Em A Danação da
Norma, Machado et al (1978) faz
uma análise sócio-histórica da Medicina e da Psiquiatria no Brasil, analisando
em detalhes como o saber médico se aliou ao poder do Estado no controle da
família, colaborando para a higienização e disciplinamento das cidades. Esta
obra influencia uma série de autores, inclusive Costa (1983) que reconhece o papel
estratégico da Medicina na fundamentação do poder do novo sistema contra a
antiga ordem colonial. Este autor comenta que “nem sempre os dois poderes reconheceram o valor da aliança que haviam
estabelecido. Só historicamente é possível perceber que em meio a atritos e
fricções, intransigências e concepções, estabilizou-se um compromisso: o Estado
aceitou medicalizar suas ações políticas, reconhecendo o valor político das
ações médicas” (1983:29).
No Brasil, o consumo do álcool apresentou a mesma
trajetória percorrida nos estados americanos. Antes da industrialização, seu
uso não era considerado um problema. Porém de um certo ponto em diante, passou
a ser alvo das ações médicas. A diferença é que o Movimento da Temperança, com
sua vertente religiosa não existiu no Brasil. No entanto, com o movimento da
Liga Brasileira de Higiene Mental nos anos 1920 e 1930, a Psiquiatria começou
a adotar a noção de prevenção, que defende uma intervenção anterior ao
surgimento de qualquer sinal clínico de doenças, como estratégia privilegiada
para a ação psiquiátrica. O alcoolismo foi enquadrado nessa perspectiva.
Considerado como uma doença hereditária, precisava ser enfrentado através de
medidas preventivas. Costa (1980), ao analisar a história da Psiquiatria no
Brasil, ressalta como os ideais eugênicos da medicina alemã foram incorporados
à prática psiquiátrica e compara o movimento higienista brasileiro ao avanço da
ideologia nazista em relação à psiquiatria alemã. O caráter normativo do
discurso psiquiátrico brasileiro da época mostrava uma feição autoritária,
vinculando-se a políticas públicas de “saneamento
moral” e aprimoramento da raça, defendendo a eugenia e criticando a miscigenação.
O alcoolismo passou a ser associado à cultura das camadas mais pobres da
sociedade. Pelo fato de estarem submetidas a condições precárias de vidas,
estas pessoas eram forçadas a recorrer a estratégias de sobrevivência
marginais, a assaltos, vagabundagem, prostituição e alcoolismo.
Como dentro desse cenário social o alcoolismo era uma
constante, os psiquiatras tomaram-no como causa da desorganização moral e
social da sociedade (COSTA, 1980). Apesar disto, o álcool no Brasil nunca foi
considerado uma substância ilícita. Nem mesmo durante o combate ao “bárbaro e selvagem” festejo do entrudo na segunda metade do século XIX. O
foco das autoridades era colocado na higiene.
Querendo evitar o emprego de substâncias pouco limpas e de imundícies, no divertimento
do entrudo, proíbem a exposição, uso e venda de laranja, limões de cheiros e
bisnagas (ARAÚJO, 2008). Porém, a venda do álcool nunca foi proibida. O Brasil
não enfrentou o movimento da chamada “Lei Seca” como ocorreu nos anos 1930, nos
Estados Unidos. No entanto, a análise de Costa (1980) deixa clara uma
similaridade na atuação entre os dois países, já que o objetivo do programa
brasileiro de higiene mental também era basicamente manter a ordem social. Nesta
época, no Brasil, a ideologia moral e de eugenia fundamenta a prática
psiquiátrica, procurando impor medidas repressivas com o objetivo de diminuir o
alcoolismo na sociedade.
O código penal se alia a esses ideais eugênicos, impondo
penas para aquele que transgride a lei. O alcoolista passa a ser
responsabilidade também do Judiciário que enxerga nos “viciados” um potencial para o “mal
e para o crime devendo, portanto, ser excluídos do convívio social” (SÁAD,
2001:23). Na união da Psiquiatria com o Direito, o vício passa a ter uma dupla
inscrição: como doença e como crime. Essa visão dicotômica predomina até os
dias de hoje. Apesar das tentativas de descriminalização, o “viciado” ainda é considerado um “infrator”. Minayo & Deslandes (1998)
chamam atenção sobre esta situação, lembrando autores que mostram como no
Brasil se adota “uma política de
criminalização de certas drogas associando-se a visão jurídica (‘caso de
polícia’) ou a uma perspectiva médico-psiquiátrica (‘doença mental’)”
(MINAYO & DESLANDES, 1998:39).
No imaginário social, ser alcoolista tem um efeito sobre
o autoconceito, que vai refletir os preconceitos sociais. Na maioria das vezes
a sociedade se refere aos alcoólicos com sentido pejorativo. A própria
conceituação da dependência de drogas é vista como um problema moral e de
caráter do indivíduo. Em sua tese de doutorado, Sáad (1998) verifica que as
representações dos usuários e dependentes de substâncias psicoativas baseiam-se
fortemente em conceitos de “falta de
caráter”, com seu problema sendo considerado uma questão moral, própria da
esfera jurídica.
A partir da década de 1940, o saber médico no Brasil
finalmente passa a abordar de uma outra forma o problema do álcool e das
drogas. Desde então, na opinião de diversos autores é preciso não demonizar o
consumo das bebidas alcoólicas. Existem aspectos positivos relacionados ao
álcool. Segundo Lima (2007), seria necessário valorizar o efeito relaxante e
desinibidor no plano individual, assim como o aspecto gregário que a bebida
alcoólica permite, sobretudo em festas e rituais. “É pertinente ressaltar que o problema do alcoolismo está no abuso e
em suas conseqüências e não no uso social por si só” (LIMA, 2007:16).
Também Minayo & Deslandes (1998) comentam os efeitos paradoxais que as
drogas são capazes de provocar, sob a dupla face da inserção e da exclusão
social, percorrendo desde estados de
êxtases dionisíacos até profundas depressões.
Embora não seja um bom argumento para a defesa de uma
atitude mais tolerante em relação ao consumo, alguns autores como Lima (2007)
lembram a contribuição econômica que a indústria de bebidas alcoólicas
representa para diversos países, inclusive para o Brasil, onde a cerveja é um
produto de forte peso comercial.
Segundo Pinsky e Jundi (2008), a indústria cervejeira no Brasil fatura mais de
20 bilhões por ano, tendo gasto só em publicidade em 2006, mais de 700 milhões,
segundo a Folha de São Paulo. Além dessas cifras, não se pode desconsiderar a
mão-de-obra empregada na produção, distribuição e comercialização e o volume de
dinheiro que o governo consegue arrecadar com impostos:
No que tange à receita da indústria de
bebidas alcoólicas em termos de taxas e impostos relacionados com a produção,
distribuição e comercialização, os governos destes países se beneficiam com a
arrecadação de importantes recursos financeiros. Os impostos e taxas que
incidem sobre a produção, distribuição e comercialização determinam a
“arrecadação de importantes recursos financeiros. Portanto, este aspecto
sócio-econômico não pode deixar de ser considerado ao se discutir as ações e estratégias
de combate ao alcoolismo, a partir de perspectivas de políticas públicas nas
áreas de saúde, educação, segurança, trânsito e trabalho (LIMA, 207:16).
Esse
médico reconhece que a situação brasileira é preocupante, por ser o país um dos
maiores produtores de bebidas alcoólicas, o que é um determinante para o fato
dos brasileiros serem um dos maiores consumidores do mundo. “Deve-se ainda levar em conta alguns
aspectos agravantes no caso do Brasil, visto que, por exemplo, o consumo de
cerveja dobrou nos últimos 5 anos, cabendo aos jovens e às mulheres a maior
participação neste aumento” (LIMA, 2007:17). O autor ressalta que a ética
do mercado não deve prevalecer sobre outros valores relacionados à qualidade de
vida e à saúde pública, sendo preciso, inclusive, ocorrer um controle sobre a
publicidade e o marketing das bebidas alcoólicas.
Existem inúmeras pesquisas sobre o uso indevido do
álcool. No entanto, as mulheres até recentemente estiveram pouco representadas
nas estatísticas destes estudos científicos (STOCCO et al, 2000; AQUINO, 1997). Um rápido levantamento na base de dados
PubMed informou um total de 53.995 pesquisas sobre alcoolismo. Com o auxílio
dos descritores (female AND alcoholism;
male AND alcoholism) foram encontradas 21.311 pesquisas (72,5%) com
mulheres, e 29.375 pesquisas com homens. Isso caracteriza uma diferença de
27,5% a favor dos homens. Nova pesquisa realizada em janeiro de 2010 constatou
um total de 27.531 pesquisas sobre mulheres (74,3%), e 37.058 sobre homens,
constatando-se um ligeiro aumento percentual em relação às pesquisas com
populações femininas (25,7%). A análise de uma amostra de cem, retiradas destes
27.531 estudos, mostrou duas questões: (a) apenas cinco estudos focalizavam
exclusivamente a mulher; as outras 95 pesquisas eram constituídas por uma
amostra mista, onde poucas traçaram um perfil de gênero. Como a presente
pesquisa focaliza a importância do lazer em relação ao alcoolismo feminino,
procurei verificar até onde a amostra contemplava este tema. Porém isto não
ocorreu, o que deu margem para a segunda questão: (b) a associação do
alcoolismo com atividades de lazer não foi abordada, apesar de três artigos
focalizarem a questão da prevenção.
Isto confirma os achados de Hochgraf
e Brasiliano (2004:1), que examinaram um levantamento dos estudos
realizados no período entre 1970 e 1984, afirmando que “só 8% dos
sujeitos participantes de pesquisas científicas sobre alcoolismo eram mulheres”.
Também não são muitas as investigações que se dedicam a verificar as diferenças
entre os sexos, em relação ao consumo do álcool. Menor ainda é o número de
pesquisas que se referem ao uso de álcool por adolescentes do sexo feminino.
De fato, na base PubMed,[1]
deixando de lado os recursos do Medical
Subject Hearing (MeSh), na busca simples com a frase “alcoolismo feminino”
foram encontrados apenas 47 artigos. A conclusão mais óbvia é que ainda não existe
uma preocupação em analisar este fenômeno. Sobre a relação existente entre alcoolismo feminino e lazer, a busca utilizando descritores
MeSH revelou apenas 93 pesquisas registradas no PubMed. Desse conjunto, foram
analisados 35 artigos, pois nos outros não havia clareza quanto à interrelação
entre esses dois fenômenos.
[1] Base de dados, desenvolvido
pelo National Center for Biotechnology
Information, na National Library of
Medicine, e localizado no National
Institutes of Health.
Para referência: Este texto é parte da tese de Doutorado,
"Alcoolismo Feminino: Conhecer para Prevenir", defendida em 2006, no
programa de Saúde da Criança e da Mulher, no Instituto Fernandes Figueira,
FIOCRUZ/RJ
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