_______________________________A Aventura da Criação
Elza Rocha Pinto
Quero estar desperto no sonho e conduzir meus sonhos como um
homem desperto. [1]
Artaud
Neste ponto vamos fazer um breve parênteses, pois gostaríamos
de lembrar, à propósito do processo criador, a contribuição de Nietzsche.
Como já dissemos, os mecanismos de defesa têm um importante
papel regulador no equilíbrio do aparelho psíquico. Sem estas defesas cairíamos
naquilo que Freud chamou de processo
primário,[2] e
seríamos dominados pelos mecanismos de condensação e deslocamento, que não
obedecem aos princípios da realidade. Sem a repressão ou o recalque o homem
seria dominado por visões, alucinações, pensamentos delirantes,
despersonalizações. O recalque então, é necessário, para impedir que o desejo
atinja o nível da alucinação, pois então já não há mais separação entre o
imaginário e o real. Para usar a linguagem de Nietzsche (1982), sem a
consciência (ou seja, sem as defesas e as leis do princípio secundário freudiano)
estaríamos presos naquilo que ele chama de irresistíveis
impulsos do instinto. Mas, quase em contraponto com a psicanálise,
Nietzsche acha necessária esta vivência. Para ele, o contato do indivíduo com o
sistema inconsciente provocaria o horror.[3]
Por que? Porque colocaria o indivíduo em frente ao pensamento puro. Pensamento
que é sempre criador. Para Nietzsche, a consciência não cria, ela apenas repete
e copia aquilo que já conhece. O horror
do pensamento diante das bifurcações e das fibrilações. Foucault (1969),
também sustenta este mesmo mundo labiríntico do pensamento criador, ao defender
a necessidade da abertura para estes múltiplos sentidos, por vezes caóticos.
Analisando o seu desejo de entrar por várias vias de acesso no coração da Lógica do Sentido, Foucault (1969) fala carinhosamente de seu mestre,
Deleuze, ele também um nietzscheano convicto:
A
metáfora de nada vale, disse-me Deleuze; não há coração. Não há coração mas um
problema, quer-se dizer, uma distribuição de pontos relevantes; nenhum centro
mas sempre descentralizacões, séries com, de uma a outra, a claudicação de uma
presença e uma ausência - de um excesso e de um defeito. Há que abandonar o
círculo, mau princípio de retorno, abandonar a organização esférica do todo: é
pela direita que tudo se volta, a linha direita, a labiríntica. Fibrilas e
bifurcações (seria recomendável analizar deleuzianamente as séries maravilhosas
de Leiris). [4]
Este é o território da criação. Neste jardim dos caminhos que se bifurcam,[5]
ou seja, na pátria do pensamento, só entram os grandes guerreiros, os
corajosos heróis dos tempos de Homero
(1958), diria Nietzsche, e que no entanto ainda são encontrados misturados ao
rebanho desta nossa civilização pós-moderna. São os fantásticos Highlanders[6]
que permaneceram entre nós, disfarçados às vezes em homens comuns. São os super-homens nietzscheanos com sua ética
própria, sem eixos, sem religião, sem bússolas e sem nortes. Sempre à deriva, lembraria Nietzsche. Vivendo
fora da razão, ou das normas, ou das leis. E, no extremo desta tremenda
aventura, estaria o pensamento em sua forma mais pura: a loucura.
Quem seriam estes super-homens? Sem dúvida Artaud é um deles.
Van Gogh, em quem Artaud[7]
via
um igual, um duplo, certamente é outro. Quem mais? Muitos outros, como cita o
próprio Artaud: Baudelaire, Edgard Allan Poe, Gérard de Nerval, Nietzsche,
Hölderlin, Coleridge, Kierkegaard.
Neste instante poderíamos perguntar: e quanto a Nelson
Rodrigues, seria aqui seu lugar? Não sei se poderíamos localizar Nelson nestas
fileiras. Afinal de contas ele só viveu a experiência da loucura através de
seus personagens. Mas era fascinado por ela. Várias peças suas contam com
personagens designados como loucos. Em A
Mulher sem Pecado, a tia que não diz uma única palavra, e passa pela cena
sempre a enrolar um paninho em suas mãos; Vestido
de Noiva conta as alucinações de Alaíde.
Em Álbum de Família existe a figura
maravilhosa de Nonô.
O próprio Nelson, no entanto, era um homem muito comum: cheio
de hábitos e de rotinas. Pai de família, jornalista de talento, trabalhador
infatigável. Nelson Rodrigues, descrito por seus amigos como um homem tranqüilo
e bonachão, passa, no entanto, por alguns episódios depressivos. O primeiro foi
durante sua adolescência. Foi preciso que a família providenciasse uma mudança de ares. Nelson
foi mandado para Recife, em férias. Espaireceu. Voltou curado. Eram amores não
correspondidos. Além disso, era dado a obsessões,[8]
como ele próprio dizia. São conhecidas as suas insistentes implicâncias com
Tristão de Athayde e com D. Helder Câmara, ou sua admiração obsessiva por Otto
Lara Resende. Porém, nunca experimentou o fenômeno da loucura em sua
intensidade, apesar de ter sido um homem apaixonado (pelas mulheres, pelo
teatro, pela redação dos jornais, pelos filhos e pelos amigos).
Em oposição à exigência nietzscheana, situa-se uma corrente
racionalista que, no teatro, teria Brecht[9]
como seu maior representante. Aqui se valoriza a mensagem racional. A emoção
passa a ser secundária na representação. Parece-nos que é exatamente isto o que
Nietzsche critica em A Origem da Tragédia,
como o fim da era da inspiração, da intuição e da própria tragédia. Para ele o
predomínio da razão, e do homem teórico representado por Sócrates, teria
imprimido aos gregos o abafamento da vida. Com certeza não é este o lugar de
Nelson Rodrigues. Já que seus
personagens são tremendamente apaixonados, desviantes, loucos. Entretanto,
nunca viveu esta estranha aventura do vazio, profundamente dolorosa e solitária,
que Nietzsche diz marcar a criação e o pensamento. No entanto, fazendo um
tremendo contraste com seu autor, os personagens rodrigueanos são desatinados,
perturbados, cheios de tensão.
[1] Citado por Teixeira Coelho, Antonin Artaud, p. 50
[2] Os termos processo primário e processo secundário indicam dois modos de funcionamento do aparelho
psíquico. Podemos dizer que o processo primário é equivalente do sistema
inconsciente, funcionando segundo o princípio
do prazer. Enquanto que o processo secundário se relaciona com o sistema
pré-consciente e consciente, obedecendo ao princípio
da realidade.
[3] Aliás Sartre (1983), com a metáfora da náusea talvez estivesse falando sobre a
mesma coisa
[4]Michel
Foucault, citado por Eduardo Prado
Coelho, Introdução a um Pensamento
Cruel: Estruturas, Estruturalidade e Estruturalismo, em Estruturalismo - Antologia de Textos
Teóricos.
[5] Jorge Luis Borges, tem um conto, El jardín de senderos que se bifurcan,
publicado no livro Ficciones, que
ilustra poeticamente este caminho labiríntico do pensamento no processo da
aventura da descoberta. Ele fala da
bifurcação no tempo: “Cada vez que un
hombre se enfrenta con diversas alternativas, opta por una y elimina las
otras”. Porém existem homens que optam por todas: “Crea, así diversos porvenires, diversos tiempos, que también
proliferan y se bifurcan”. Na obra que resultaria desta opção, “todos los desenlaces ocurren; cada uno es
el punto de partida de otras bifurcaciones (...) El jardin de senderos que se
bifurcan es una enorme adivinanza, o parábola, cuyo tema es el tiempo”. À diferença de Newton, esta opção não acredita em um
tempo uniforme, absoluto. “Creía en infinitas series de tiempos, en una red
creciente y vertiginosa de tiempos divergentes, convergentes y paralelos. Esa
trama de tiempos que se aproximam, se bifurcan, se cortan o que secularmente se
ignoran, abarca todas a las
posibilidades”, Jorge Luis Borges, Ficciones,
p. 114.
[6] No filme Highlander, o diretor Russel Mulcahy conta o mito de
indivíduos de outros planetas que foram exilados na Terra. Imortais, eles iam
adquirindo um grande cabedal de conhecimento, com o qual podiam aos poucos
influir nos destinos da terra, através de contribuições científicas e
culturais. O mito parece fazer uma referência à teoria da reminiscência, que Platão
desenvolve em Fedro.
[7] Em 1947, depois
de ver uma mostra de Van Gogh no Museu de l’Orangerie, e reagindo a um
artigo recente no qual um psiquiatra focalizava Van Gogh sob o ponto de vista clínico, rotulando-o inclusive como
degenerado, Artaud escreve um de
seus textos de maior densidade poética, Van Gogh: O suicidado pela sociedade.
E é comovente o resgate da loucura, feita em homenagem a Van Gogh: “Pois o louco é o
homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas
verdades intoleráveis. (...) É um homem que preferiu ficar louco, no sentido
socialmente aceito, em vez de trair uma determinada idéia superior de honra
humana”. Antonin Artaud, Escritos, p. 133.
[8] Em um artigo
recente Mais obssessões de um gênio
solitário, Luciano Trigo,
comentando o lançamento de mais um livro de crônicas, afirma: “Das crônicas de ‘A Cabra Vadia’, Nelson
Rodrigues emerge uma vez mais como um gênio solitário, mergulhado em tristezas
e obssessões profundas, mas também engraçadíssimo em seu testemunho extremamente
pessoal de um ano que transformou o país e o mundo, mais do que ele queria
acreditar”. O Globo, Caderno
Livros, 16/04/95, p. 7
[9] Bertold Brecht, Estudos sobre Teatro - Para uma Arte Dramática não Aristotélica..