___________________________________A Ética do Desafio
Elza Rocha Pinto
Ó minha alma, lavei-te do pudor mesquinho e das virtudes
tacanhas e persuadi-te a erguer-te nua ante os olhos do sol [1]
Nietzsche
Em 1946, alguns intelectuais apoiaram o veto à Álbum de Família, corroborando a
censura; eles comungavam, certamente, com Santo Agostinho,[2]
para quem o teatro era um veneno, que lançado sobre o corpo social, poderia
desagregá-lo. Talvez Santo Agostinho estivesse certo. Pois Artaud chama nossa
atenção. “O teatro, como a peste, é uma
crise que se resolve pela morte ou pela cura”.[3] Uma peça como Álbum de Família poderia, de fato, como uma peste envenenadora
contaminar a platéia de uma nação. Houve um tempo em que Carlos Lacerda bradava
aos quatro ventos que Nelson Rodrigues era um instrumento do comunismo, o qual
tinha o propósito de destruir a instituição da família. Mais uma vez é Artaud quem nos ensina:
Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos
sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta
virtual e que aliás só pode assumir todo seu valor se permanecer virtual, impõe
às coletividades reunidas à sua volta uma atitude heróica e difícil.[4]
Álbum de Família era a liberação
deste inconsciente comprimido. E
provocou, justamente por isto, uma intensa resistência. Para ser endossada, Álbum de Família exigia, da época, uma
atitude heróica da “coletividade reunida à sua volta”, como disse Artaud. Mas nem todos puderam assumir tal posição.
Houve depoimentos indignados. O que causou tanto impacto foi o fato de Nelson
Rodrigues ter colocado a platéia brasileira diante do espelho; os leitores da
peça visualizaram, assustados, a abertura, no palco, das páginas de seus próprios
álbuns de fotografias. Por esta razão as fotos foram censuradas,
determinando-se o repúdio da peça, na esperança de calar o escritor. Mas, a
censura acabou por ter um efeito contrário. Nelson Rodrigues se afirmou como um
autor brasileiro, que merecia o tempo e o espaço de uma discussão. Na época,
nosso autor sentiu-se muito injustiçado.
Mas, anos mais tarde, em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som, em 1967, ele reconheceu que a polêmica,
criada pela peça, trouxe para ele uma situação favorável.
Assim como a literatura de Sade refletia o sadismo que já
aflorava por toda parte, como atestam os roman
noir, Álbum de Família também
refletia algo, que já estava no limiar das consciências, desde que a
psicanálise defendera a sensualidade e a violência como partes integrantes da
natureza humana. E Nelson Rodrigues
dedicou-se a escrever sobre estas paixões e estes desejos, tornando-se um escritor maldito. Em 1946, a violência
que hoje nos ocupa as ruas quotidianamente, já não causava espanto. Bastava abrir
os jornais que tivessem repórteres de polícia,[5] para constatar a crueldade que se abriga no
interior das famílias:
Todos os dias há a mulher que mata o marido e, inversamente,
o marido que mata a mulher. O brasileiro é um fascinado pelo crime passional
(cada um de nós se identifica ou com a vítima, ou com o criminoso, ou com
ambos). [6]
A lucidez de Álbum de
Família recusou qualquer pacto perverso com instituições que tentassem
ignorar o lado sórdido de sua realidade.[7]
O que costuma acontecer com freqüência. Como uma atriz vaidosa, o social
procura esconder sua face menos fotogênica,
tentando deixá-la fora das luzes dos refletores. Mas o fato é que esta
outra face tem um brilho próprio, e não se deixa ofuscar tão facilmente.
Parafraseando o que diz Eliane R. Moraes (1994)
sobre o roman noir (1994),
podemos dizer que a maior inconveniência
de Álbum de Família está precisamente
em expor a solidão terrível do indivíduo confrontado com a violência de seu
interior. Relembramos as palavras de Yan Michalski, por ocasião da remontagem
de Antunes Filho:
... Nelson Rodrigues aparece como uma espécie de Ésquilo
brasileiro, pai de uma tipologia e de uma imagística na qual todos nos podemos
reconhecer, na medida em que traduz momentos vitais comuns a todos, ligados aos
traumas do nascimento e da infância, aos fantasmas da morte, aos impulsos das
paixões que escapam ao controle da razão, ao choque dos anseios primitivos
contra o muro das proibições construídas pela civilização. [8]
São forças perigosas que constituem o psiquismo inconsciente,
diante das quais é necessário ter-se muito cuidado. Em Álbum de Família, aos poucos, vamos vendo a rendição dos
personagens, subjugados por estas
forças, tão poderosas e tão irresistíveis que, sem dúvida, poderiam ganhar o
nome de Destino. Um dos destinos do
homem é o de lidar com as perigosas paixões dos nossos desejos parciais. Álbum de Família coloca à descoberto,
que estes desejos de alta intensidade, atingem os membros da família. Este
reconhecimento causou muito desconforto entre os intelectuais da época. Não
resta dúvida que a peça oferecia-se como um excelente alvo para projeções.
Nelson Rodrigues foi chamado de imoral, obsceno e indecente. Álbum
de Família ofendeu a sensibilidade dos profetas da moral, com uma saraivada
de incestos. E no entanto, desde Édipo-Rei
que a temática do incesto já indicava quão pouco a Natureza se importa com a moral. E como estas forças são
determinadas, pois mesmo quando alguém procura escapar delas, como tentou fazer
Édipo, elas insistem. Pedro Dantas, na
introdução de Álbum de Família
desenvolve um pensamento definitivo:
Um Destino implacável pesa sobre cada personagem,
dirigindo-lhes a vida, que os oráculos poderiam ter anunciado como inelutável,
a Jonas, a Senhorinha, ainda no berço. Não poderíamos viver, agir, sentir
diferentemente porque, em verdade, não são senhores de si, mas, por algum
secreto desígnio dos deuses, não passam de títeres das Eríneas. [9]
Em Álbum de Família,
os personagens no palco nada tem de seu, a não ser a tremenda força de seus
desejos. Vemos para nosso espanto, todas as nossas paixões expostas
publicamente. Vemos a insolente demanda do incesto, se impondo sem estratégias.
Incesto que tanto esforço nos custa a recalcar. Todos os membros da família
transgridem em nome de um desejo que não dá tréguas. O que vemos no palco nada
mais tem a ver com o universo do quotidiano, com o mundo cristão da falta, do
medo e do pecado. Na busca do sonho infantil, cada um dos personagens vai se
colocar acima de todas as leis. Mesmo assim, Álbum de Família não pode ser taxada como uma peça imoral. A não
ser que se esteja também chamando de imoral a própria humanidade, já que as
forças da pulsão fazem parte da condição humana. Helio Pelegrino arremata esta
questão, com uma observação irretocável:
A moral convencional se aplica aos humanos, não aos heróis
míticos da espécie. Eles são tão imorais ou tão elementares como um grande rio
em plena enchente, destruindo casas, alagando campos, afogando crianças e
rebanhos. [10]
Em Álbum de Família processa-se
uma catarse. É o próprio Nelson
Rodrigues quem elabora esta idéia, ao responder a seus críticos: “Morbidez?
Sensacionalismo? Não. E explico: a ficção, para ser purificadora, precisa ser
atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa
de cada um de nós”.[11]
Martim Gonçalves, em seu artigo O Álbum
Ainda, faz uma análise muito bonita sobre a peça de Nelson Rodrigues. Entre
outras afirmações, ele compara o teatro de Nelson com o teatro de Genet. E por
achar que pode se aplicar ao dramaturgo brasileiro, ele cita uma observação de
Bernard Dort sobre o escritor francês:
“A catarse que ele nos oferece é como se fosse o inverso da catarse
clássica. Depois de ter suscitado piedade e temor, essa catarse, longe de
operar a purgação característica de tais emoções, abre-se ao contrário, sobre o
medo e a piedade de uma existência nua”. E Martim Gonçalves retoma sua análise
lembrando Artaud:
Nelson nos apresenta o que poderíamos também chamar de o
silêncio dos danados sobre a terra. Álbum de Família oferece aos espectadores
“os fiéis precipitados de seus sonhos, nos quais o seu gosto pelo crime, suas
obsessões eróticas, sua selvageria, suas quimeras, seu sentido utópico de vida
e matéria, mesmo o seu canibalismo, se derramam num nível não falsificado e
contrafeito mais interior”. É Artaud em seu Teatro
da Crueldade quem assim fala. [12]
Concordando com estas idéias, Isabel Câmara, outra admiradora
de Nelson, diz que ele é por natureza um “escritor do sombrio, do burlesco, do
tragicômico, daquilo que se esconde por trás das máscaras, e das
impostações”. Para colocar o homem
diante do espelho, segundo Martim Gonçalves, Nelson Rodrigues vai se utilizar
do mito. Porém “não o mito da tradição greco-romana e cristã, mas o Mito e o
Ritual das culturas primitivas”, que trata justamente deste sombrio. Mostrando a proximidade que
existe entre Artaud e Freud, Martim Gonçalves diz que os personagens de Nelson
Rodrigues corporificam as idéias destes dois pensadores, e finaliza com um
pensamento de Artaud:
Podemos afirmar agora que toda verdadeira liberdade é
sombria, e está infalivelmente identificada com a liberdade sexual, que também
é sombria. E essa é a razão pela qual os grandes mitos são sombrios. [13]
Em artigo feito para servir como introdução a uma das peças
de Nelson Rodrigues, A Obra e o “Beijo no Asfalto”, o
psicanalista Helio Pelegrino também afirma que Álbum de Família é uma peça mítica. “Acima da realidade está o
mito, no que comporta de essencial e universal”.[14]
Nas peças mitológicas,[15]
Nelson se volta “para as raízes mais
profundas de seu inconsciente”. Com isto, através de sua dramaturgia ele
procura encontrar seu próprio mito pessoal, ao mesmo tempo em que recupera problemas
essenciais da espécie. “Neste sentido, sua obra é tão imoral como a
mitologia grega ou a mitologia de qualquer povo, crivada de incestos, de
crimes, de sangue e excrementos”.[16]
Os personagens de Álbum de Família
são intemporais, “lançam suas raízes na matriz da alma humana - também
intemporal”. [17]
Assim eles não são o retrato de um homem historicamente datado. Representam a
transposição deste homem para o mundo do mito.
Finalizando seu pensamento, Pelegrino completa:
Nessa obra, o que importa é o mito do incesto, tratado em
todas as direções possíveis, desdobrado nos dilaceramentos e nos ódios que lhe
são intrínsecos. Senhorinha, Nonô, Jonas, Glorinha não são pessoas de carne e
osso, são símbolos, são arquétipos, solenes e terríveis na sua grandeza e na
sua miséria super-humanas...[18]
Como personagens arquetípicos, a família do álbum está acima
da lei. Imitando a família divina no Olimpo, ele também podem se entregar às
suas paixões. E quando cometem seus crimes, transformam-se em irmãos
espirituais dos personagens de Sade. Pois podemos dizer que eles são criminosos
com audácia e ostentação. São todos eles
personagens que podem dizer em uníssono, com Annabella, de Ford[19]:
Choro não por remorso mas por medo de não conseguir
satisfazer minha paixão. [20]
Álbum de Família traduz muito da abordagem freudiana sobre o
psiquismo. Seus personagens são produtos
da regressão ao mundo primitivo das pulsões parciais. Todos eles marcados por
desejos proibidos.[21]
Em Álbum de Família a perversão
assume diversas identidades. O sadismo e o incesto fornecem a tônica, porém
cada personagem apresenta, como vimos, uma variedade diferente de perversão.
Todos eles desafiam o processo de socialização, através do
qual as pulsões parciais são submetidas ao governo do ego, e da consciência
moral. Neste processo, a castração é o significante da lei. A interdição do
incesto funda o sujeito, ao interromper a relação simbiótica entre a criança e
sua mãe. Com isto o indivíduo acessa ao mundo do simbólico. O próprio
Nelson Rodrigues testemunha tal movimento, ao afirmar em uma de suas
crônicas que “o homem começa a ser homem depois dos instintos e contra os
instintos”.[22]
Álbum de Família realiza uma
psicanálise ao reverso. Pelo processo psicanalítico o indivíduo pode tomar
conhecimento de verdadeiros desejos, e assim dominá-los, em vez de ser dominado
por eles. Porém, em Álbum de Família Nelson Rodrigues percorre uma trajetória
inversa. Os personagens vão perdendo
suas máscaras sociais.[23]
E o mundo originário, como um anjo
exterminador,[24]
vai ganhando terreno e liberando a ação. Na medida em que as repressões e
recalques se desfazem, os personagens assumem seus desejos mais primitivos,
sensuais e cruéis. As características de humanidade - afeto, carinho, admiração, respeito e
amizade - vão cedendo a impulsos hostis,
agressivos, eróticos e incestuosos.
Podemos dizer que Freud volta a falar, através de Álbum de Família. No entanto, é
interessante relembrar as dificuldades de Nelson com a psicanálise. Ele chega a
declarar que odeia os psicanalistas, em uma de suas entrevistas. Álbum de Família ilustra o motivo. Em Apelo
de uma Fé Perdida, encontramos um pequeno trecho que traduz toda a tristeza
de se saber apanhado nas redes de um desejo perverso:
Lembro-me de que, uma noite, comecei a ler uma condensação de
Freud. Lia aquilo e voltava para reler. Não entendia nada ou entendia muito
pouco. Parecia-me que o sábio valorizava os instintos e só os instintos. E,
súbito, deixei de ser o homem eterno. Reagi como se Freud fosse um veterinário
e todos nós, bezerros. Fechei o livrinho e comecei a chorar. [25]
Diante da interpretação psicanalítica, Nelson chora a perda
de sua inocência e de sua fé na pureza de uma alma imaculada. Anos depois surge
Álbum de Família como vestígios deste
luto. A peça é a fala do inconsciente. Seus
personagens vão deixando de funcionar segundo o princípio de realidade, marca do processo
secundário. E voltam a se reger pelo
princípio do prazer, lei do processo primário. Sem os freios, e sem os
limites da socialização, os personagens assumem a tragédia de seus desejos.
Como conclusão, podemos afirmar que a leitura psicanalítica
destas paixões permitiu uma reflexão sobre algumas perversões, e sobre a
dimensão ética do desafio à lei, característica destes fenômenos. Pretendemos,
com isto, mostrar que o processo de criação de Álbum de Família passou por valores inconscientes, inscritos na
teoria das pulsões do pensamento freudiano.
Antes de encerrar nosso trabalho, achamos necessário
desenvolver algumas observações finais. Vernant, em seu livro, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, faz uma profunda análise da tragédia, no
mundo grego. Ele mostra como este gênero nasce do confronto entre o mundo
lendário do passado, com suas tradições míticas, e o mundo da cidade grega, com
seus novos valores políticos e judiciários. A tragédia expressaria o olhar do
cidadão sobre o mito. Álbum de Família
não se coloca muito distante desta análise. Se bem que em outro contexto. Mas o
fato é que vamos ver, na peça, o contraste entre a psicologia política de um
lado, e a psicologia mítica de outro. E assim se configura o trágico em Álbum de Família. Conforme Vernant, “o que a tragédia mostra é uma díkë em luta contra uma outra díkë”.[26]
Álbum de Família também gera dois
tipos de confronto. Um confronto de valores se dá entre o palco e o público. O mundo mítico representado na cena.
E o mundo socializado, que podemos representar pela palavra do judiciário,
representado pelas normas éticas do espectador. A polêmica de 1946 foi o
resultado deste enfrentamento. Mas o outro combate se dá dentro da própria
peça.
Na tragédia grega, a lei
jurídica se afirma sobre a lei familiar, e vemos o tirano Édipo ser expulso da cidade, depois de
se decretar o castigo da cegueira. Em Álbum de Família, uma das chaves da peça
certamente está na frase de Edmundo:
Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e
ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer, você, papai, eu e meus
irmãos. Como se a nossa família fosse a
única e primeira Então, o amor e o ódio
teriam de nascer entre nós. Mas não, não!
[27]
O que se afirma é a lei familiar mais primitiva. Não é que
deixem de ocorrer tensões entre o universo do mito e o contexto da cidade. Na
própria fala de Edmundo surge o mundo
legal. Acordando de seu sonho, espanta-se com ele mesmo, e repudia o que acabou
de dizer. Edmundo representa, em seu
íntimo, toda a “tensão entre o passado e o presente, o universo do mito e o da cidade”.[28]
O combate entre os dois universos também se vê, em Jonas. Apesar de desejar a filha, não teve coragem de chegar ao
incesto. A um certo momento da peça ele próprio confessa que ia adiando o
momento de trazê-la de volta para a fazenda. Tinha medo. No entanto, é Jonas quem representa o universo legal.
Ele é o significante do poder patriarcal, que se apoia na religião oficial.[29]
Ele é o pai, e por isto ele é sagrado, como Deus. Sua palavra tem efeito de
lei, e precisa ser respeitada. A philia de
Jonas é o Estado. Em paralelo seus filhos e Senhorinha
representam uma outra ordem de leis.
Seus sentimentos, suas falas e suas ações partem de um outro êthos. Exprimem a philia ao mundo marginalizado das pulsões. Poderíamos até dizer que
a pulsão é a moderna representação do daímön
grego.[30]
São quatro, os personagens verdadeiramente trágicos de Álbum de Família. Senhorinha, e seus três filhos, pois que
assumem seu destino. Matando ou morrendo, eles afirmam a lei mítica deste mundo
originário. Não traem a sua philia. A
ação assassina, incestuosa ou suicida não exprime o sentimento comum do homem
mediano, domesticado pelos princípios morais da lei judaico-cristã. A força
demoníaca das pulsões se apodera destes personagens, decidindo de seu destino.
Eles não podem nada fazer, a não ser obedecer a esta dominação, ainda que isto
signifique a condenação à morte, ou à loucura.
É denso o diálogo que Nelson Rodrigues trava com os valores
de seu tempo. O confronto do casal perverso,[31]
aponta para o combate das duas grandes forças. Poderíamos até nos utilizar da
leitura deleuziana, para dizer que o que encontramos no final de Álbum de Família, é o enfrentamento de
dois inconscientes. O inconsciente freudiano, que traduz um Édipo recalcado,
metáfora da lei social. É este o inconsciente de Jonas. E o inconsciente maquínico e produtor, que afirma o desejo
acima de qualquer lei. “Não ceder de seu desejo”, como diria Lacan,[32]
esta é a máxima de Senhorinha. “Com a grandeza que vem da própria
consciência da tragédia”, com “o sereno
deslumbramento ante o sentido transcendente da força superior que a dirige”,[33]
Senhorinha assume seu próprio
destino. Pedro Dantas apaixonadamente descreve Senhorinha, na introdução de Álbum
de Família:
Ela é a personagem trágica, por excelência, isto é, a que
vive lucidamente a sua tragédia. (...) É superior à vida e à morte pois que se
sabe marcada pela fatalidade, ordem misteriosa dos deuses. Nada poderia
desviá-la, nada, por isso, a perturba. Esse é o seu clima e o seu papel: só lhe
cumpre vivê-lo.[34]
Como sempre se entregou às características perversas de sua
personagem, mais uma vez Senhorinha
não foge daquilo que lhe foi determinado por um perverso inconsciente. A última frase de Álbum de Família nos coloca diante de um enigma. "Senhorinha parte para se encontrar com
Nonô, e com uma vida nova". Não seria este reencontro entre Senhorinha e Nonô, uma outra metáfora rodrigueana? [35]
Porque ao assassinar Jonas, Senhorinha
está se desvencilhando, ao mesmo tempo, da lei patriarcal. E estabelecendo uma
ética[36]
do desafio, uma ética da perversão.
[1] Friedrich Nietzsche,
Assim Falou Zaratustra, p. 228.
[2] Ver O Teatro e a Peste,
em Antonin Artaud, O Teatro e seu Duplo.
[3] Op. cit., p. 44.
[4] Antonin Artaud, O Teatro e seu Duplo, p. 40.
[5] A ressalva é em respeito à crítica que Nelson Rodrigues fará ao Jornal
do Brasil. Em A estrela do Atropelado, Nelson escreve “No Jornal do Brasil, por
exemplo, é mais fácil encontrar uma girafa do que um repórter de polícia. Na
folha do Dr. Brito (antigamente chamava-se jornal de folha), na folha do Dr.
Brito, dizia eu, não abrem espaço para o crime. (...) Mas em vão o brasileiro
mata e se mata; em vão é atropelado e fica estendido, no asfalto, rente ao
meio-fio; em vão os namorados fazem pactos de morte e os consumam (há cada vez
menos namorados e cada vez menos pactos de morte). Tudo inútil. O Dr. Brito não
lhes dá cobertura nenhuma, nenhuma.” Nelson
Rodrigues, O Óbvio Ululante , p.
135,
[6] Op. cit., p. 135
[7] Em julho de 1994, O Globo publicou uma reportagem
realizada por Daniel Hessel Teich,
cujo título O dolorido silêncio do
estupro em casa, já indica o assunto. Para se ter uma idéia, segundo as
informações do SOS Criança de São
Paulo, “ 73% das 177 crianças e
adolescentes até 17 anos que sofreram abuso sexual no período de janeiro a
junho deste ano foram vítimas de seus próprios pais, padrastos, irmãos ou tios.”.
E as estatísticas do SOS revelam detalhes ainda mais preocupantes: “metade dos estupros foram praticados pelos
pais biológicos das crianças, 25,6% contra meninas de até 5 anos de idade, e
37,4% contra meninas de 6 anos até 14 anos.” Os técnicos, no entanto, acreditam que estes
números representem apenas uma parte da realidade. O Globo, 31 de julho de
1994, p. 14.
[8] Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações,
p. 182.
[9] Nelson Rodrigues,
Álbum de Família, em Teatro Quase Completo, vol. 1, p.241.
[10] Helio Pelegrino, A Obra e ‘O Beijo no Asfalto’, em Teatro Quase Completo, vol. IV, p. 10
[11] Revista Veja,
11/3/1980.
[12] Martim Gonçalves,
O Álbum Ainda, Jornal O Globo, 9/8/67.
[13] Antonin Artaud, O Teatro de Protesto, Zahar Ed., citado
por Martim Gonçalves, O Álbum Ainda, Jornal O Globo, 9/8/67.
[14] Op. cit., p. 10.
[15] Seriam elas Vestido de
Noiva, Anjo Negro, Senhora dos Afogados e Álbum de Família. Incluiríamos também Dorotéia.
[16] Helio Pelegrino, A Obra e ‘O Beijo no Asfalto’, em Teatro Quase Completo, vol. IV, p. 11.
[17] Op. cit., p. 11.
[18] Op. cit., p. 10/11.
[19] Autor citado por Artaud, em O Teatro e seu Duplo.
[20] Citado em O Teatro e a
Peste, Op. cit., p. 41.
[21] De um modo ou de outro eles acabam rompendo as barreiras do
processo secundário.
[22] Nelson Rodrigues,
A Última Mulher Fatal , em O Óbvio Ululante, p. 85.
[23] As defesas - repressão, deslocamentos, sublimações, negação,
etc.-, que trabalham à serviço do Ego,
vão desaparecendo. Desmorona-se o Super-Ego
de cada personagem, juntamente com todas suas normas, costumes e leis.
[24] Em Anjo Exterminador,
o cineasta Luis Buñuel, trata da
mesma temática, descrevendo um grupo de convidados para um jantar, que ficam
paralisados, presos nesta situação absurda. Este fato aos poucos vai liberando
comportamentos completamente associais.
[25] Nelson Rodrigues,
O Óbvio Ululante, p. 74.
[26] Jean Pierre Vernant
e Pierre Vidal Naquet, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, p. 13.
[27] Nelson Rodrigues, Álbum de Família, em Teatro Quase Completo, vol. 1, p. 325.
[28] Jean Pierre Vernant
e Pierre Vidal Naquet, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, p. 21.
[29] Ver Anexo-4, nota Jonas-10
[30] Termo grego que designa um “tipo de potência divina, pouco
individualizada, que, sob uma variedade de formas, age de uma maneira que, no
mais das vezes, é nefasta ao coração da vida humana”. Jean Pierre Vernant e Pierre
Vidal Naquet, Mito e Tragédia na
Grécia Antiga, p.22.
[31] Jonas e Senhorinha.
[32] Citado por Garcia-Roza,
em O Mal Radical em Freud.
[33] Pedro Dantas, Álbum de Família, em Teatro Quase Completo, vol. 1, p. 241
[34] Op. cit., p. 241.
[35] Não podemos evitar associar à Senhorinha a figura de Sylvia Seraphim, que de uma só vez matou o
irmão e o pai de Nelson. E que também sai impune de seu crime, tais as
artimanhas que foram tramadas para iludir o público.
[36] Estamos aqui utilizando o termo ética em seu sentido mais amplo, através do qual muitas vezes ele é
tomado como sinônimo de moral.