___ ____________ __________ A Estética da Loucura
Elza Rocha Pinto
A tragédia no palco não me basta mais, vou
transportá-la para minha vida [1]
Artaud
Os super-homens suportam com dignidade, ou para usar ainda a
palavra nietzschena, com nobreza, esta
experiência do pensamento que Nietzsche vai chamar de horror, a loucura. Por ela passaram homens como
Hölderlin, Nerval, Maupassant, Rinbaud, Verlaine, pintores geniais como Van
Gogh; músicos como Schumann, Henri Duparc, Maurice Ravel; ou mesmo bailarinos
como Nijinski, o qual escolheu uma forma sensual de expressar seu pensamento:
através da dança.
Todos eles trilharam um caminho fora da medida, atravessando a desrazão. Neles a ética da criação procurava
o desatino. Bukowski, alcoólatra convicto, refletiu cristalinamente esta demanda
quando uma vez respondeu a alguém que queria salvá-lo da miséria e do
alcoolismo: “Não se pode escrever
nada de bom fora do sofrimento”.[2]
A criação para Nietzsche tem sua matriz no sofrimento e nas paixões
dilacerantes. Foi isto que Artaud tentava esclarecer em sua carta ao Dr.
Ferdière, e que por ser tão expressiva resolvemos transcrevê-la integralmente:
Algo de meu mundo interior lhe escapa e o
senhor sente raiva de mim por eu me abrir com outras pessoas. Não é isso que eu
pretendo. Eu sempre quis levá-lo para dentro de minha esfera poética própria,
mas percebi que o senhor não queria acreditar nela e isso me dilacera o
coração. Os estados místicos do poeta não são manifestações de delírio, Dr.
Ferdière. São a base de sua poesia.
Considerar-me um alucinado é negar o valor
poético do sofrimento que desde a idade de 15 anos vive em mim diante das
maravilhas do mundo do espírito que o ser da vida real nunca pode realizar; e é
deste sofrimento admirável do ser que extraí meus poemas e meus cantos. Como é que
aquilo de que o senhor gosta em minha obra não o leva a gostar da mesma coisa
existente em mim enquanto este personagem que sou? É de meu eu profundo que
extraio meus poemas e meus textos e o senhor gosta deles. Todo poeta é um
Vidente. E é de seu Iluminismo que Rimbaud extraiu as Iluminações e Temporadas no Inferno. E William Blake viu no mundo
místico do Espírito o objeto destas visões maravilhosas transcritas no
Casamento entre o Céu e o Inferno. Se eu não acreditasse nas imagens místicas
de meu coração, não conseguiria dar-lhes vida.
Creio no Céu, Dr. Ferdière, mesmo não
crendo no Inferno, e considero uma revoltante falta de piedade taxar de
delirantes as imagens que me forjo desse céu.
Em Paris, o senhor me havia prometido
defender-me sempre e me disse que meus estados místicos eram a própria verdade
e não um delírio doentio, e que seria preciso o advento de uma época de crimes,
de ignorância e loucura para tratá-los como doença. Suplico que se lembre de
sua verdadeira alma e compreenda que uma outra série de eletrochoques me
aniquilaria.
E não creio que em sã consciência o senhor deseja isso. [3]
Deixando de lado o fato de Artaud estar tentando livrar-se de
uma nova série de eletrochoques, a lucidez na formulação do problema transcende
qualquer razão imediata. Ela coloca em foco uma das questões centrais da
criação poética. Principalmente quando aquele que cria recebe o rótulo de
doente mental. Antecipando Foucault, que vai tornar claro as várias capturas do
fenômeno, Artaud defende o contexto da loucura como criação poética, posicionando-se contra seu amesquinhamento como doença
mental. [4]
Como as pessoas podem gostar de uma obra por aquilo que ela
deixa entrever, e odiar a mesma coisa quando ela se apresenta na pessoa? É esta
a pergunta de Artaud. Aparentemente o que pertuba as pessoas é o fato do poeta acreditar em suas imagens. Esta crença
dá às imagens uma materialidade, uma densidade e realidade que não se suporta
facilmente. Não é fácil aceitar as falsas sensações, como por exemplo a audição
colorida, através da qual Rimbaud (1960) emprestava cores aos sons das vogais;[5]
ou então como na demanda da nota azul
de Chopin.[6]
Para a maioria das pessoas a arte torna-se aceitável enquanto
for elemento de um mundo irreal, fictício, longínquo. Com o qual apenas se
brinca de acreditar. Mas quando alguém, como Artaud, afirma tais imagens como
verdadeiras e necessárias, o recurso mais imediato é taxá-las de delirantes. E
interna-se o poeta. No hospício ou na prisão. “Esquizofrenia visceral de uma
sociedade que propaga esta bactéria como uma epidemia”.[7]
Quando o preconceito não pode desprezar a obra, por ela ser muito bela,
acaba-se por desprezar o poeta, numa epidemia de desqualificações: Artaud e Van
Gogh eram loucos; Rimbaud, um gênio, porém crápula e pervertido; Ezra Pound, um
fascista, anti-semita; os contos de Borges são obras primas, mas seu autor é um
narcisista. No Brasil, durante anos Jorge Amado foi considerado um autor menor,
superficial e palatável, apesar de
ser um dos escritores que melhor retrata a alma e a cultura baiana. Nelson
Rodrigues? Um degenerado e obsceno, eternamente mergulhado na lama.[8]
Foucault perguntaria quem dita essas classificações. E em que
circunstâncias? Os poetas, os grandes criadores, os super-homens nunca foram
bons cidadãos do rebanho.
Lamentavelmente por vezes a psicanálise acaba servindo a
estes objetivos, de assujeitamento. Através de alguns de seus conceitos que
desempenham tal papel inocentemente. Ou através da boa vontade e do bom senso de alguns psicanalistas. A nível teórico, a
determinação da sublimação como meta do social é um dos melhores caminhos para
estremecer o território do poeta. Artaud, por exemplo, jamais aceitaria uma tal
proposta. Para ele não se poderia falar em
jogar qualquer substituto para a meta da pulsão. Indignado, ele denuncia
em Van Gogh, o Suicidado da Sociedade:
O doutor Gachet não chegou a dizer a Van Gogh que estava ali
para endireitar sua pintura (como ouvi o doutor Gaston Ferdière, médico-chefe
do manicômio de Rodez, dizer que estava ali para endireitar minha poesia),
porém mandava-o pintar a natureza, sepultar-se na paisagem para evitar a
tortura de pensar. [9]
[1] Carta a Jean Louis Barrault, em Teixeira Coelho, Artaud, p. 14.
[2] Charles Bukowski, em Barfly, de Barbet Schroder, 1987.
[3] Citado por Teixeira Coelho, Antonin Artaud, p. 25.
[4] Foucault vai mostrar em História da Loucura como os critérios para a definição da loucura,
assim como as razões para o encarceramento dos loucos, traduziam diferentes
motivos sociais. Artaud em Van Gogh, o Suicidado da Sociedade, faz
uma áspera crítica destes motivos. Entretanto seu alvo mais direto é a
psiquiatria. Diz ele: “Em todo demente
há um gênio incompreendido cujas idéias, brilhando na sua cabeça, apavoram as
pessoas, e que só no delírio consegue
encontrar uma saída para o cerceamento que a vida lhe preparou. A medicina
nasceu do mal, se é que não nasceu da doença para assim ter uma razão de ser;
mas a psiquitria nasceu da multidão vulgar de pessoas que quiseram presevar o
mal como fonte da doença. E que assim produziram do seu próprio nada, uma
espécie de Guarda Suiça, para extirpar na raiz o espírito de rebelião
reivindicatória que está na origem do gênio. É quase impossível ser ao mesmo
tempo médico e uma pessoa honesta. Mas é escandalosamente impossível ser
psiquiatra sem estar ao mesmo tempo marcado pela mais indiscutível loucura: a
de ser incapaz de resistir ao velho reflexo atávico da multidão que converte
qualquer homem da ciência aprisionado na turba numa espécie de inimigo nato e
inato de todo gênio”. Antonin Artaud, em Escritos, p. 139.
[5] Ver o poema Voyelles, A. Rimbaud, Poèmes, p.
106.
[6] Era assim que Chopin denominava seus momentos de inspiração.
Só quando atingia Zal, como ele
chamava sua nota azul, é que ele conseguia improvisar.
[7] Antonin Artaud, Van
Gogh, o suicidado da sociedade,
em Escritos.
[8] Em
22/8/67 sai um artigo em O Jornal,
com o título O Album só de negativos,
onde um anônimo repórter escreve o seguinte: “Não me conformo em ver integralmente sórdidos todos os seres, todos com
o pé na lama, nenhum tendo um instante na vida que seja para o sorriso de
bondade e ternura. Todo homem, por pior que seja, tem um momento em que se
descuida e experimenta um bom sentimento; todo diabo tem a sua fraqueza de
anjo, num relance inesperado. Os personagens de Album de Família, não: não é
sangue humano o que lhes corre nas veias - é pus. Eles falam e o hálito é de
carniça. Nenhum deles tem olhos para ver um amanhecer tranquilo, a flor
desabrochando, o vôo da andorinha; só olhos para o charco”. O Jornal, 22/8/67.
[9] Op. cit., p.
139.