___________________________Arte e Sublimação
Elza Rocha Pinto
O poeta é um fingidor. Finge tão
completamente, que às vezes finge que é dor, a dor que deveras sente.
Fernando Pessoa
Sendo a arte uma manifestação das paixões do artista, a
psicanálise cuja matéria essencial é o desejo, sempre contribuiu para esclarecer alguns dos motivos
determinantes do poeta. Ou seja, o
conhecimento que a psicanálise organizou em torno da subjetividade, com certeza
auxilia na maior compreensão do artista
em seu processo criador. Neste domínio gostaríamos de examinar duas idéias.
A primeira é a que se refere à obra como uma formação de
compromisso, onde ocorre a projeção de várias instâncias da personalidade,
fragmentadas nos diversos personagens.[1]
Para a psicanálise o artista não pode fugir de si mesmo. Seus desejos
inconscientes vão transacionar com o possível
estabelecido pelas restrições do real e da moral. E o resultado desta transação
será expresso através de uma das várias formas artísticas. Caso procure se
esconder, ou tentar controlar a
expressão de seus impulsos, o artista
transformará seu trabalho numa produção menor. Da mesma forma Platão
afirmava que só sob inspiração divina o artista poderia chegar a compor versos
que iriam contagiar a platéia. Sem a inspiração da loucura o artista poderia
até criar, mas sua arte não teria o mesmo poder de encantamento e fascínio. Na
falta de uma melhor tradução, preferimos deixar o texto em inglês:
For the poet is a light and winged
and holy thing, and there is no invention in him until he has been inspired and
is out of his senses, and the mind is no longer in him: when he has not
attained to this state, he is powerless and is unable to utter his oracles. [2]
Fora desta condição de dominação inconsciente, a arte deixará
de ser espontânea, para ser fabricada. Deixará de ser inspirada, para ser
cerebral e racionalizada. Aquilo que os artistas chamam de inspiração se refere a esta inexorabilidade da expressão
inconsciente. E parece ter correspondência com o que Nietzsche (1982) chamava
de intuição,
ao criticar o predomínio da razão, no
mundo ocidental.
A segunda idéia que gostaríamos de examinar, refere-se à
hipótese psicanalítica que afirma a arte
como sublimação das pulsões. A sublimação, como já vimos, é uma das inúmeras defesas que fazem parte do
aparelho psíquico. Situa-se entre outras, como
a projeção, a racionalização, a idealização, a identificação. O termo sublimação passa por uma série de transformações
em Freud, o que pode gerar algumas confusões. Segundo Kris (1968) a sublimação
designaria dois processos intimamente relacionados, de tal forma que em geral
são fundidos um no outro, e transformado em um único e mesmo processo: “o deslocamento de energia de um objetivo
socialmente inaceitável para um outro aceitável, com uma transformação da energia empregada”.[3]
Numa tentativa de clarificação, Sophie Mellor-Picaut em seu artigo Idéalisation et Sublimation acompanha o
desenvolvimento do conceito na obra de Freud, mostrando como ele vai ganhando a
conotação de um deslocamento para o alto, numa “associação com o sutil ou com o sublime que o aproxima dos
ideais”. A partir de O Ego e o Id a sublimação
“como um processo de metabolização da pulsão”, diz Mellor-Picaut, “não se
limitou a uma definição em termos de afastamento de um objetivo sexual ou de
intelectualização.” A noção tinha se aproximado do mecanismo da identificação:
Esta
última, como processo de metabolização da pulsão, não é limitada a uma
definição em termos de afastamento do objetivo sexual, ou de intelectualização.
Em troca, ela se aproxima da identificação, portanto de uma operação onde o Eu
renuncia a achar seus objetos ideais no exterior dele mesmo e, pela introjeção
precedida pela renúncia de seus objetos, faz dela seu elemento constitutivo
mais importante.[4]
A pulsão inconsciente procura sua realização através dos
novos objetivos que vão sendo incorporados ao Ego. Estes ideais, por sua vez,
vão surgindo através das várias identificações que se processam no decorrer do
processo do desenvolvimento.
O artista utiliza-se da projeção como uma forma de catarse,
para se livrar de conteúdos angustiantes e conflitivos. Mas, por outro lado,
ele está em processo de sublimação destes
impulsos, transferindo para as obras uma libido dessexualizada, que
acaba por domesticar as pulsões mais primitivas. Neste sentido a arte pode ser
definida como o faz Adamor Silva (1984):
Arte
é, pois, a confissão simbólica de segredos inconfessáveis. Como nos estados
oníricos funciona como verdadeiro extravasamento, requerendo um psicanalista
hábil para transformar o conteúdo latente
em conteúdo manifesto. [5]
O psicanalista neste caso seria o próprio artista, capaz de
se auto-interpretar, traduzindo o conteúdo latente de seu mundo interior em
conteúdos disfarçados, que vão conformar a obra de arte.
Esta
opinião seria com facilidade compartilhada por Nelson Rodrigues, que uma vez
fez uma comparação entre seu ofício de escritor e a psicanálise. Reconheceu que
sua obra funcionava como uma sessão de análise, ainda que ele sempre
reafirmasse a sua posição contrária às teorias de Freud:
Vivo
preso à minha infância profunda. Trago-a dentro de mim. Como também o desejo
intenso de amar o ser humano. Eu não diria que a minha obra é uma análise,
porque o psicanalista não existe no meu caso. A minha obra é o que me salva. É
possível que sem a minha obra - se eu não fosse dramaturgo, se eu não fosse
romancista, se eu não fosse tudo isso - eu tivesse levado a breca. Eu podia estar
na esquina rasgando dinheiro, caso não tivesse essa possibilidade de expressão.
Este é o meu caso. [6]
É esta delimitação da arte como sublimação que vai permitir
Freud (1914) afirmar que Miguel Angelo, ao esculpir estátuas de nus masculinos
estaria sublimando a própria homossexualidade. Já Dostoievski[7]
sublimava seus impulsos parricidas através de seus personagens. E, em
radicalizadas generalizações encontramos alguns autores como o próprio Adamor
Silva (1984) afirmando que o tema do adultério tão freqüente em contos,
novelas, filmes ou poesias, nada mais seria do que a sublimação do incestuoso
complexo de Édipo. O artista, livre da culpa de uma relação proibida,
transferiria esta responsabilidade para o amor ilícito de seus próprios
personagens.[8]
Sem dúvida a arte permite uma forma diferente de lidar com as
paixões interiores. O homem comum, diante de suas pulsões, vai procurar uma
fuga. Seu objetivo é evitar o sofrimento através de processos defensivos, ou da
ação de censura do superego. Ele procura inibir ou reprimir as tendências que
considera agressivas ou amorais. Poderá representar
suas fantasias mais perversas, criar o domínio
dos sintomas, materializando uma neurose ou uma perversão. Poderá até mesmo
enlouquecer, para fugir de um desatino maior, ao lidar com os flagelos das
tensões. Já o criminoso e o psicopata se livram da angústia e do sofrimento de
uma outra forma. Eles realizam o ato
delituoso. Mas todos estes dramas se
passam no território do homem mediano. Porque nos domínios do artista passa-se
algo diferente. Em seu artigo, O projeto Inconsciente de Machado de Assis, Maria Luiza T.
Assumpção sintetiza a questão da sublimação:
Entre
o mundo interno e o mundo externo há uma área de ilusão, onde se dá a criação e a representação.
Através da sublimação representam-se ações que de outra forma não seriam
aceitas pelo social, não seriam liberadas.[9]
O artista tem recursos para se liberar destas ações. Nele a
sublimação se especializa: inspira-se em desejos inconfessáveis, dessexualiza
os impulsos da libido, alivia tensões fazendo a catarse, e cria a obra de arte.
[1] Melanie Klein, em artigo de
1929, A personificação no jogo das
crianças, mantendo a analogia que Freud faz entre o sonho e o brinquedo,
explicita melhor esta idéia. O conteúdo do brinquedo da criança, que se repete
constantemente, teria como função a descarga das fantasias sexuais. Indica a personificação como um mecanismo
importante no brinquedo que a criança inventa. Através dos personagens que a criança
introduz no jogo, vão se personificando as instâncias da personalidade. Dois
bonecos em uma brincadeira podem estar fazendo a parte do super-ego e do ego,
enquanto que em outro jogo podem desempenhar os papeis do id e do ideal do ego. O super-ego pode se dissociar em suas
identificações primárias, que foram introjetadas durante os diferentes estágios
do desenvolvimento. “Creio que estes
mecanismos (dissociacão e projeção) são um fator principal na tendência à
personificação no jogo (...) O conflito intrapsíquico se faz assim menos
violento e pode ser deslocado para o mundo externo”. Os jogos implicam personificações através do
mecanismo de representação de personagens. Os personagens podem apresentar
rápidas modificações; o amigo pode se transformar em inimigo; a bruxa má se
transforma numa fada madrinha. Muitas vezes, estas modificações são observadas
depois de uma interpretação, que acabou por permitir que a liberação da
ansiedade, até então mal resolvida por uma inadequada dinâmica interna. As imagos terroríficas da primeira infância
vão se transformando em identificações mais benévolas, diminuindo-se a
severidade do super-ego, fortalecendo-se o ego, e permitindo-se uma expressão
controlada das pulsões do id. Melanie Klein, A personificação no jogo das crianças, em Contribuciones Al Psicoanalisis, p. 196.
[2] Plato, Íon, p. 144
[3] O grifo é nosso.
Ernst Kris, Psicanálise da Arte, p. 22/23
[4] Sophie
Mellor-Picaut, Idéalisation
et sublimation, p. 137
[5] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária - As
neuroses dos grandes escritores, p. 32.
[6] Citado por Stella Rodrigues, Nelson Rodrigues, meu irmão.
[7] S. Freud, Dostoievsky e o parricídio.
[8] Concordamos em
tese com esta interpretação. Porém temos que lembrar as circunstâncias
especiais que regem determinadas traições. Em Nelson Rodrigues, por exemplo, a traição feminina parece estar
vinculada à intensa luta da mulher pela conquista de uma sexualidade mais
livre. Além disto é preciso considerar que o prazer da traição, em si mesmo,
tem um peso. Sobre esta questão, é o próprio Nelson Rodrigues quem fala: “A vida como ela é... foi realmente
durante 10 anos, dia após dia, um sucesso ferocíssimo, uma coisa incrível.
Embora todo mundo a achasse imoral, mórbida, etc. Durante 10 anos, dia após
dia, o leitor tomava conhecimento do adultério do dia. A única coisa que
realmente não morre como estória é o adultério, seja até um adultério de
galinheiro, de galinhas. Faz um sucesso incrível, e o negócio de trair, a
mulher trair, ora, esse é o destino dela. E o homem compreende isso. É uma
coisa deliciosa, uma satisfação cruel, incrível”. Nelson Rodrigues, Depoimento prestado ao Serviço Nacional do
Teatro, em 4/12/1974, p. 115.
[9] Maria Luiza Teixeira de Assumpção, O Projeto Incosciente de Machado de Assis. Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 43,
nº. 3/4, 79-105, 1991, p. 103.