Este texto é parte da tese de Doutorado, Alcoolismo Feminino: Conhecer para Prevenir, defendida no Instituto Fernandes Figueira, FIOCRUZ/RJ
Há vários anos, o álcool vem ocupando o primeiro lugar
nos índices de consumo das substâncias psicoativas. Porém, nem sempre o consumo
excessivo do álcool foi visto como um problema.
A dependência de substâncias psicoativas só
se tornou uma questão a partir
do século XX. Antes
disto, esse fenômeno permaneceu ignorado na maior parte do mundo (UNODC, 1995). Em
1999, segundo a Organização
Mundial de Saúde, 30% da população mundial apresentava problemas
com o álcool e entre
10-12% das pessoas eram considerados alcoólatras. Segundo
Gmel e Rehm (2003), citando os dados da pesquisa de Carlini, em
2002, 11% da população brasileira apresentava problemas
de dependência.
O uso de drogas sempre
esteve presente em mais
diferentes culturas,
inclusive nas grandes
civilizações da Antiguidade, onde seu uso era associado a rituais
mágicos e religiosos.
A aceitação das drogas
varia em função
da época e da cultura, o que pode ser visto através
das leis, normas, costumes, religiões e
de outros mecanismos
de controle. Na sociedade
contemporânea, a industrialização,
a lógica do consumo
e a medicalização da vida social, colaboraram para transformar o sentido
e o uso das substâncias psicoativas em um
problema de saúde
mental.
Pode-se dizer que o uso do álcool é tão antigo quanto a
própria civilização
humana. Achados
arqueológicos indicam que o álcool constitui
a droga mais antiga da qual
se tem notícia. Um
jarro de cerâmica
com resíduos
de vinho resinado, descoberto
no norte do Irã datando de 5.400 A.C. é considerada a mais antiga evidência da produção de bebida alcoólica.
O interessante livro “A História do Mundo em Seis Copos”, afirma que é possível
dividir a história da civilização conforme o domínio de determinadas bebidas.
Segundo Standage (2005), seu autor, seis bebidas vão definir o fluxo da
história mundial: cerveja, vinho, bebidas destiladas (como conhaque, rum e
whisky), café, chá e cola. Portanto, três contendo álcool, e três definidas
pela cafeína. O elemento em comum entre elas é o predomínio que tiveram em
determinado período histórico. Embora não se saiba exatamente quando a primeira
cerveja foi fermentada, ela já se espalhava pelo Oriente Próximo na altura de
4.000 a.C., aparecendo em um pictograma da Mesopotâmia (região hoje
correspondente ao Iraque), e retrata duas pessoas tomando cerveja com canudos
de junco em um enorme vaso de cerâmica. “A
cerveja é uma relíquia líquida da pré-história do homem, e suas origens estão
fortemente entrelaçadas com as próprias origens da civilização” (STANDAGE,
2005:16) Em 2.100 A.C., segundo inscrições
encontradas em tabuletas
de argila, os médicos
sumérios já receitavam cerveja para a cura de todos
os males. O álcool era
usado muitas vezes em
cerimônias religiosas e de iniciação. Entre
as festas gregas
mais populares,
durante as homenagens
ao deus Baco, o consumo
de vinho estendia-se por vários dias de celebrações
ritualísticas.
Lima (2007) também se dedicou a fazer uma breve revisão
sobre aspectos históricos e culturais do álcool e do alcoolismo, chegando inclusive
a relembrar descobertas antropológicas da era paleolítica que sugerem que o
próprio homem das cavernas, aparentemente, já consumia bebidas alcoólicas. Na
era neolítica (6.000 a
7.000 a.
C.) existem fortes indícios arqueológicos de que o homem já dominava a produção
artesanal de bebidas alcoólicas. Por volta de 4.000 A.C., dentro do
contexto da cultura egípcia, comprova-se o uso de bebidas fermentadas através
de alguns utensílios descobertos nas tumbas dos faraós. Alguns livros sagrados
antigos, como a Bíblia (através do Velho Testamento) ou o Alcorão, contêm
várias citações sobre bebidas alcoólicas, como é o caso do vinho. Em algumas
civilizações (como a sumeriana de 3.000 a.C) o vinho era considerado uma bebida
das divindades e, por isso, usado tanto em rituais pagãos, quanto em ritos
religiosos. Também na civilização egípcia, ele vai fazer parte de várias
cerimônias e rituais. Existiam deuses específicos para as bebidas, em especial
para o vinho. Assim esta qualidade é atribuída ao egípcio deus Osíris, ao deus
grego Dionísio, e ao seu equivalente romano, Baco. Com Homero, a Ilíada e a
Odisséia descrevem cenas de consumo de bebidas alcoólicas tanto em ritos
religiosos, quanto em festividades que tangenciam o excesso: “muitas vezes terminavam em orgias com mais
ou menos violentas, e nas quais o sexo, juntamente com as bebidas alcoólicas,
era o ingrediente fundamental” (LIMA, 2007:12). Baco, deus do vinho e dos
excessos, especialmente os sexuais, tem em Príapo um de seus companheiros favoritos.
Os rituais religiosos em sua homenagem são chamados bacanais. Nesses rituais,
procurava-se atingir o êxtase arrebatador,
o estado dionisíaco análogo à
embriaguez:
Graças ao poderio da beberagem narcótica era
que todos os homens todos os povos primitivos cantavam seus hinos. Ou então era
isso devido à força despótica de renovação primaveril, aquela que alegremente
penetra em toda a natureza, que vai despertar a exaltação dionisíaca, que vai
atrair o indivíduo subjetivo, para obrigar a aniquilar-se no total esquecimento
de si mesmo. Durante a Idade Média alemã havia ainda multidões cada vez mais
numerosas que eram movidas pelo sopro desta potência dionisíaca, cantando e
dançando, de lugar em lugar; nesses dançarinos das Janeiras e do São João reconhecemos
os coros báquicos dos Gregos cuja origem se perde, através da Ásia Menor, pela
Babilônia, até as orgias sírias (NIETZSCHE, 1892, 39).
Embora a fermentação das frutas, originando o vinho,
tenha sido anterior à fermentação dos grãos, que deu origem à cerveja, é apenas
na Idade Média que se desenvolve a cultura da uva, tendo como efeito a produção
de diferentes tipos de vinhos. Até os religiosos em seus mosteiros e abadias
colaboraram para a produção de vinhos de excelente qualidade. Cresce também a
variedade e a produção de outras bebidas fermentadas, como as destiladas e a
cerveja. A destilação, um processo que já era conhecido no mundo antigo, havia
sido aperfeiçoado pelos árabes. Durante a época das explorações, os países
europeus procuravam ultrapassar o monopólio árabe sobre o comércio com o
Oriente (STANDAGE, 2005). Com isto as bebidas destiladas, como conhaque, rum e
whisky, mais resistentes para o transporte marítimo, ganharam destaque,
passando a funcionar como moeda de troca no comércio de escravos. Tornaram-se particularmente
populares nas colônias americanas. Em paralelo ao seu valor comercial, a bebida
alcoólica passa a ser uma importante referência
cultural e comunitária, já que vai ser representada “como produto nacional, valores e peculiaridades daquela região ou
povoado” (LIMA, 2007:13).
Na Idade Moderna, o desenvolvimento das relações
comerciais junto com o aumento da produção das bebidas alcoólicas vai
determinar o efeito de crescimento do consumo. Durante os séculos XVIII e XIX,
a industrialização aumenta e modifica a estrutura das sociedades,
principalmente pelo advento de novas classes - operários, trabalhadores,
comerciantes. E o consumo de bebida alcoólica continua a ser feito nas vilas e
cidades que crescem ao redor das fábricas e usinas. Uma nova geografia
sócio-cultural se desenha, com o crescimento das cidades, levando o consumo de
álcool a aumentar através do surgimento de locais específicos: pubs, tavernas e
bares que passam a fazer parte do ambiente urbano.
É dentro desse novo cenário, criado pela revolução
industrial, que o consumo excessivo do álcool
começa a chamar atenção. O gim inventado na Holanda
do século XVII, e popularizado na
Inglaterra do século XVIII, cria então uma questão social, em função da incidência
de alcoolismo entre
as classes trabalhadoras. Mas é a partir do século XX que o
consumo de drogas
começa a ser encarado como
um grave
problema, garantindo um lugar de destaque
nas orientações da saúde pública.
A revisão histórica desenvolvida por Sáad (2001) sobre
dependência de drogas acabou revelando que a grande maioria das pesquisas toma
o álcool como base de referência. Seu estudo se baseia principalmente em
autores americanos, que mostram o desdobramento, de diferentes concepções
associadas a estratégias diferenciadas de ação ao longo dos anos. Até o século
XVII o ato de beber era bastante liberado em comemorações e festividades, da
mesma forma que ocorre hoje. Ela lembra que a embriaguez nunca se constituiu em
problema social ou de ordem pública durante o período colonial americano: essa
questão “não era nem problematizada nem
estigmatizada” (SÁAD, 2001:12). Embora na Europa, no fim da Idade Média,
François I tivesse promulgado uma lei cujo objetivo era punir qualquer pessoa que
fosse encontrada embriagada nas ruas (LIMA, 2007).
No fim do século XVIII, o uso do álcool começa a causar
incômodo social, e são aplicados termos desabonadores aos que abusam dele; um
exemplo é o termo “homens degenerados”, aludindo ao fraco caráter daqueles que
eram considerados subjugados pela bebida. Em 1810, Benjamin Rush estabelece o
conceito de “dependência” do álcool (SÁAD, 2001). Esse autor, que tinha uma
posição liberal, acabou por reconhecer que havia um problema de adição à bebida
e que essa se estabelecia de forma progressiva e gradual. O modelo proposto por
Rush predomina até hoje, numa visão que considera o uso excessivo de álcool
como doença. Ele descreve essa doença como uma atividade compulsiva em que a
pessoa perde o controle sobre seu comportamento de beber. Para ele, a única
forma de atuação eficaz seria a abstinência total, base da filosofia dos grupos
de mútua-ajuda como os Alcoólicos Anônimos (AA).
No início do século XIX surge nos Estados Unidos um
movimento denominado “Movimento da Temperança” que criticava o uso do álcool e
defendia a abstinência completa. Segundo Levine (1984:109), este “foi um dos movimentos de massa de maior
vigor dos fins do século XIX e vai cumprir um papel fundamental na configuração
da ideologia capitalista norte-americana de que o mundo da livre concorrência é
justo; são certas pessoas que não colaboram”. No século XX, as novas
condições políticas e econômicas aceleram o rápido crescimento do proletariado
industrial. Neste contexto, o álcool e
seus consumidores passam a ser apresentados como bode expiatório para todos os
problemas: insucessos pessoais, falências ou má gestões financeiras, crime,
violência e pobreza. “Para problemas
sociais e econômicos muito concretos a ideologia da Temperança colocava o
demônio do álcool como o grande responsável e a abstinência como a grande
solução” (LEVINE, 1984:111). Com o movimento da Temperança, a cultura e a
religião protestantes marcam uma divisão em relação à posição liberal existente
até então em relação ao uso de álcool, adotando, sobre o tema, uma postura
moralista.
Para defender suas posições, o movimento da Temperança
gerou relatos dramáticos: pais de famílias embriagados espancando pessoas da
família, homens anteriormente corretos e trabalhadores sob a influência do rum do demônio perdendo emprego e todos
os seus bens. Nesse contexto, embora houvesse a hipótese de que essa doença
pudesse ser adquirida, também se desenvolveu a suposição da hereditariedade do alcoolismo.
Em meados do século XIX, a idéia do alcoolismo como
doença ganha a forma que tem atualmente. Segundo Lima (2007:14) foi Magnus
Huss, em 1940, quem usou pela primeira vez o termo “alcoolismo” para indicar o
quadro clínico com todas as suas manifestações biopsicossociais, que resulta da
intoxicação crônica.
No final do século XIX, o paradigma da Temperança foi
sendo substituído por novos conceitos, e o uso do álcool começou a enfrentar o
“Movimento Proibicionista”. O que importava agora era a influência que o álcool
poderia ter na produção e no comportamento dos trabalhadores. Desta forma, o
alcoólatra deixa de ser vítima de uma doença para ser visto como uma ameaça à
sociedade. Combate-se inclusive o objeto
da adição. No entanto, a proibição das bebidas alcoólicas não resolveu o
problema, ao contrário, criou um mercado negro, e gerou espaço para o
fortalecimento e o desdobramento da Máfia. É dentro dessa mentalidade e
contexto que em 1935 surge o movimento dos AA, constituindo-se numa fusão das idéias
dos Movimentos de Temperança e Proibicionista.
Portanto, a embriaguez como doença tem suas raízes no
século XVIII, quando Rush fala na perda da capacidade para beber moderadamente
(SÁAD, 2001). No entanto, é no século XIX que o saber médico se apossa dos
conceitos de tolerância e abstinência oriundos das posições
moralistas e religiosas do século XVIII. No século XX, o tema é tratado
sobretudo do ponto de vista médico: estabelecem-se critérios diagnósticos bem
sistematizados e que podem ser encontrados na CID-10 e no DSM-IV. No entanto,
existem certas dificuldades relacionadas a essas sistematizações. Um dos
principais problemas diz respeito ao fato de que, historicamente, os modelos de
adição foram desenvolvidos baseando-se em pesquisas que contavam apenas com
amostras de homens brancos americanos: “diferenças
culturais no desenvolvimento da dependência de álcool podem clarificar o
impacto de diferenças sócio-culturais bem documentadas nas práticas do beber”
(VENNER & FELDSTEIN, 2006: 675)
Existem autores que discutem os critérios utilizados para
o diagnóstico de dependência de drogas, lembrando que a escolha se dá entre
categorias e dimensões. Nos sistemas nosológicos, a doença recebe uma
classificação que “forma categorias
ideais, distintas umas das outras e da normalidade” (Cruz, 1997:116). O
sistema dimensional supõe que existem características pré-mórbidas que
acabariam se desenvolvendo. Nesse caso, as doenças não seriam nitidamente
diferenciadas. Cruz (1997) levantando algumas questões relacionadas aos
conceitos utilizados em relação ao uso de substâncias psicoativas lembra que
ainda não foi demonstrada a existência de pontos de descontinuidade em relação
aos padrões de uso, de forma a fundamentar a classificação em categorias:
As categorias de dependência
e abuso podem definir grupos qualitativamente diferentes entre si e de um
padrão de uso não abusivo? Ou a diferença entre eles é de intensidade e há um continuum entre o que ocorre com as
pessoas que nunca usaram nenhum tipo de droga, as que já usaram alguma vez, as
que usam freqüentemente e as que usam freqüentemente com grave comprometimento
pessoal e social? Se há diferenças qualitativas, que critério(s) deve(m)
definir as categorias? (CRUZ, 1997:116).
Apesar dos problemas de conceituação, que acabam por ter
conseqüências clínicas, esse autor reconhece que a operacionalização dos
critérios em sistemas de categorias conseguiu padronizar os diagnósticos,
trazendo maior fidedignidade para os procedimentos relativos a tratamentos e
cuidados. Porém lembra que a especificidade deve ser levada em conta quando
estiverem em pauta objetivos sociais, antropológicos e legais “e, principalmente quando se tratar da
abordagem individual do paciente e sua subjetividade” (CRUZ, 1997:117).
A crítica mais radical à medicalização do alcoolismo vem
do movimento da antipsiquiatria que pergunta se a dependência não estaria sendo
vinculada não a uma doença, “mas a uma forma deplorável de desvio, ou
seja, o termo dependência estaria se referindo a uma identidade estigmatizada
geralmente atribuída a um indivíduo contra a sua vontade” (SÁAD, 2001:19). Stein
(1990) procura destacar esta função de controle social que a concepção de
toxicomania como doença tem poder de exercer
sobre as minorias. É claro que esse tipo de crítica se fundamenta em pensadores
como Foucault (1972), Deleuze (1976), Guattari (1981) e Nietzsche (1976). Neste
último autor é possível ler uma crítica irônica à temperança do equilíbrio
apolíneo, embora seu objetivo não fosse exatamente refletir sobre o alcoolismo:
Tais desgraçados nem sequer suspeitam da
palidez cadavérica ou da aparência espectral de tanta “saúde”, quando na frente
deles passa o furacão, ardente de vida, dos sonhadores dionisíacos. (...) O
homem diviniza-se, sente-se Deus, e por isso a sua atitude é tão nobre e tão
extática como a dos deuses que ele viu em sonhos. O homem deixou de ser artista
para ser obra de arte: o poderio estético de toda a natureza, agora ao serviço
da mais alta beatitude e da mais nobre satisfação do Uno primordial, revela-se
neste transe, sob o frêmito da embriaguez (NIETZSCHE, 1953:39-40).
Como é possível ver, para alguns autores, não existe doença ou problema moral relacionado ao excesso do consumo. Esses autores diriam que
tais representações são produzidas por interesses de classes. No entanto, a
maioria da sociedade e o próprio alcoolista são influenciados por tais valores.
Segundo Silva (2002), as representações presentes na sociedade e nos
alcoolistas em relação ao consumo excessivo é complexa e dicotômica, já que
admitem uma abordagem jurídica que abre caminho para desqualificação e
marginalização daqueles que bebem.
Nas últimas décadas, ainda segundo Lima (2007), sobretudo
nos países da Comunidade Européia, uma nova ótica passou a ser utilizada ao se
focalizar o consumo de álcool a partir da ênfase atribuída à prevenção. Não é
apenas a dependência que interessa, porém também, o uso e o consumo excessivo
ou abuso do álcool. “Situações
habitualmente não relacionadas passaram a figurar dentro do cenário do alcoolismo
de forma mais ampla” (LIMA, 2007:15). Assim, a geografia do uso e abuso de
bebidas alcoólicas se ampliou para abranger acidentes de trânsito, problemas de
saúde do trabalhador, violência familiar contra mulheres e crianças, síndrome
alcoólica fetal. Anteriormente, tais situações não eram levadas em consideração
por um modelo que apenas destacava a dependência
com a característica síndrome de
abstinência, em um modelo que sublinhava a importância dos aspectos
biológicos.
Para referência: Este texto é parte da tese de Doutorado,
"Alcoolismo Feminino: Conhecer para Prevenir", defendida em 2006, no programa de Saúde da Criança e da Mulher, no Instituto
Fernandes Figueira, FIOCRUZ/RJ