__________________________ O Delírio e a Prática Psicanalítica
Elza Rocha Pinto
Quero estar desperto no sonho e conduzir meus sonhos como um homem desperto. Não aceito o inconsciente, não quero saber disso dentro de mim, de modo algum. [1]
Artaud
A prática da clínica psicanalítica não pode se desvencilhar
de alguns referenciais teóricos. E por isto às vezes os psicanalistas acabam
por agir como os médicos citados por Artaud, e não aceitam o delírio em seus
pacientes.
Para a psicanálise, as defesas das pessoas precisam estar
ajustadas na justa medida platônica.[2]
Na medida. Não fora dela. O
trabalho do analista acaba sempre por focalizar o ego, tanto na perspectiva
mais ortodoxa quanto na linha lacaniana. Freud e Melanie Klein sempre
assumiram, sem o menor pudor, seu compromisso com a cura. Mas a escola
lacaniana parece ter reagido a isso.
Mas, na genealogia do psicanalista existe um fio que vem do
filósofo, passa pelo confessionário e termina no divã do consultório. A escuta
do paciente pelo seu analista veio substituir claramente a confissão católica.[3]
A terapia laica dentro da cidade é uma cena que vai sendo constituída aos
poucos. Antigamente o tratamento da problemática psíquica era basicamente
religioso. Não foi à toa que Levi-Strauss (1991) comparou os terapeutas da
cidade com a figura religiosa dos pagés e feiticeiros nas primitivas tribos
indígenas. Ao analisar a eficácia
simbólica, ele afirma:
A
psicanálise pode recolher uma confirmação de sua validade, ao mesmo tempo que a
esperança de aprofundar suas bases teóricas e de melhor compreender o mecanismo
de sua eficácia, por uma confrontação de seus métodos e de suas finalidades com
os de seus grandes predecessores: os xamãs e os feiticeiros. [4]
O perdão dado pela figura do padre se transformou na elaboração da culpa, que o paciente vai
realizar acompanhado por um super-ego
externo menos cruel, o analista. Ora, a crítica marxista vai focalizar a religião como um anestésico, um ópio do povo. O padre católico seria o
moderno traficante desta droga. Lacan deve ter percebido a nítida correlação
entre estas duas gestalts: o confessor e seu penitente, e o analista com seu
paciente. Sendo a culpa sempre o fulcro da questão. A compreensão do caráter
social e político, do exercício e da prática psicanalítica, no contexto do
século XX, podem ter determinado a reação da escola lacaniana quanto à prática
da cura.[5]
Ora, em paralelo, o impacto brutal dos bits e bytes marcaram uma
diferença acelerada por relação ao tempo em que Freud viveu. Na era da
comunicação, a velocidade das transformações tem sido muito intensa. Se a
psicanálise foi a prática revolucionária da passagem do século, já deixara de
ser em poucos anos de existência. Hanna Arendt (1987) reeditou muito
adequadamente o caráter público do ato político grego. O ato político é um ato
grupal. É nas ruas que se faz a política. Nas praças. Ou nas passeatas. Não nos
consultórios semi-iluminados dos psicanalistas, onde o sujeito volta-se para
dentro de si mesmo, numa viagem quase interminável ao interior de uma
subjetividade particular. Não há política no particular.
Talvez por isto Lacan tenha tentado recusar o papel do novo
religioso. Intelectual de esquerda, ele não poderia compactuar com a idéia de
estar contribuindo para a formação de uma população dócil e bem adaptada. Os
lacanianos sempre afirmaram que não há objetivos de cura, quando atendem um
paciente. Mas isso não se sustenta: nem teoricamente, nem na prática.[6]
Lacan tenta confirmar sua distância das concepções naturalistas da psicanálise freudiana
com o auxílio da lingüística saussureana. Uma lingüística estruturalista. Sem
falar do recurso às matemáticas, que forneceram os famosos matemas. E que fazem um combate ruidoso contra as categorias
do imaginário. Foi assim que a psicanálise francesa se modernizou, passando a
enxergar a psicanálise americana com um certo desprezo. Esta é acusada entre
outras coisas do pecado da “cura”, pois quer livrar o paciente de suas loucas
fantasias, e de seus estranhos delírios. Os plebeus americanos vulgarizaram a
psicanálise, pois em vez de se centralizarem simplesmente na nobre escuta do
inconsciente, se arremeçaram ao fortalecimento do ego. E pretenderam
desenvolver todo um trabalho tendo como foco o sintoma. Abominável heresia!
Mas na verdade é Lacan (1966) quem faz o grande combate
contra a categoria do imaginário. Já no estágio
do espelho[7] o
imaginário se apresenta como que articulado pelo simbólico. Ou seja, para Lacan
só interessa o imaginário enquanto prisioneiro do simbólico. Não se quer uma
autonomia real para o imaginário.
De novo é preciso lembrar o grito desesperado de Artaud,
implorando que seu médico não o livrasse de suas visões delirantes: “Os estados místicos do poeta são a base
de sua poesia!”. Embora sua carta visasse o Dr. Ferdière, ela poderia ser
perfeitamente endereçada a alguns representantes da psicanálise, que tanto
rezam pela cartilha do simbólico, que prezam a racionalidade. É preciso não
esquecer que Freud tinha uma grande expectativa a respeito da razão. Ele
desejava que a razão pudesse um dia construir o seu reinado:
A
voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não consegue uma audiência.
Finalmente, após uma incontável sucessão de reveses, obtém êxito. Esse é um dos
poucos pontos sobre o qual se pode ser otimista a respeito do futuro da
humanidade e, em si mesmo, é de não pequena importância. E dele se podem derivar
outras esperanças ainda. A primazia do intelecto jaz, é verdade, num futuro
muito distante, mas, provavelmente, não num futuro infinitamente distante. [8]
Como complemento, lembramos mais uma vez as origens de Lacan,
na antropologia de Levi-Strauss (1991), que por sua vez foi buscar a função
simbólica dentro da lingüística saussureana. Levi-Strauss luta contra a
diversidade através de uma unidade básica: o átomo do parentesco. [9]
Saussure, já no início de seu livro, Curso de Lingüística Geral,
quando se pergunta o que é a lingüística, vai desfazendo-se de todas as
multiplicidades, até constatar que a lingüística tem seu objeto teórico na Langue, que é o grande sistema. Ele
estabelece a sintaxe, que é a “lingüística sincrônica”, cuja unidade última é o
signo.
Todos os três - Lacan, Levi-Strauss e Saussure, - lidam com o
objeto do conhecimento, ou seja, com o objeto
abstrato. Não se interessam pelo objeto
real, o qual seria o referente. Lacan e Levi-Strauss fogem da rude
aplicação do modelo lingüístico saussureano através de seus estilos diferentes.
Mas não podem esconder o óbvio: que é sempre atrás de uma totalidade abstrata,
e atrás de formas de controle que o pensamento deles se constitui.
E o que é atingido com isso? O que é atingido é sempre a
multiplicidade, as bifurcações, o imaginário. Atinge-se o mesmo objetivo que
Platão desejava. Platão também combatia as multiplicidades e as singularidades.
Queria expulsar os simulacros, criados pelos sofistas.[10]
E é com dificuldades que ele abre seu coração para admirar o poeta. Para ele
Homero e Hesíodo deviam mendigar de cidade em cidade, onde jamais seriam
“carregados pelo povo”, pois que este lugar só caberia a alguém que defendesse
as essências, a verdade, o abstrato.
Este discurso contra a
aventura do imaginário nunca deixou de ser retomado na civilização
ocidental. A psicanálise pode ser vista
como uma das últimas versões do platonismo. Paradoxalmente, apesar de ter sido
revolucionária no início do século, ela teve também seu papel regulamentador. A
função de controle da psicanálise foi levantada por Foucault (1977): passamos a
vigiar a alma ou psiquismo. O
interior do sujeito, com a psicanálise, passa a ser vasculhado com o objetivo
de se garantir a saúde mental. Evitam-se as regressões, ou a “imaturidade afetiva
e mental”. O objetivo é a disciplina da
mente, porque em paralelo o Estado organiza a disciplina do corpo, como forma de submissão.[11]
Nenhuma corrente psicanalítica aceita a morbidez de uma libido fixada ou
regredida em neuroses ou psicoses. Só isto já serviria para mostrar como a
psicanálise funciona dentro de um universo teórico com padrões platônicos. O
comportamento ideal seria o “normal”.
Procura-se a “medida” grega. Nada em
excesso, a máxima inscrita no templo grego, e que norteou a filosofia aristotélica,
está inscrita também no coração de qualquer psicanalista.
Com Freud ou com Lacan, vive-se num mundo de carência, um
mundo de necessidade, onde o horizonte é de ameaças: a ameaça da perda de
controle, a ameaça da loucura. Acabamos de indicar como Lacan combate o
imaginário, terminando com a subordinação do pequeno outro pelo grande
Outro. Ou seja, Lacan elege o domínio do simbólico. Sua teoria trata afinal
do “grande objeto abstrato”, defendendo a Lei,
através do nome do Pai.
Ora, a autonomia do imaginário só pode ser encontrada nos
sintomas psicóticos. O psicótico seria aquele que não aceita a lei da
castração. Como Artaud nos lembra, o louco é o homem que preferiu enlouquecer
“no sentido socialmente aceito”, a se trair, a trair uma determinada idéia. E
por isso o louco não tem entrada neste reinado do simbólico. Para os
lacanianos, o louco não se socializa, não se humaniza. Um pouco mais de
impiedade e estaríamos dizendo com La Mettrie, aplicado discípulo de Descartes:
“Cela crie, mais cela ne sent pas”,[12]
referindo-se à falta da alma racional nos animais.
Por tudo que foi exposto é que podemos dizer que, apesar de
todos os disfarces, os lacanianos também querem a cura, através da aplicação da
lei. A prática da clínica lacaniana procura a mesma coisa que os analistas
americanos ou ingleses. Todos eles acertam os ponteiros do ego, ajustando suas
defesas na exata medida. Afinal uma
simples pontuação no discurso do paciente, ou um simples “por que?” já
denuncia o desejo do analista, indicando
que parte do ego ele estará querendo reforçar. O fato é que a potência do inconsciente não
deve se manifestar. Em sendo assim, não há escândalo algum em se afirmar
parentescos entre as diversidades psicanalíticas.
De qualquer forma, a psicanálise não poderia agir de forma
diferente. O pensamento filosófico do Ocidente parece participar de um
determinado cenário, cujo empenho é excluir os fluxos livres, as
desterritorializações. O pensamento deve se subordinar às aparências do
conhecimento, aos encaixes da lógica, da coerência, da metodologia, da sintaxe.
Existe toda uma predisposição da subordinação ao abstrato. É o que se pode
chamar, para usar a linguagem lacaniana - ou psicanalítica - o lugar do pai. Ou melhor, com Althusser
(1983), o lugar do Estado. Tudo organizado
para constituir como Nietzsche diria, a moral
do escravo.[13]
Para constituir o rebanho, o cidadão. Não há como negar que a
psicanálise tem a sua contribuição na constituição deste lugar: a lei do
pai, a necessidade da castração, a
normatização das pulsões, a valorização da culpa e da depressão, fontes do
sentimento do amor, uma certa desqualificação da emoção em benefício da voz
suave da razão.
Podemos dizer que a psicanálise nunca deixou de ser
platônica. Seu chão é grego. Ela trabalha na escuta do inconsciente. Sim, ela o
admira, mas quer domesticá-lo, se é que podemos falar assim. O inconsciente
produtor, como queria Nietzsche ou Artaud, este inconsciente maquínico de Guattari (1981) e de Deleuze (1976), cujo
desejo não se deixa capturar pelas medidas
da cidade grega, pelos “padrões” da moral
do escravo, pelas identificações,
ou pelo nome do pai, este
inconsciente a psicanálise ainda não suporta.
Freud logo percebeu que o fenômeno da criação necessitava de
um mergulho neste inconsciente desmedido. Mas seus seguidores, ligeiramente
assustados, preferiram assitir a cena freudiana confortavelmente instalados em
um teatro de palco italiano, e reduziram o inconsciente freudiano à
representação de uma peça grega: Édipo-Tirano.
O inconsciente psicanalítico passou a ser uma consciência afundada na
profundidade. E mais, em termos gerais, a psicanálise teve dificuldades
para admitir a regressão com fins adaptativos. Somente a partir da colaboração
de Kris (1968) passou-se a aceitar, com mais
tranqüilidade, a idéia de que só se pode criar quando os fantasmas
inconscientes ganham voz. Parafraseando
Deleuze: “A loucura, afinal”. A
multiplicidade quântica passou a ser relativamente admitida dentro do
território psicanalítico. Mas, claro, sempre dentro das medidas.
[1] Antonin Artaud, citado por Teixeira Coelho, em Artaud, p. 50.
[2] Para Platão existiriam alguns tipos de virtudes que seriam fundamentais: a sabedoria ou prudência, própria da parte racional da alma; a coragem, que seria uma virtude da vontade; a temperança, que seria característica da sensibilidade; e finalmente a justiça, originada do equilíbrio entre todas as disposições éticas e sociais. É a este equilíbrio das virtudes que se aplica a justa medida platônica. Ver A Filosofia Pagã de François Châtelet.
[3] Com a ascenção
da burguesia ao poder, ocorre um afastamento da igreja. Marx é um dos pensadores que aponta para este grande ateísmo da
burguesia. Na constituição das cidades, a prática da Medicina se aliou a esta
queda da religiosidade. A medicina começa a se fortalecer, a partir do século XII. O tratamento dos
problemas psíquicos aos poucos vai ganhando características médicas, e uma
impressão de cientificidade. A partir do século XIX surge uma nova ética,
através das normas médicas que influenciam até mesmo a arquitetura das casas e
das cidades. Sobre este assunto, ver A
Danação da Norma, de Roberto Machado.
[4] C. Levi-Strauss, Antropologia
Estrutural, p. 236.
[5] Alguns dos
conceitos e idéias que apresentamos aqui foram apreendidos, e organizados,
através das inúmeras conferências que o filósofo Carlos Henrique Escobar vem realizando no Rio de Janeiro, como parte
de seu trabalho de reflexão sobre o papel que a psicanálise desempenha na
sociedade contemporânea.
[6] Parece evidente
que, com Lacan, a psicanálise vai se
transformar numa grande convição abstrata. Em parte porque Lacan tenta higienizar a psicanálise freudiana daquilo que ele
chama de biologismo e evolucionismo. Este viés realmente chega a predominar em
algumas correntes americanas. Lembramos aqui os trabalhos de Hartmann (1945; 1950; 1956), Kris (1945; 1950) e Loewenstein (1945; 1950). Mas atinge
também as sofisticadas teorias da escola inglesa, pois Melanie Klein (1964), apesar de criticar a questão do
desenvolvimento através da adoção da teoria da posição, ainda aceita a
universalidade do Édipo, que tem suas
raizes no biologismo freudiano. Atrás de Melanie
Klein podem ser citadas uma série de contribuções inglesas como as de E. Shape (1973), N. Searl (1973), S. Isaacs
(1973). Sem deixar de falar nos representantes ingleses da psicanálise do ego, como Anna
Freud (1971) ou Joseph Sandler (1982). Já a escola francesa procurou escapar da
naturalização do inconsciente, a qual Freud
estabeleceu ao afirmar que Édipo era
universal. Só que Lacan também se
torna responsável por tal naturalização. É certo que o inconsciente lacaniano pretende não ser de natureza, e nem de
substância. Fugindo da ingênua concepção de Freud, Lacan procurou
dar à teoria um caráter de objetividade e de universalidade. Para isto trocou o
Édipo universal, por uma Lei universal. Seguindo a trilha de Levi-Strauss, ele afirma a proibição do
incesto como protótipo desta Lei.
Pode-se quase dizer que ele acaba naturalizando também, pelo abstrato. Isto
para não falarmos da substancialização do inconsciente, que se mantém sem
disfarces: “Là où c’était, dois-je
advenir comme sujet”. O “isso” já existe previamente como substância. Não
estaríamos voltando assim ao caminho platônico das idéias inatas, e à Lei, pela qual Sócrates deu sua vida?
[7] J. Lacan, Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, em Écrits I
[8] S. Fred, citado por A. G. Penna em A
Filosofia da Mente.
[9] Para Levi-Strauss, o inconsciente está
sempre vazio. Ele é estranho às imagens, limitando-se a impor leis estruturais
aos elementos inarticulados das pulsões, emoções, representações, recordações.
O inconsciente organizaria todo este vocabulário da história pessoal segundo
suas leis, que são sempre as mesmas. A
estrutura permanece sempre a mesma, e é por ela que se realiza a função
simbólica. As estruturas são as mesmas para todos, e são pouco numerosas. A
grande massa de contos e mitos conhecidos poderiam ser reduzidos “a um pequeno número de tipos simples, se
forem postas em evidência por detrás da diversidade dos personagens algumas
funções elementares”. Levi-Strauss,
Antropologia Estrutural.
[10] Em Górgias, Platão ataca os sofistas, dizendo que eles mereciam o ostracismo,
porque faziam o povo acreditar nas aparências, nas ilusões e nas imagens
criadas pelos falsos argumentos de sua retórica.
[11] Michel Foucault analisa a demarcação da
geografia da subjetividade no livro História
da Sexualidade, vol. I, A vontade do saber, e levanta as diversas formas de
submeter os indivíduos, formando os corpos dóceis em Vigiar e Punir.
[12] Citado por Duane Schultz em História da Psicologia Moderna.
[13] Nietzsche, em Genealogia da Moral, analisa a transformação das forças ativas em
reativas. Separada do que ela pode, a força ativa volta-se contra si,
produzindo a dor. E inventa-se um novo
sentido para a dor, um sentido interno: faz-se da dor a consequência de uma
falta ou pecado. Assim a força ativa é transformada em sentimento de falta, de
temor, de castigo. A má consciência é
a moral do escravo.