____________________________________A Teoria das Pulsões
Elza Rocha Pinto
O
tratamento das neuroses permitiu que Freud desenvolvesse uma teoria sobre o
psiquismo humano. E, a partir de suas observações clínicas, Freud precisou
admitir a existência de uma sexualidade infantil, cuja energia chamou de libido.
Ele formalizou a estrutura do aparelho psíquico através de três
instâncias: Id, Ego e Super-Ego. E definiu
o inconsciente como o verdadeiro
objeto de estudo da Psicanálise. O Id
seria o reservatório da energia psíquica, a sede das pulsões e fonte de todos
os desejos. O Super-Ego seria a
instância das leis, normas, valores éticos e estéticos, que define a moral que
o indivíduo vai elegendo ao longo de sua vida, e que rege seu comportamento. O Ego seria a parte da personalidade que
se encarregaria de sua adaptação à realidade. Entre outras funções o Ego teria a tarefa de satisfazer as
exigências do Id. Porém levando em
consideração as restrições morais do Super-Ego,
assim como os limites da realidade. O Ego
seria, portanto, a instância responsável pelo equilíbrio e ajuste da
personalidade. Este modelo de aparelho psíquico vai sendo construído durante o
desenvolvimento da criança.
Freud apresenta as
bases para sua teoria das pulsões em 1905, no livro Três Ensaios sobre uma teoria sexual.
Logo de início revoluciona as concepções da época, ao propor no
lugar da noção de instinto sexual, o
conceito de pulsão.[1] Ele não deixa de utilizar
o termo instinto, porém este conceito
passa a ser usado para focalizar características mais ou menos imutáveis, que
se transmitem geneticamente através de gerações, que não precisam ser
ensinadas, nem são adquiridas através de prática ou da experiência. Instinto
vai se referir a um padrão mais ou menos complexo de comportamentos, que
apresenta uma sucessão imutável e
inflexível, pré-determinada. [2]
Já a pulsão[3] freudiana difere do
instinto sexual em alguns aspectos.
Freud começa a definir suas características, para libertar a partir daí,
a sexualidade infantil. Esta se
fragmenta em pulsões parciais, que vão se realizar em objetos e
finalidades perversas. A pulsão é definida, de imediato, por Freud como tendo
três qualidades, às quais logo acrescenta uma quarta característica:
1. um objeto sexual: o
objeto é normalmente uma pessoa do sexo oposto, na qual a libido é investida.
Porém pode ser uma parte do corpo do próprio indivíduo (como ocorre nas experiências
pré-genitais, na masturbação), ou uma pessoa do mesmo sexo (como no
homossexualismo).
2. um fim, finalidade ou objetivo sexual: ato ou
atividade que deverá ser realizado, impulsionado pela pulsão, para se obter a
satisfação do desejo. O fim de uma pulsão sempre consiste na restauração do
equilíbrio, através de transformações somáticas, fato que é percebido como uma
satisfação ou prazer. A meta da pulsão requer sempre algum objeto através do
qual seja possível a satisfação.
3. um impulso: força da pulsão,
implícita na definição inicial que Freud dá ao seu conceito.[4]
4. uma fonte: é
a origem da energia, que é sempre uma parte do corpo. São chamadas de zonas
erógenas.[5] A principal zona erógena é
a genital. [6]
As pulsões são definidas como um conceito limítrofe entre o mental e o físico e representam uma demanda que o
corpo faz à mente. Sua energia é a libido, que é a única
capaz de fazer o aparelho psíquico funcionar.[7] Usando de um recurso
metafórico, Freud diz que libido é o termo científico para o estado geral de fome sexual.
Logo a seguir constata que, à diferença do instinto, a pulsão comporta
múltiplos desvios, tanto no que se refere ao objeto, como no que diz respeito
ao seu fim. É a discussão deste tema que permite Freud chegar até a reformulação
da ética das perversões. De acordo com esta sistematização, podemos distinguir duas categorias de
perversões sexuais:
a)
Perversões que consistem na deformação da qualidade
do desejo sexual
b)
Perversão na qual o objeto do desejo
sexual é anormal.
As
perversões, portanto, são constituídas por impulsos pré-genitais, que se
vinculam às fases do desenvolvimento da libido. Sadismo, masoquismo,
voyeurismo, exibicionismo e travestismo pertencem ao primeiro grupo; ao segundo
pertenceriam a homossexualidade, a pedofilia, zoofilia, necrofilia, e o
incesto. No fetichismo tanto o objeto do impulso sexual, quanto a sua qualidade
são alteradas.
Freud
afirmou a independência destas numerosas pulsões pré-genitais. Tendo diferentes
origens somáticas, elas vão procurar lutar pela gratificação da respectiva zona
erógena. O objetivo destas pulsões parciais se esgotaria numa satisfação
parcial, ou seja, limitada ao prazer de
orgão. Algumas dessas pulsões serão reprimidas, outras serão incorporadas à
organização final das funções sexuais adultas, como momentos preparatórios para
a atividade genital.
A teoria do desenvolvimento vai procurar descrever os estágios ou
fases atravessadas pelas pulsões,[8] designadas como
oral-canibalística, sádico-anal, fálica e genital. No início da vida a libido é
investida, primariamente, no amor de si mesmo (narcisismo). Mas logo depois se transfere
parcialmente para o amor objetal,
onde o bebê investe sua energia em alguém próximo a ele (seus pais ou
substitutos). Estas pessoas vão constituir o objeto de desejo da criança. [9]
As pulsões podem alcançar seu objetivo, ou seja, a satisfação, de
vários modos. É isto que constitui o que Freud chamou de economia da libido . Em outras palavras, as pulsões podem sofrer
várias modificações. A libido, em suas relações com o objeto, pode ser
substituída, trocada, deslocada, permutada, transferida. Todas estas trocas
afetivas vão acontecendo com o auxílio de um conjunto de mecanismos de defesa,
entre os quais a repressão, a sublimação, o split ou cisão, e vários
outros.
A sublimação é uma modificação da pulsão onde o fim e o objeto se
transformam, com o objetivo de se tornarem socialmente válidos. Freud acreditava que as obras de arte eram o
resultado deste processo sublimatório. Através da sublimação as energias das
pulsões são dirigidas para um fim artístico, não sexual; tanto a finalidade
quanto o objeto da pulsão vão ser trocados por fins e objetos diferentes. Com isto a
sublimação substitui o objeto inacessível por um outro, menos satisfatório,
porém mais aceitável, tendo este novo objeto a aprovação do super-ego, e da sociedade. Maria Luiza T. Assumpção, em seu artigo O Projeto Inconsciente de Machado de Assis situa
uma opinião de J. D. Nasio sobre este fenômeno da troca:
O
destino da pulsão a que chamamos sublimação é, estritamente falando, a própria
operação de troca, o fato mesmo da substituição. Antes de um modo particular de
satisfação, a sublimação é, antes de mais nada, a passagem de uma satisfação a
outra. [10]
E, concluindo, a autora nos lembra o seguinte:
A
sublimação para a psicanálise é o meio de transformar e elevar, ou mesmo uma
modalidade de evitar a irrupção violenta do sexual (...) A sublimação não é,
estritamente falando, uma satisfação, mas a capacidade plástica da pulsão de
mudar de objeto e de encontrar novas satisfações. [11]
Já a repressão impede a satisfação do desejo. A repressão não é
muito eficaz na resolução de conflitos,[12]
porque aquilo que é reprimido retorna através da formação do sintoma. Existe ainda um outro mecanismo de defesa que
se torna importante no estudo das perversões - a cisão -, quando uma
parte da personalidade evolui, seguindo os padrões normais, enquanto que a
outra permanece fixada em pulsões eróticas mais primárias.
A situação edipiana define um triângulo de emoções,
onde o amor pelo progenitor de sexo oposto se acompanha de hostilidade e
rivalidade para com o progenitor do mesmo sexo. Isto se acompanha de todo um
contexto de decepções, angústias e sentimentos de culpa. Um dos momentos mais
importantes deste drama se dá por ocasião do reconhecimento da diferença dos
sexos, que é acompanhado por uma intensa angústia
de castração, paradoxalmente vivenciada tanto pelo menino quanto pela
menina. É justamente em função desta angústia, e dos sentimentos de culpa
concomitantes, que ocorre a repressão dos componentes
agressivos das organizações
pré-genitais (sádico-oral, anal-sádica, fálica). A criança supera esta
difícil complexidade afetiva, abandonando o objeto do desejo e iniciando sua identificação[13] com o progenitor do mesmo sexo. A identificação vai formando um ideal do ego.
Esta elaboração do Édipo,
com a aceitação da interdição do incesto,
garante a futura entrada na organização
genital do amor sexual adulto, que vai se constituir através da integração de todas estas pulsões parciais
que constituem a sexualidade infantil. Existem diversas elaborações desviantes que vão constituir
psicopatologias específicas. A psicopatologia psicanalítica vai ser o resultado
das várias possibilidades de elaboração da situação edipiana. O prazer perverso pode, neste instante,
ser definido como uma retomada destas organizações libidinais arcaicas, num
movimento que envolve os mecanismos de regressão
e fixação.[14]
O Complexo de Édipo tem uma posição central na estruturação da
personalidade. Por isto, antes de
entrarmos na teoria das perversões gostaríamos de reproduzir um trecho de
Kusnetzoff (1982) pela clareza de sua
interessante terminologia:
O Complexo de Édipo é um
drama dentro de uma estrutura
básica. É um drama porque o sujeito expressa suas vivências em formas de
fantasias que, analogicamente se assemelham a uma peça teatral.
E o
Complexo de Édipo é uma estrutura porque nesse drama fantasiado há uma
organização de personagens interligados entre si. Nessa organização há elementos
ou peças fundamentais e sempre presentes: Mãe, Pai e Sujeito. Continuando com a
analogia estas peças são os personagens básicos do argumento. No entanto, os
atores que viverão esses papéis, assim como as vestimentas, a decoração, a
ambientação e o clima, serão diferentes em cada momento vivenciado pelo
sujeito. Não há nada fora do Complexo de Édipo. Durante a vida inteira a pessoa
continua vivendo essa peça teatral, assumindo diferentes papéis de um argumento
que reflete sua história passada com os personagens do passado e com os
diferentes desfechos a que levaram as combinatórias em seu interacionar quase
infinito. [15]
Achamos que estes
pontos, se bem que muito condensados, podem fornecer subsídios suficientes para
nosso objetivo, que é examinar a presença das perversões nos personagens de Álbum
de Família, peça de Nelson Rodrigues. Uma exposição da concepção psicanalítica
da personalidade pode ser melhor observada em textos do próprio Freud.[16] Mas além disto podem ser encontradas em qualquer dos manuais
clássicos sobre psicanálise. Entre os quais podemos citar alguns livros
clássicos como o os de Otto Fenichel,[17] Franz Alexander (1965) ou
Charles Brenner (1973), entre outros.[18] O Dicinário de Psicanálise de J. Laplanche e J. Pontalis oferece
um referencial de pesquisa insubstituível. No Brasil podemos lembrar dois
excelentes capítulos de Garcia-Roza (1984), O Discurso do Desejo e O Discurso
da Pulsão, além do importante livro de Renato Mezan (1982) sobre
a trama dos conceitos.
[1]
Traduzida do alemõ Trieb.
[2] Em
algumas passagens Freud vai se referir a
instinto, porém com conotações bem específicas, e diferentes da categoria da
pulsão. Definindo o comportamento instintivo poderíamos dizer que ele se
caracteriza “como
complexo, previsível de acordo com a espécie, inflexível, automático e
mecânico, revelando muito pouca variabilidade ou possibilidade de aprendizagem,
isto é, não requerendo condições especiais de aprendizagem para seu
aparecimento. Quando contrariado, o instinto parece cego e estúpido”. D. S.
Martins, Psicologia da Aprendizagem,
p. 22.
[3]
Traduzida do alemão Trieb.
[4]
A esse respeito, ver Benjamin Wolman (
1970 ) e Hall - Lindzey (1972).
[5]
Parte do corpo que é capaz de reagir a uma estimulação sexual.
[6]
Porém em determinados casos, muitas outras partes do
corpo podem reagir eroticamente (como
a boca, o ânus, os órgãos dos sentidos, e mesmo órgãos internos), durante as fases pré-genitais do desenvolvimento da
criança.
[7]
Como Wolman observa; “A energia mental é energia no sentido
físico da palavra, isso é, provavelmente algo que pode transformar-se em outro
tipo de energia, de forma análoga à transformação da energia mecânica em térmica. A energia não
é perecível; pode acumular-se, preservar-se, descarregar-se, dissipar-se,
bloquear-se, porém não pode ser aniquilada. Este postulado da preservação da
energia mental, de sua transformabilidade e seu funcionamento análogo ao da
energia física, é um dos atributos fundamentais da psicanálise". Benjamin Wolman, Teorias y Sistemas Contemporaneos en Psicologia, p. 245.
[8]
Ver a este respeito o livro de Karl
Abraham, Teoria psicanalítica da
libido, que se dedica a um estudo mais
aprofundado das fases oral e anal, desdobrando cada uma delas em dois momentos,
e demarcando de forma clara as origens do sadismo na fase oral canibalística.
[9]
O desejo é a representação da pulsão, que se dá
através dos fantasmas. Tornando mais
claro, os fantasmas são as dramatizações imaginárias da satisfação dos desejos.
[10]
J. D. Nasio, Os 7 conceitos cruciais em Psicanálise
(Rio de Janeiro, Zahar, 1989), citado por M. L. T. de Assumpção, O
Projeto Inconsciente de Machado de Assis, Arquivos Brasileiros de
Psicologia, vol.43, nº. 3/4, 1991, p. 87.
[11]
M. L. T. de Assumpção, O Projeto Inconsciente de Machado de Assis,
Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol.43, nº. 3/4, 1991, p. 87.
[12] Surgem na interação das três instâncias da
personalidade.
[13] Podem ocorrer identificações com o objeto do desejo, com o objeto
perdido, com o rival ou com o agressor. Um melhor desenvolvimento destes mecanismos de
defesa pode ser encontrado no livro de Anna
Freud, O Ego e os Mecanismos de
Defesa.
[14] Diante de frustrações e adversidades intransponíveis, a libido
pode regredir para estágios anteriores do desenvolvimento, que foram mais
satisfatórios para a criança. Já as fixações representam uma parada no
desenvolvimento, ficando a libido fixada tenazmente em componentes da
sexualidade perverso-polimorfa. Segundo Abraham,
estes bloqueios podem acontecer tanto por excesso, como por falta de
gratificação da libido. Karl Abraham, A
teoria psicanalítica da libido.
[15] E Kusnetzoff (1982) complementando pergunta-se, com as
palavras de M. Safouan: “Em outras
palavras... o Édipo é simplesmente uma
história, a história de nosso primeiro amor, nosso amor infantil, ou então é o
intemporal que faz da propria vida uma hitória
que se repete, a ponto de que esta vida corre o risco de nunca nascer?” M. Safouan, A
sexualidade feminina na doutrina freudiana, citado por J. C. Kusnetzoff, Introdução
à Psicopatologia Psicanalítica, p. 65/ 66.
[16]
Cf. S. Freud, Cinco Lições de Psicanálise (1910) e Conferências Introdutórias à Psicanálise (1916).
[17] Otto Fenichel, Teoría Psicoanalítica de las Neurosis.
[18]
Franz Alexander, Fundamentos da Psicanálise; Charles Brenner, Noções Básicas de Psicanálise, Introdução à Psicopatologia
Psicanalítica.