____________________________________O Processo de Criação
Elza Rocha Pinto
O desejo utiliza uma ocasião do presente para projetar, conforme ao modelo do passado, uma imagem do porvir.[1]
Freud
A obra de arte - e sobretudo a obra
literária - não se impõe apenas como um objeto de gozo ou de conhecimento; ela
se oferece ao espírito como objeto de interrogação, de indagação, de
perplexidade. [2]
Gaëtan Picon
Como
um complemento ao referencial psicanalítico, achamos que cabia articular alguns
pontos de vista sobre o proceder da criação artística. Principalmente no que
diz respeito ao fenômeno da inspiração. E incluímos algumas questões sobre o
papel da sublimação. Apesar de Freud
(1908) ter afirmado uma correlação entre a sublimação e a arte, existe no
processo de criação um momento bem nítido que não se pode articular com as
definições clássicas de sublimação. É a “travessia do fantasma”, como diz
Pommier[3]
ou a “manifestação do espírito” nas palavras de Artaud (1971).
Acreditamos
que os trabalhos de leitura crítica que a psicanálise vem realizando sobre
textos literários, não somente ampliam a compreensão de tais textos, como
também permitem um entendimento maior sobre o próprio autor. Além de
contribuírem para tornar mais claro o processo criativo.
Freud se
interessou por alguns pintores: Leonardo da Vinci (1910) e Miguel Angelo
(1914), por escritores como Dostoievski (1928), do qual examina Os Irmãos Karamázov e Crime e Castigo. Da literatura estuda
ainda a Gradiva de Jensen (1907) e
algumas obras de Shakespeare.[4]
Seus estudos muito contribuíram para fortalecer a compreensão de que é
impossível separar o artista de sua criação. Ao realizar sua obra, o artista a
envolve com seu estilo, imprimindo uma espécie de marca registrada nas suas
criações.
Em O Poeta e os Sonhos Diurnos, Freud
(1908) avança uma explicação sobre o processo da arte. Diz que existe uma
grande aproximação entre a brincadeira da criança e a criação do artista.
Toda criança que
brinca se conduz como um poeta, criando para si mesma um mundo próprio, ou,
mais exatamente, situando as coisas de seu mundo em uma nova ordem, agradável
para ela. [5]
A
diferença estaria no fato do artista brincar apenas em sua imaginação. Enquanto
a criança precisa do referente, no real, onde apoiar sua imaginação.
Para
Freud , “a poesia, como o sonho
diurno, é a continuação e o substitutivo dos jogos infantis”.[6]
A criança ao crescer, interrompe o seu brincar, aparentemente renunciando ao
prazer que extraía do jogo. Mas, na verdade, na poesia não existe renúncia
alguma, apenas uma substituição onde o indivíduo vai prescindir “de qualquer
apoio nos objetos reais, e em lugar de brincar, fantasia. Faz castelos no ar;
cria aquilo que chamamos fantasias ou sonhos diurnos”. [7]
O artista
vive intensamente seu mundo interior, apoiando-se não mais nos elementos
externos - os brinquedos de quando era criança, - mas nos elementos simbólicos[8]
já integrados em sua personalidade. Segundo Freud (1908), o artista teria uma
necessidade inadiável de ultrapassar seus tormentos, elaborar seus conflitos e
sentimentos contraditórios, sublimar, enfim, suas pulsões.
Freud
indica o processo da sublimação, através da elaboração destas fantasias. A
criação vai atravessar três dimensões do tempo[9].
A fantasia criadora surge da mesma forma que o sonho: através de enlaces
múltiplos. Uma impressão atual, uma situação do presente, se torna capaz de
despertar um desejo no sujeito. Acompanhamos Freud no desfiar destes tempos:
Uma fantasia flutua
entre três tempos: os três fatores temporais de nossa atividade representativa.
O trabalho anímico se enlaça a uma impressão atual, a uma ocasião do presente,
capaz de despertar um dos grandes desejos do sujeito; a partir deste ponto,
apreende regressivamente, a recordação de um acontecimento passado, quase sempre infantil, na qual ficou
satisfeito tal desejo, e cria então uma situação que se refere ao futuro, e que
apresenta, como satisfação de tal desejo, o sonho diurno ou fantasia, a qual
leva, então, em si, as marcas de sua origem, na ocasião e na recordação. Assim, pois, o pretérito, o presente e o
futuro, aparecem como que entrelaçados pelo fio do desejo, que passa através
deles. [10]
Afirma Freud
que, da mesma forma como os sonhos noturnos são satisfações de desejo, as
fantasias e os sonhos diurnos também procuram realizar os anseios e
expectativas do indivíduo.
Os
escritores de novelas e contos produzem estórias com uma característica singular.
Todas elas tem um protagonista que é o centro do interesse do autor e dos
leitores. É através deste herói que se expressa o ego do autor. Segundo Freud, o ego
é o real personagem de todos os sonhos e de todas as novelas. Mesmo nas tramas
mais complexas dos enredos modernos. Freud vai afirmar que a novela psicológica
deve sua peculiaridade “à tendência do poeta moderno a dissociar seu ego por meio da auto-observação em egos parciais, e personificar em
conseqüência em vários heróis as correntes contraditórias de sua vida anímica.”
[11]
Ou seja,
é o desejo do sujeito que flui através da relação que a fantasia mantém com o
passado, com o presente e com o futuro:
Um poderoso
acontecimento atual desperta no poeta a recordação de um acontecimento
anterior, pertencente quase sempre a sua infância, e desta parte então o
desejo, que se cria satisfação na obra poética, a qual do mesmo modo deixa ver
elementos da ocasião recente e da antiga recordação. [12]
Finalmente,
Freud faz considerações sobre o processo psicológico dos poetas, afirmando que
a vida do artista precisa ser levada em consideração, pois seus conflitos
íntimos influem na elaboração da obra. Esta conclusão vai ser desenvolvida por
Freud, através dos conceitos de projeção e sublimação. A ideia de uma determinação
inconsciente não é nova. Traduz uma retomada do pensamento platônico. Platão
(1952), se bem que não se refira a conflitos íntimos, afirma que o bom poeta é
aquele que enlouquece. Ao criar ele está obedecendo a razões de ordem
extra-lógica, para além do alcance de sua consciência.
O próprio
Nelson Rodrigues compartilha desta opinião de Freud, uma vez que são constantes
as suas referências ao menino que vivia
enterrado nele e que lhe trazia lembranças de um passado profundo. Muitas
das suas crônicas, refazem seu mundo infantil, onde ele muitas vezes foi o
espectador de cenas trágicas e cruéis.[13]
Em suas peças, onde a morte é um elemento constante, esta morte raramente é
natural. Os desfechos trágicos ocorrem em função de violências. Sábato Magaldi
(1987) diz que o próprio Nelson Rodrigues gostava de afirmar que ele tinha sido
marcado pelo assassinato de seu irmão Roberto.
Sobre
esta questão é bem interessante o diálogo que Sócrates mantém com Íon, onde o filósofo afirma que o
artista ao fazer seus lindos versos, da mesma forma como o ator ao representar
intensamente seus personagens, eles não estão em seu juízo perfeito. Perdem a
consciência, caindo na esfera de atração da divindade, e só assim, inspirado
pela Musa ele será capaz de fascinar
os outros com seu canto, sua música ou sua dança.[14]
Assim a criação literária, para Platão, também obedecia a um sentido oculto,
que era necessário investigar.[15]
[1] S.
Freud, O Poeta e os Sonhos Diurnos,
p. 1344
[2] Citado por Valmir Adamor da Silva, em Psicanálise da Criação Literária - As neuroses dos grandes escritores., p. 20.
[3] Gérard Pommier, A sublimação e o final da
análise - em Revista Arriscado - ano II, nº. 4.
[4] Como Hamlet, Othelo e Macbeth.
[5] S.
Freud, O Poeta e os Sonhos
Diurnos, p. 1234.
[6] Op. cit., p.
1347.
[7] Op. cit., p. 1344.
[8] Na literatura a
criação artística vai simbolizar através das palavras aquilo que o autor pretende dizer. O elemento simbólico - a palavra - substitui
o referente.
[9] A criação, para Freud, vai ser o resultado do enlace
entre passado, presente e futuro. Algo na vivência presente do artista se
enlaça com algum acontecimento do seu passado e ele, então, se expressa na obra
de arte. E esta se lança para o futuro, uma vez que cria um mundo inexistente,
um mundo virtual, nem presente, nem passado, um mundo ainda por vir.
[10] O grifo é nosso.
S. Freud, O Poeta e os Sonhos Diurnos, p. 1344
[11] Op. cit.,
p. 1347. Esta afirmação de Freud acaba dando oportunidade para uma
contribuição de Melanie Klein, em
artigo datado de 1929, A personificação
no brinquedo das crianças, onde ela sistematiza e amplia esta idéia. A
criança personifica através de seus brinquedos não apenas seu Ego, mas conteúdos do Id e do Super-Ego, que são distribuídos através dos diversos personagens
que fazem parte da trama de uma determinada brincadeira. Assim como a criança,
ao brincar, vai depositando partes suas nos diversos personagens da
brincadeira, um romancista ao desenvolver seu enredo também vai distribuindo
características da sua personalidade através dos diversos heróis da trama. Um exemplo do próprio Nelson Rodrigues pode ilustrar este fato. Numa das mudanças feitas
por sua família, Nelson encontrou um diário de uma adolescente, entre os
pertences esquecidos pelos antigos moradores. E passa a ler, curiosamente, as
confissões da jovem, cujo nome era Alaíde.
Nelson parece ter sentido sua curiosidade como coisa de mulher, tanto que
projeta este pequeno incidente em Vestido
de Noiva, onde Alaíde acha o
diário Mme. Clessy, passando a lê-lo
atentamente. Ao mesmo tempo projeta outros aspectos de sua vida em outros
personagenes. A expectativa diante da operação da moça, atropelada em frente ao
relógio da Glória leva as pessoas a especular sobre se ela vai morrer ou nao.
Este fato parece refletir a ansiedade pela qual a família Rodrigues atravessou, quando seu tio Augusto Rodrigues, desapareceu durante dias; ele havia morrido
atropelado, em frente ao mesmo relógio, e estava sem documentos.
[12] Op. cit., p.
1347
[13] Como o suicídio
da adolescente que foi sua primeira paixão platônica de menino. A esse
propósito, ver Lilia ardeu como uma
estrela, em Nelson Rodrigues, O Óbvio Ululante, p. 39.
[14] Plato, Íon, p.
142 .
[15] Em oposição, Aristóteles em sua Arte Poética não via razão para se preocupar com os motivos que
levam um homem a escrever. As condições individuais que dão origem a uma obra
de arte não importam. Aristóteles
não estuda o gênio na arte. Para ele a tendência à criação poética podia ser
vista como uma manifestação instintiva fundamental. “A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância
(...) Pela imitação adquire seus primeiros conhecimentos, por ela todos
experimentam prazer (...) a aquisição de um conhecimento arrebata não só o
filósofo, mas todos os seres humanos, mesmo que não saboreiem durante muito
tempo essa satisfação. Sentem prazer em olhar essas imagens, cuja vista os
instrui e os induz a discorrer sobre cada uma (...) Como nos é natural a
tendência à imitação, bem como o gôsto da harmonia e do ritmo (...), na origem
os homens mais aptos por natureza para estes exercícios aos poucos foram dando
origem à poesia ou suas improvisações.” Aristóteles, Arte Poética, p.
294. Aristóteles entendia que a análise estética se esgotava na própria
obra de arte. Interessa-se pelo fim a que se propunha a obra, e pelos meios que
a criação artística empregava, pricipalmente no domínio do teatro. Ao tentar
precisar as características do belo, ele insiste mais nos elementos racionais,
do que nos sensíveis. O belo residiria na grandeza da ordem. Suas formas se
expressam através da unidade ou coordenação (proporção ou simetria, no sentido
grego), na determinação ou precisão. Aristóteles,
Arte Poética, p. 283.