Os seres humanos possuem
necessidades. De um lado, necessidades materiais que mantêm as pessoas vivas,
vinculadas ao poder, ao dinheiro, ao consumo e à acumulação de riquezas. Essas
podem ser chamadas de necessidades quantitativas. Por outro lado, existem as
qualitativas que se referem ao amor, à amizade, à convivência, à introspecção e
à brincadeira. Elas não requerem dinheiro para serem satisfeitas e sim, tempo livre (DE MASI, 2000).
Nas últimas quatro décadas, o lazer
e o tempo livre começaram a receber atenção por parte de várias ciências. Há
abordagens sociológicas, históricas, antropológicas, psicológicas, filosóficas
ou mesmo geográficas e culturais que se diferenciam consideravelmente. No
entanto, segundo Ortega (2000) é possível distinguir entre elas duas grandes
orientações. Uma enfatiza o lazer como satisfação individual, enquanto a outra
sublinha sua dimensão coletiva, no sentido de que ele “deveria ser desfrutado por todos, independentemente das diferenças
sócio-econômicas, políticas e culturais” (ORTEGA, 2000:167).
Cada contexto
social diferencia ideologias, valores, perspectivas, atitudes, comportamentos e
práticas. O lazer também obedece a essas regras, pois ganha expressões
diferentes conforme a época histórica e o enquadramento sócio-cultural em que
se situa. Uma “pelada” na praia, um bate-bola nas ruas, ou um futebol jogado no
campo, nas fazendas ou sítios brasileiros, não conta com um campo demarcado e
elaborado como nos clubes e estádios das cidades. Porém, apesar do espaço sagrado ser diferente, o prazer
dos jogadores não se altera muito. A alegria associada ao jogo pode
transformar-se não apenas em tensão, como em arrebatamento, independente de
onde o jogo aconteça. É Huizinga (1980) quem fala deste aspecto sagrado dos
locais onde ocorrem as atividades lúdicas, ao fazer uma comparação entre elas e
os rituais religiosos. Segundo o autor, não existe diferença formal entre esses
espaços: “a pista de corridas, o campo de
tênis, o tabuleiro de xadrez ou o terreno da amarelinha não se distinguem,
formalmente, do templo ou do círculo mágico” (HUIZINGA, 1980:23).
No entanto, os campeonatos atuais
são diferentes das competições sagradas, onde as consagrações e mistérios
constituíam parte integrante da festa. E as provas às quais o iniciado é
submetido não são mais sangrentas ou cruéis, como eram em determinadas culturas
no passado. Por outro lado, algumas atividades de lazer são características de
certos sistemas econômicos, culturais e políticos. E com isto, podem servir
como meios de opressão através da exclusão de determinados indivíduos, ou
através da sua inclusão forçada.
Na sociedade contemporânea, marcada
pelas possibilidades das novas tecnologias, as paisagens do lazer estão
mudando. Segundo Ortega (2000), a indústria dos entretenimentos, com o objetivo
de incentivar o consumismo, vem incorporando elementos de fantasia que
pertencem à cultura mediatizada das
massas. O movimento de globalização que socializa um mesmo conjunto de
valores, idéias e aspirações, atua inclusive no campo das atividades de lazer
onde, no entanto, é também pluralista. Por isso, é possível verificar a
permanência de uma constelação de culturas locais e específicas em que as
expressões individuais e comunitárias continuam integradas ao contexto histórico,
político e sócio-cultural local onde cada pessoa se insere. Assim,
contemporaneamente, a atividade de lazer reflete características globais e ao
mesmo tempo locais, dos grupos onde ela foi gerada e desenvolvida. O mesmo país
pode abrigar diferentes expressões, localizadas nos nichos urbanos de uma mesma
cidade, ou até do mesmo bairro. Desta forma, revelam-se diferenças de lazer por
faixas etárias, por sexos, etnias, educação, religião, classe social, status
econômico.
Dumazedier (1999) foi o autor que
ofereceu a contribuição mais importante para a abordagem das atividades de
lazer citadas nas entrevistas desta pesquisa. Em função de sua ampla pesquisa,
a obra, Sociologia Empírica do Lazer,
tornou-se um texto clássico e de leitura recomendável. Além de contextualizar historicamente a
constituição desse fenômeno, o autor identifica uma diversidade de
possibilidades, relacionando-as em seu livro, e que, por economia de espaço,
não serão abordadas aqui. Este autor leva em conta inclusive a fonte ou origem dos
lazeres, que algumas vezes são disponibilizados pelas organizações
sócio-espirituais (igrejas, clubes, dentre outros) ou sócio-políticas
(empresas, locais de trabalho, organizações governamentais e
não-governamentais). Dumazedier (1999) completa seu trabalho fazendo uma
sistemática organização e classificação de todo este material. Baseado nesta
sistematização foi montado o Questionário sobre as Atividades de Lazer
(Apêndice 3), aplicado como complemento das entrevistas.
Segundo esse sociólogo, o sentido
principal do lazer é a liberação das obrigações habituais. E a seu ver, o lazer
compreende três funções interdependentes: descanso, diversão e desenvolvimento
da personalidade.
Embora a definição central do
conceito de lazer para esta tese tenha sido baseada em Dumazedier (1999), ao
procurar compreender os significados das atividades de lazer foi impossível não
pensar em outros autores e buscar apoio também na noção de lúdico de Huizinga (1980), e de brincar
da Psicanálise (mais especificamente em Winnicott, 1975), já que esses termos
apresentam características bem semelhantes. Na verdade, Dumazedier equipara a
atividade de lazer do adulto com o brincar da criança, embora não chegue a usar
o conceito winnicottiano. Porém, as atividades de lazer, as atividades lúdicas
tanto quanto as atividades do brincar apresentam as mesmas propriedades:
negativas, relacionadas com as obrigações impostas; e positivas, que podem ser
definidas em relação às necessidades da pessoa. É preciso, no entanto,
esclarecer alguns pontos.
Em primeiro lugar, nunca é demais
enfatizar o fato do lazer se constituir como um fenômeno social e histórico. As
características socioculturais das atividades de lazer são adquiridas através
do convívio do indivíduo com seus grupos. Após as reflexões desenvolvidas por
Morin (1996), não é mais possível pensar que o lazer possa ser considerado um
fenômeno simples. “Tudo está em tudo e
reciprocamente” (MORIN, 1996:275). Para esse autor, “cada indivíduo numa sociedade é uma parte de um todo, que é a sociedade,
mas esta intervém, desde o nascimento do indivíduo, com sua linguagem, suas
normas, suas proibições, sua cultura, seu saber; outra vez, o todo está na
parte” (MORIN, 1996:275). Portanto, a atividade de lazer se constitui como
um processo cuja causalidade não pode ser vista linearmente. Como qualquer
outro fenômeno humano, o lazer precisa ser compreendido em amplitude e
complexidade. Sua causalidade é múltipla.
Em segundo lugar, seguindo a trilha
do pensamento da complexidade, é possível afirmar que as atividades de lazer,
como outras mais que fazem parte da condição humana, devem ser diferenciadas em
suas características particulares; porém também precisam ser articuladas num todo, através de seus aspectos mais
gerais. Cada atividade de lazer apresenta características gerais e específicas,
por isso seu entendimento precisa passar pela inserção em contextos micro e
macro-sociais. “Cada parte conserva sua
singularidade e sua individualidade, mas, de algum modo, contém o todo” (MORIN,
1996:273). Portanto, pode-se compreender o lazer como uma construção histórica
que reflete características da sociedade que o engendrou.
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