______ __ ______________________A Criação e o Sofrimento
Elza Rocha Pinto
Nunca ninguém escreveu ou pintou,
esculpiu, modelou, construiu, inventou,
a não ser para sair realmente do inferno.[1]
Artaud
Mas, e o que leva o homem até a expressão de seus conflitos
através de uma obra de arte? A inspiração, motivada pelo sofrimento, seria uma
das respostas possíveis. Dentro de uma concepção trágica da criação, alguns
artistas chegam a afirmar que o sofrimento é essencial para a qualidade da obra
de arte. Freud (1908) aceita esta perspectiva, tanto que em O poeta e os sonhos diurnos, ele
observa:
Pode-se
afirmar que o homem feliz jamais fantasia, e sim somente aquele que é
insatisfeito. As pulsões insatisfeitas são as forças impulsionadoras das
fantasias, e cada fantasia é uma satisfação de desejos, uma retificação da
realidade insatisfatória. [2]
Esta posição de Freud vai ser desdobrada pelo escritor e
contista Adamor da Silva , um admirador da psicanálise. Entre diversas
publicações este autor tem um livro muito interessante, onde analisa inúmeras
poesias e romances do ponto de vista psicanalítico. E é em Psicanálise da Criação Literária, que encontramos o seguinte:
Sem
a concorrência da neurose, ou mesmo leves conflitos psíquicos, a Arte seria
medíocre. Para sua realização completa há invariavelmente, a presença da dor,
do sofrimento, e até da infelicidade. É a regra geral da qual poucos fogem.
(...) O sofrimento é seu patrimônio e a Arte, a sua grande libertadora. Artista
feliz é raro. Quando feliz, produz pouco ou é medíocre.[3]
Como já vimos, existe uma relação muito próxima entre a vida
emocional do artista e sua criação. E, realmente, o sofrimento parece ser uma
importante força inspiradora. Artaud (1971) chegou a implorar por seus
delírios, acusando seu médico de querer retirar-lhe, por meio de eletrochoques,
a base de sua poética. O romantismo, em sua vertente alemã, torna corrente este
ponto de vista: o sofrimento passou a ser a marca essencial da boa poesia. Sem
o sofrimento o artista seria estéril, ou faria poesia de má qualidade. Sobre
esta vinculação da arte com a dor, Maria Luiza T. Assumpção (1992) analisa:
O
trabalho através da literatura constituiu-se, na verdade, na tentativa de
preservar o investimento, pelo qual se sente responsável, e abolir o
sofrimento, diminuindo o conflito entre o desejo e o sofrimento. Com isto,
podendo chegar tanto ao extremo do mundo interior, o delírio, quanto ao extremo
do mundo exterior, a criação.[4]
Sem o sofrimento talvez o artista ficasse reduzido a ser um
homem comum, onde a capacidade criativa voltar-se-ia para objetivos mais
funcionais. Nietzsche expressa esta mesma opinião em A Origem
da Tragédia.
Realmente, talvez uma das forças do artista esteja na
vivência de um mundo interno bastante conturbado por distúrbios e conflitos,
determinando nele a necessidade de se exorcizar. T. S. Elliot afirmava que
ninguém faz poesias para expressar suas emoções, e sim para fugir delas.[5]
A obra de arte seria então uma espécie de exorcismo destes demônios interiores.
O artista sempre parece ter uma necessidade inevitável, e inadiável, de
exprimir seus tormentos. Só que, à diferença do homem comum, uma das qualidades
do artista é seu dom de transformar o sofrimento em beleza. O artista é capaz
de materializar sua dor, seus tormentos e suas misérias em uma forma estética
capaz de fascinação. A magia da arte vai recobrindo sofrimentos e alegrias com
as belas roupagens da música, da escultura, da pintura, da literatura, da
dança. Dostoievsky (1963) escreve sua obra a partir de um intenso sofrimento.
Seus romances são sombrios. Memória da
Casa dos Mortos reflete a densidade de seus tormentos. Humilhados e Ofendidos parece revelar a opressão do autor diante da
vida, que tanto o maltratou. Sem falar
dos sofridos personagens de Crime e
Castigo ou dos Irmãos Karamazov.
A medida desta dor é dada por suas palavras:
“Deus torturou-me durante toda minha vida”.[6]
Porém, contraditoriamente, ele extraía sua força da própria doença. Sentia-se
extraordinariamente bem durante as crises epilépticas, chegando a dizer que
“daria dez anos de vida para prolongar tais momentos”.[7]
Segundo ele confessava, a felicidade que ele sentia nestes momentos jamais
poderia ser experimentada no estado natural.
Botticelli, inválido desde muito cedo, com saúde precária e
físico pouco desenvolvido, sublima sua fragilidade e nos encanta com um
auto-retrato onde se visualiza como um robusto jovem florentino,[8]
expressando uma imagem idealizada de si mesmo. Toulouse Lautrec,[9]
cuja auto-imagem parece ter sido tão afetada pelos acidentes que o deformaram,
procurava encobrir sua infelicidade sob a aparência de uma falsa alegria.
Retratou profissionais da diversão: palhaços, bailarinas, amazonas, cantores;
assim como garçonetes dos bares e prostitutas. Seu gênio conseguiu transformar
a sordidez dos cafés e bordéis de Montmartre em expressivos quadros que
imortalizaram os sensuais movimentos do can-can. Sua dor, no entanto, estava
registrada através dos tons apáticos que usava, e na economia e quase desprezo
pelas cores.[10]
Com sua pintura ele ia testemunhando o inferno pessoal de cada um dos
retratados, além do seu próprio.
É a esse inferno pessoal que Lautréamont (1986) se refere em
seus Chants de Maldoror, aceitando
corajosamente seu destino:
A
l’heure que j’écris, de nouveaux frisson parcourent l’atmosphere
intellectuelle: il ne s’agit que d’avoir le courage de les regarder
en face. [11]
E é de seu inferno
particular que Artaud (1971) retira sua força. Artaud convivia bem com a
dimensão do trágico. De forma semelhante aos artistas citados, a tragédia, para
Artaud, sempre foi vivida com espírito dionisíaco. Melhor do que ninguém, ele
sempre se deu conta que diante do sofrimento, da dor e da loucura, não havia
nada a fazer, além de escrever. Era isto que o sustentava, pois ele costumava
dizer que escrevia para não morrer. A arte, para ele, agia com força
imperativa. Ao defender seus estados delirantes como sendo a base de sua
poesia, Artaud constituiu uma das
páginas mais belas da anti-psiquiatria.
Esta constatação sobre a força do sofrimento, tão lúcida e
acessível para qualquer poeta, só aos
poucos foi sendo admitida pela psicanálise. Não para Freud que, como vimos, já
possuía esta noção. Mas, entre seus seguidores, nem sempre o sofrimento foi bem
aceito. Mesmo hoje em dia, para a maioria dos psicanalistas a tragédia nunca é
celebrada, [12]
como em Nietzsche, em Dostoievsky, ou como em Lautréamont.
Diferente do homem comum, o artista tem um dom: o de
transformar em beleza todo um universo de sofrimentos. O horrível, o absurdo na
existência, vai sendo transfigurado em imagens ideais que acabam por tornar a
vida uma celebração. Imagens sublimes, cômicas, dramáticas ou mesmo trágicas
vão se presentificando nos sons das melodias, nas cores das paisagens pintadas,
nas imagens do cinema, nos movimentos da dança
ou nas graciosas formas de uma estátua.
[1] Citado por Teixeira Coelho em Antonin Artaud, p. 88
[2] S, Freud, O poeta
e os sonhos diurnos, p. 1344.
[3] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária, As
neuroses dos grandes escritores, p. 36.
[4] Maria Luiza Teixeira de Assumpção, O Projeto Inconsciente de Machado de Assis:
O morto na vida e obra de Machado de Assis - Mito e Fantasma, Arquivos
Brasileiros de Psicologia, vol. 44, nº. 1/2, 1992, p. 125.
[5] Tom e Viv
[6] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária, As
neuroses dos grandes escritores, p. 93.
[7] Op. cit., p. 41.
[8] Retrato do Desconhecido, em Botticelli, Gênios da Pintura, vol. 11, prancha III.
[9] Toulouse Lautrec, em Gênios da Pintura,
vol 37 .
[10] Este fato pode ser
obsservado em seu quadro La Troupe de
Mlle. Eglantine ; observam-se ainda
os tons sombrios e as massas de cores de denso volume no Exame na Faculdade de Medicina. Toulouse Lautrec, Gênios da
Pintura, vol. 37, pranchas V e XVI.
[11] D. I. Lautréamont, Les Chants de Maldoror.
[12] É difícil para
um analista admitir a valorização do sofrimento e da dor por parte de seus
pacientes, fato que normalmente seria tomado como indício de perversão
masoquista.