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Catarse e a Obra de Arte
Assim
os cantos que purificam a alma
causam em nós um
encanto sem perigo [1]
Aristóteles
Podemos dizer que existem algumas equivalências entre a
situação da criação de uma obra e o tratamento psicanalítico. E seria uma
tarefa interessante, para outro momento, delimitar estas equivalências, pesar
as semelhanças e diferenças, analisar com cuidado as aproximações. Por agora
achamos pertinente apenas avançar algumas observações. Em análise, o paciente
relata seu mundo interior ao analista, e escuta suas interpretações. O mito de
Pigmalião poderia perfeitamente aplicar-se à figura do analista. Ele representa
de forma cristalina o vínculo do artista com sua obra. Foi nela que Bernard
Shaw se inspirou ao escrever sua comédia Pigmalião, em 1912. Pigmalião foi um
famoso escultor de Chipre, uma ilha do Mediterrâneo. Segunda a lenda, Vênus
zangada com as mulheres de Chipre, quando estas lhe negaram a divindade, impôs
como castigo a total falta de recato. Pigmalião, revoltado contra o
comportamento sem pudor destas mulheres, esculpiu em marfim a estátua de uma
formosa mulher. “Esta era uma obra-prima de tal perfeição e de tal fascínio que
o próprio escultor se apaixonou imediatamente por ela. Fez sentidas súplicas a
Vênus pedindo que desse vida a sua estátua, a que a deusa do amor não ficou
indiferente. Animou, pois, com o sôpro da vida, a criação de Pigmalião. O artista
pôde então tomar por esposa a própria mulher que inventara na pedra.” [2]
O contexto do atendimento psicanalítico se propõe à
construção de um novo sujeito. Neste sentido o psicanalista também cria uma
obra, aberta, viva
Por outro lado, com certeza o artista se confessa através
daquilo que cria. Um escritor nunca consegue se libertar totalmente de seu
mundo interior. Suas contradições e
ambigüidades vão sempre extravasar em sua produção. Neste transbordamento e
através desta catarse, o autor vai realizando uma melhor elaboração de seus
fantasmas.
Tanto o artista quanto o sujeito em análise se confessam. Uma
diferença, entretanto, está no fato do paciente em análise confessar-se ao
analista, enquanto o artista se confessa para o público. Esta particularidade
determina uma outra diferença significativa entre os dois processos, e que diz
respeito à interpretação. De forma semelhante, tanto a obra, quanto o sujeito
em análise são interpretados. Mas em análise, a interpretação é interativa e
dual. Enquanto que na obra de arte a interpretação é sempre coletiva. Porém, apesar
de ser múltipla, ela mantém também o caráter interativo. Para além da
interpretação do artista existe a interpretação do fruidor. A opinião do
público, por vezes, pode influenciar a visão do artista, ampliando,
modificando, transformando a concepção de sua própria obra. Não se pode deixar
de notar que existe uma intensa comunicação entre eles. É no mínimo digno de
nota, o interesse dos pintores pelas opiniões do público, por ocasião da
inauguração de suas exposições.
É sabida a repercussão que a opinião pública acaba por ter no
direcionamento das novelas. Este é um fenômeno cuja leitura não deveria ser
reduzida apenas a um problema de marketing. Seria interessante abordá-lo
através das interações e articulações que se formam entre as fantasias
inconscientes dos autores e as interpretações do público, as quais se originam,
com certeza, nas fantasias inconscientes e coletivas destes espectadores.
E também é notória a ansiedade dos autores teatrais por
ocasião da estréia de suas peças, querendo ouvir os comentários dos
espectadores. Nelson Rodrigues, por exemplo, ficava indócil, e em suspense,
aguardando as reações da plateia. Durante as representações de O Beijo no Asfalto (RODRIGUES,
1960/1965), Nelson chegava a ficar de
tocaia, no saguão do teatro, para abordar os espectadores que desistiam de ver
sua peça até o final. Puxava conversa com eles, discutia, argumentava, e muitas
vezes conseguia até convencê-los a voltar para a plateia.
No caso de Nelson Rodrigues, a interpretação de sua obra
torna-se até bem pública. É dele a seguinte frase: “A obra de arte quando
nasce, é preciso que ela encontre oposição, que desagrade, irrite”.[3]
Sua obra teve este poder, e por isto Nelson foi bastante interpretado. Em diversos momentos, estas interpretações poderiam
ser emblemas de uma psicanálise selvagem.
Nelson Rodrigues algumas vezes ficou mobilizado. Por exemplo, quando Alceu Amoroso
Lima lamentou que ele estivesse sempre envolvido
na lama, referindo-se, naturalmente, ao fato de Nelson retratar com tanta
franqueza as baixezas e infâmias do ser humano, que sempre constituíram sua
matéria de inspiração. Nelson, sentido, nunca mais voltou a falar com o Dr.
Alceu, e chegou a fazer uma crônica, Reze
Menos por Mim (1968/1993),[4]
onde desabafa:
...qualquer
um tem seus íntimos pântanos, sim, pântanos adormecidos. É preciso não
despertá-los. Mas certos acontecimentos acordam a lama do seu negro sono.
Quando isso acontece, a alma começa a exalar o tifo, a malária, e a paisagem
apodrece. [5]
Em diversas ocasiões Nelson foi interpretado pelos próprios
amigos. Algumas destas observações feriam Nelson. Por exemplo, quando Manuel
Bandeira sugeriu que ele escrevesse sobre pessoas normais. (CASTRO, 1992) [6]
Ruy Castro (1992) comenta que Nelson ficou magoado por
perceber que, se Manuel Bandeira, um estudioso dos gregos, franceses e
espanhóis, podia interpretá-lo tão mal, possivelmente a maior parte das pessoas
não conseguiria enxergar “que a força
que o movia era uma profunda ‘nostalgia da pureza’ - pureza que só seria
atingida depois que o homem chapinhasse descalço sobre as mais hediondas
impurezas”. Foi tentando explicar-se que Nelson escreveu Dorotéia (RODRIGUES,1949/1965).
Segundo a opinião de Sábato Magaldi (1987) Nelson não teria
mudado sua trajetória, em função das pressões recebidas.[7]
Concordamos. O autor está se referindo ao nítido corte que ocorreu entre Valsa nº. 6 (1951/1965) e A Falecida (1953/1965). Foi preciso que Nelson
Rodrigues esgotasse a elaboração interna que fazia através de suas peças
míticas para que finalmente conseguisse mudar a trajetória de suas peças,
entrando na veia que constituiu as chamadas tragédias cariocas. Porém, com
certeza, as interpretações recebidas auxiliavam uma melhor elaboração de sua
temática interior. O próprio Nelson sabia disto, como mostra um comentário seu
onde reconhece a complexidade do processo catártico:
Em
“Crime e Castigo”, Raskolnikov, mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio
social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele matou por todos. E,
no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse
fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a plateia, é
preciso encher o palco de assassinos, de adúlteras, de insanos e, em suma, de
uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos
libertamos, para depois recriá-los. [8]
Se esta catarse ocorre para o artista, também acontece o
mesmo processo para o leitor. Através de um processo de identificação, o leitor
pode se colocar no lugar do personagem, e viver suas aventuras e infortúnios
como equivalentes aos seus. Estas afinidades ou antipatias do leitor com os
personagens fornecem novos parâmetros para o autor. Modificações fundamentais podem
ser determinadas através de como a peça se rebate na plateia, ou de como uma
novela impacta o público; e nem sempre motivadas por simples motivos
comerciais. Damos a seguir um exemplo. Ao escrever Asfalto Selvagem (RODRIGUES, 1959), Nelson Rodrigues inúmeras vezes incluiu pessoas e situações
sugeridas por seus leitores e amigos, sem falar que na vida de Engraçadinha participavam personagens
reais, como Otto Lara Resende e Gustavo Corção. Após a publicação de um livro,
inicia-se uma intercomunicação afetivo-emocional, por limitada que seja, entre
os leitores e o escritor. Isto acontece
através da repercussão da obra nos meios de comunicação, ou pelos contatos
individuais entre o autor e seus ouvintes, durante conferências e palestras. Esta interação, por
vezes, leva o poeta a reelaborações e insights
completamente divergentes de seus parâmetros iniciais. E pode revelar-se
profundamente enriquecedora. O autor está
sendo interpretado pelo público, da mesma forma como por vezes o
analista interpreta seu paciente.
A diferença é que no caso da obra de arte, a interpretação
percorre uma via de mão dupla. Não apenas o artista é interpretado. Mas ele interpreta
o público com sua obra. Isto é reconhecido desde os tempos gregos. Aristóteles
na Arte Poética (325-323 AC/1966) definiu
o processo da catarse como uma espécie de cura
e purificação onde as almas conseguem
alívio libertando-se das paixões.
[1] Aristóteles, em Arte Poética, p. 284
[2] Enciclopédia
Barsa, p. 16.
[3] Entrevista
concedida para o Ciclo de Teatro
Brasileiro do Museu da Imagem e do Som, em 30/6/67, p. 15.
[4] Nelson Rodrigues, O Óbvio Ululante, p. 21.
[5] Op. cit.,
p. 23.
[6] Ruy Castro, O Anjo Pornográfico.
[7] Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações.
[8] Revista Veja,
11/3/1980.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- ARISTÓTELES (325-323 AC) - Arte Retórica e Arte Poética (s/de). Rio de Janeiro: Edições de Ouro.
- __________________________ - Poética (1966) - Porto Alegre: Editora Globo.
- CASTRO, RUY - O Anjo Pornográfico, A Vida de Nelson Rodrigues (1992). São Paulo: Companhia das Letras.
- ENCICLOPÉDIA BARSA - Encyclopaedia Britannica Ltda, Rio de Janeiro / São. Paulo.
- MAGALDI, SÁBATO (1987) - Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações. São Paulo: Editora Perspectiva.
- RODRIGUES, NELSON (1949) – Dorotéia, in Teatro Quase Completo (l965) - 4 volumes - Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro Ltda.
- ______________________ (1951) – Valsa no. 6, in Teatro Quase Completo - 4 volumes - Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro Ltda.
- ______________________ (1953) – A Falecida, in Teatro Quase Completo (l965) - 4 volumes - Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro Ltda.
- ______________________ (1959) – Asfalto Selvagem: Engraçadinha, Seus Pecados e Seus Amores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
- ______________________ (1960) – O Beijo no Asfalto, in Teatro Quase Completo (l965) - 4 volumes - Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro Ltda.
- ______________________ (1965) - Teatro quase completo - 4 volumes - Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro Ltda.
- _____________________ (1967) - Entrevista para o Ciclo do Teatro Brasileiro do Museu da Imagem e do Som, em 30/06/67. Participação dos entrevistadores: Walmir Ayala, José Lino Grunewald, Fausto Wolff, Otto Lara Resende, Helio Pelegrino.
- ______________________ (1968) - Reze Menos por Mim, in “O óbvio ululante: Primeiras Confissões” (1993). Crônicas. Seleção de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras.
- ______________________ (1980) – Entrevista publicada na Revista Veja, 11/3/1980.
- ______________________ (1993) - O Óbvio Ululante: Primeiras Confissões. Crônicas. Seleção de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras.