__________________ A Força da Inspiração
Elza Rocha Pinto
Não tenho nem teatro nem palco que não o
teatro de meu inconsciente e de meu coração. [1]
Artaud
Tendo o sofrimento como fonte, o artista vai sendo levado a
criar por um impulso. Impulso que normalmente é chamado de inspiração. Pode-se então dizer, como Adamor Silva, que no artista, a neurose funciona como um
agente de libertação, impondo nele a necessidade de criar. “É uma neurose criadora
onde são amenizadas as animalidades sexuais e homicidas”, diz ele. E conclui
que a neurose é a grande estimulante da arte. “Quanto mais neurotizado o
artista, mais fecunda a sua produção”.[2]
Os gregos diziam que esta qualidade tinha origem divina. O
poeta só tinha o dom de cantar desde que inspirado pelas Musas.[3]
Então ele se tornava semelhante aos
deuses. A inspiração é sentida como uma necessidade, um impulso inadiável
que domina a pessoa como se fosse uma força da natureza; é sentida como exterior à pessoa. Por isso os
gregos imaginavam que o poeta fosse possuído
pela divindade.
O fenômeno da inspiração é valorizado dentro de quase todas
as artes, a partir do século dezoito. A
inspiração será cada vez mais
prestigiada, “até atingir o momento em que o sonho e a fantasia são
representados e traduzidos em palavras”.[4]
Os surrealistas admiravam o processo da
associação livre da psicanálise, e se utilizaram desta técnica como uma
espécie de treinamento para o pensamento criador. Eles procuravam, assim,
induzir a inspiração. Como lembra Kris (1968): “a psicanálise e suas
descobertas atuaram como uma força social sobre a arte e o artista”. [5]
Esta antiga experiência do sagrado é designada, na
modernidade, como transe, espécie de
automatismo psíquico que não se controla. Foi o que fez Guerra Junqueiro[6]
achar que ele só conseguia escrever poemas quando seus versos assim o queriam.
Lamartine chega a negar sua participação na inspiração: “Eu não penso. São
minhas idéias que pensam”.[7]
Foi ainda a constatação desta força da inspiração, equivalente a um surto
focalizado e limitado, que possui o artista no momento da criação, que levou
Platão a afirmar que quando os poetas “conservam o uso da razão eles são
incapazes de produzir algo de maravilhoso ou de sublime”.[8]
Ou o que levou Porto-Carrero (1933) a descrever o momento do transe inspirador
de forma tão expressiva:
O
momento da inspiração é uma crise de angústia. Há qualquer coisa que demanda
exprimir-se; ele não sabe o que seja - é qualquer coisa inconsciente. Enquanto
não a exprime, há como que aquele quadro do “estado de necessidade” em que
ficam os morfinômanos privados de tóxico e ansiosos por ele... [9]
Impulso irresistível, a inspiração é uma obrigação. Como dizia
Aristóteles (1966), só a catarse vai permitir o alívio. Na modernidade,
seus seguidores dentro da psicanálise confirmam:
Uma
vez realizado o transfert sobrevirá o
alívio psíquico, acompanhado de uma sensação de bem estar, euforia. Porque o
momento criador é, para alguns, uma crise de angústia, mas também uma catarse. Desde que satisfaça esta
necessidade, tudo cessará como se acordasse de um pesadelo e depois viesse o
alívio. [10]
Tomado pela inspiração, o artista é um rebelde que se afasta
dos caminhos que ele próprio traçou. São inúmeros os depoimentos de como os
personagens dominam seu autor, de como o enredo se impõe à vontade do escritor.
D. Anzieu tenta explicar este fenômeno em Le
Corps de l’oeuvre através do conceito do duplo imaginário pré-consciente. Diz o autor:
Assim um personagem fictício, chamado a ser o herói do
romance, põe-se a conduzir uma vida própria na consciência do escritor. Eu vejo
aí a manifestação do desdobramento entre Eu ideal (o personagem-herói) e o Eu
consciente (o autor-narrador), desdobramento sobre fundo de continuidade entre
eles. [11]
[1] Teixeira Coelho, Antonin Artaud, p. 99.
[2] Essa hipótese é
bastante interessante, mas mereceria ser melhor pesquisada. Uma coisa é dizer,
como Freud, que o poeta escreve a
partir do sofrimento. A outra é afirmar que todo artista escreve a partir de
uma neurose já estabelecida. Valmir
Adamor Silva, Psicanálise da Criação
Literária - As neuroses dos grandes escritores, p. 41.
[3] Na Teogonia, de Hesíodo, um dos poemas mais antigos de nossa civilização e que
trata da Origem dos Deuses, a
primeira palavra pronunciada é Musas,
genitivo plural, através da qual o poeta invoca estas divindades: “Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar”.
Ou seja, é preciso primeiro pronunciar o nome das Musas, para que elas se apresentem como a força das palavras
cantadas. Elas é que vão dar sentido, força, direção e presença ao canto. Sem
elas não haveria poesia. Hesíodo, Teogonia - A Origem dos Deuses, p. 129.
[5] Op. cit., p. 26
[6] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária - As
neuroses dos grandes escritores, p. 42
[7] Op. cit., p. 42.
[8] Em Íon, Sócrates afirmava que os poetas compõe por instinto, como os
oráculos, que faziam previsões sem ter consciência do que diziam. Platão, seguindo suas idéias, também
sustenta o seguinte: “O poeta é coisa
efêmera, volúvel e sagrada; não contará jamais sem a intervenção de um bafo
divino, sem um doce furor. Longe dele a razão; quando quer obedecer a ela, nada
produz; nem versos, nem oráculos... Os poetas não criam sua arte. Um deus, o
deus que subjuga o espírito toma-os por ministro. Quer, ofuscando-lhes o
sentido, ensinar-nos que eles não são autores de todas as maravilhas (...) os
poetas, no momento que têm a alma tranquila e que conservam o uso da razão,
tornam-se incapazes de produzir algo de maravilhoso ou de sublime. Somente
quando, dominados pela harmonia e pelo ritmo, entram em delírio, compõem e
elevam a nossa admiração”. Platão, Íon, p. 144/145.
[9] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária - As
neuroses dos grandes escritores, p. 42.
[10] Op. cit., p. 37.
[11] D. Anzieu, Le Corps de l’oeuvre. Paris, Gallimard,
1981. Citado por Maria Luiza Teixeira de
Assumpção, O Projeto Incosciente de Machado de Assis. Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 43,
nº. 3/4, p. 86.