram:
O sorriso de Mona
Lisa provavelmente não pertencia em absoluto à Mona Lisa; representava a
perspectiva do próprio Leonardo Da Vinci diante da vida, e refletia a distraída
superioridade da qual se armava para compensar seu ressentimento contra o pouco
generoso tratamento que o destino lhe dera,
e a freqüente falta de reconhecimento do lugar que lhe correspondia na
vida. [10]
Existem
diferenças acentuadas nos estilos dos pintores. É nítido o contraste dos tons
depressivos, disfóricos, angustiados e sombrios em El Greco. Vista de Toledo parece traduzir seu
próprio estado emocional, de desalento e tristeza. Já Van Gogh utiliza cores
intensas, cores espessas, fortes e contrastantes, com tracejados rápidos e impulsivos.
Com isto consegue imprimir na tela uma potência de forças e movimentos que só
poderiam surgir da pressão de violentas paixões internas, tão vibrantes e
rebeldes quanto seus torturados girassóis, ou seus brilhantes campos de trigos
açoitados pelos ventos.
A mesma
análise pode ser feita com relação aos textos escritos de autores teatrais, de
jornalistas, ou mesmo do escolar que delineia uma tímida composição sobre um
tema singelo. A este propósito lembramos aqui a façanha escolar, que tanto
prazer causou a Nelson Rodrigues, então
com oito anos de idade, quando ele surpreendeu a todos em seu colégio. Sua professora havia pedido que os alunos
fizessem uma redação sobre um tema qualquer.
A melhor composição seria lida em voz alta. Foram selecionadas duas
vencedoras, talvez porque a primeira colocada não pudesse ser lida, na opinião
da mestra. Uma das redações tinha um caráter infantil, e descrevia o passeio de
um rajá no seu elefante. A outra já revelava todo o talento do futuro escritor,
trazendo uma das marcas rodrigueanas - era uma estória sobre adultério:
Um marido chega de
surpresa em casa, entra no quarto, vê a mulher nua na cama e o vulto de um
homem pulando pela janela e sumindo na madrugada. O marido pega uma faca e
liquida a mulher. Depois ajoelha-se e pede perdão. [11]
Este
trecho da composição certamente revela um aspecto do mundo privado de Nelson,
onde o adultério feminino vai ganhar uma dimensão ímpar. Em Álbum de Família, esta mesma estória se
desdobra na traição de Senhorinha.
Estendendo-se
para a vida cotidiana, Ernst Kris (1968), em seu importante e cuidadoso estudo
sobre as contribuições da psicanálise para o entendimento das artes, estendeu
seus comentários também aos jornalistas. Na verdade, basta uma análise, às
vezes superficial, para revelar as vinculações entre a vida subjetiva do
artista e sua obra. Freud, no artigo de
1908, propõe explicitamente esta tarefa:
Tentaremos aplicar
às obras do poeta nossa tese anterior da relação da fantasia com o pretérito, o
presente e o futuro e com o desejo que flui através dos mesmos, e estudar com
sua ajuda as relações dadas entre a vida do poeta e suas criações. [12]
É desta
compreensão que Freud desenvolve a leitura psicanalítica das obras de Jensen
(1907) e de Leonardo (1910). Só achamos necessário ter o cuidado de evitar
leituras reducionistas,[13]
que podem constituir-se em empobrecimento da obra de arte.[14] Freud correu este risco. E por
vezes parece limitar a obra de Leonardo (1910) a uma fantasia incestuosa. Na
leitura da Gradiva, quase chega a
transformar aquilo que era uma paixão de amante num delírio patológico, a ponto
de Jensen[15]
reagir mal à análise de sua narrativa. Mas Freud era um gênio. E sua intuição e
sensibilidade conseguem contornar esta armadilha. Afinal, se o mundo da criação
pode revelar algo da patologia ou da perversão que vive no interior do artista,
a obra artística não pode ser reduzida drasticamente aos conflitos pessoais de
seu autor. Pois para além da projeção, a obra do artista é uma interpretação
criativa, crítica e singular do mundo.
[1] Resposta de Hans Sachs, nos Mestres Cantores. O trecho completo diz o seguinte: “Amigo,
a verdadeira obra do poeta / É anotar e interpretar sonhos. / Acreditai que a
ilusão mais certa / Vive no sonho dos humanos / A arte de versejar e de poetar
/ É dizer a verdade do sonhar”. Citado por Nietzsche, em A Origem da
Tragédia, p. 36.
[2] Formação de
compromisso são as produções do inconsciente que resultam de uma espécie de
contrato entre o id, o ego e o super-ego.
[3] Segundo o ponto
de vista psicanalítico a personalidade seria o resultado da interação entre três
instancias: id, ego e super-ego.
[4] S. Freud, Observações psicoanalíticas sobre um caso de Paranoia, p. 1520
[5] S. Freud, Crença na Casualidade e na Superstição, em Psicopatologia da Vida Quotidiana, p. 918.
[6] Thematic
Apperception Test, de H. A. Murray e C. D. Morgan.
[7] Children
Apperception Test, de Leopold e Sorel Bellak.
[8] E. Hammer, Tests Proyectivos Graficos, p. 22
[9] Op. cit.,
p. 22
[10] T. Craven, Leonardo Da Vinci, in: E. Hammer, Tests Proyectivos Graficos, p. 22
[11] Ruy Castro, O Anjo Pornográfico, p. 24.
[12] S. Freud, O Poeta
e os sonhos diurnos, p. 1.347.
[13] Durante a
revisão bibliográfica que realizamos, encontramos vários trabalhos cujos
resumos parecem indicar este tipo de leitura, que acaba por reduzir o valor de
uma obra de arte às comprovações de uma determinada teoria.
[14] Podemos citar
dois livros recentes que sairam no Brasil. Um deles de Waldemar Zusman, Os filmes
que eu vi com Freud, que, segundo Daniel Kupermann, “não consegue evitar excessos da imaginação interpretativa que, se não
são inverdades teóricas, arriscam-se a decepcionar o leitor que encontra
personagens marcantes do cinema demasiadamente simplificados, senão reduzidos à
‘exibição de doentes’, usual para fins didáticos na academia médica”, Jornal do Brasil, Caderno B, 25/03/95. O outro é o livro de Carmine Martuscello, O Teatro de Nelson Rodrigues - Uma leitura
Psicanalítica, e que mereceu de Sonia
Rodrigues Motta uma crítica ferina: “O
livro perde quando o autor se dispõe a psicanalisar não os personagens, mas o
autor das peças. (...) Temas recorrentes, e até obsessivos, como rivalidade
entre irmãos, adultério, vingança, morte, incesto, não são uma característica
exclusiva do universo rodriguiano. Mantendo-se no limite por ele mesmo
proposto, do ‘exame psicológico da obra de Nelson Rodrigues’, Martuscello
correria menos riscos do que ao levantar hipóteses sobre os aparentes
‘desdobramentos projetivos da personalidade do autor, que lhe permitiriam
expressar inconscientemente sua ‘ambivalência de sentimentos em relação ao pai’, ou ‘os
momentos em que o Édipo irrompe na obra teatral de Nelson’, ou aqueles que
supostamente revelam que ‘em Nelson Rodrigues, a nostalgia da mãe é enorme.
Essas hipóteses são arriscadas no terreno da teoria porque Nelson Rodrigues não
foi psicanalisado por Carmine Martuscello.” O Globo, Segundo Caderno, 16/01/94, p. 6.
[15] “Talvez seja preferível”, escreve
Jensen, “atribuir a descrição dos
processos psicológicos... à intuição poética...”, em Ernst Kris, Psicanálise da
Arte, p. 20