_____________________A Etimologia da Perversão
Elza Rocha Pinto
A palavra
perversão apareceu tardiamente na
linguagem médica. Ela é derivada do latim perversione,
que tem o significado de alteração ou transtorno. Dentro da terminologia
médica, a palavra perversão possui um sentido preciso: é o desvio ou
perturbação de uma função normal, sobretudo no terreno psicológico. De acordo
com este sentido, a perversão sexual vai indicar qualquer anomalia do comportamento sexual. É assim que o dicionário de
Aurélio Buarque de Holanda nos apresenta esta palavra. Como sinônimos, propõe
as palavras corrupção, desmoralização, depravação.
Já o
adjetivo perverso - derivado do latim perversu
é aplicado ao indivíduo perverso, ou seja, àquele que revela perversão ou
hábitos perversos. O indivíduo perverso é aquele que "tem malíssima
índole", que é muito mau, que é malvado. Seguindo esta mesma linha de
raciocínio, o verbo perverter, do latim pervertere
vai apontar para a pessoa que torna-se perversa ou má. Tem como sinônimos os
verbos corromper, depravar, desmoralizar, desvirtuar, deturpar, desfigurar.
Em
francês o significante perversion já
é registrado desde 1444. Ele se origina
do latim clássico perversio criado através do supino do
verbo pervertere. Tanto Lanteri-Laura (1994) quanto Chazaud (1976) pesquisam o Dicionário publicado por Émile Littré,
no século XIX, o qual define perversão como a transformação do bem em mal, definição que poderia se aplicar desde
a perversão dos costumes até a perversão
dos sentidos (visão, apetite, odor). O significado sempre indica uma mudança do melhor para o pior, uma degradação. Neste dicionário de Littré,[1]
ainda não existe o sentido de perversão sexual.
Perverso, no mesmo dicionário
indica a pessoa cuja alma se voltou para
o mal, enquanto que perversidade
se refere ao estado do perverso. [2]
A
perversão vai se confundir com a desrazão, na medida em que também se referia a
sensações de odores ausentes, ou a confusão de um odor com o outro. São as perversões dos sentidos, distúrbios que parecem
pertencer ao domínio das alucinações e dos erros. Interessante é que no Nouveau Petit Larousse Illustré (1955), “perverso” é apresentado como
equivalente de depravado, cuja rápida
explicação, “des goûts pervers”, parece ser ainda uma herança deste antigo
significado de perversão dos sentidos.
Os outros termos que este dicionário oferece já se ligam ao sentido de
degeneração: corrompido e vicioso.
A psicopatologia médica vai aproveitar o termo
perversão, para constituir uma variedade
de degeneração mental: a perversão moral,
que se confunde com loucura
moral. A perturbação da satisfação, o prazer desnaturalizado é julgado como
prazer contra natura.
Mas foi
um artigo do médico V. Magnam, Anomalias,
aberrações e perversões sexuais, lido em 1885 perante a Academia de
Medicina, que acabou fornecendo o sentido sexual do termo perversão. E é como perversão sexual que o significado vai prevalecer no século XX.
O significante perversão acaba por
designar as singularidades da sexualidade. Na modernidade desaparece o uso de anomalias sexuais, que tinha o sentido
quantitativo de um desvio em relação a uma média. Cai em desuso também o termo aberrações sexuais, que significava ao
mesmo tempo “afastamento” e “erro”. [3]
Para
terminar é importante uma última distinção. Perversion
em francês pertence à mesma série de perversité,
pervers, perverti. Pode-se dizer que
o termo perversão aponta para
comportamentos ou condutas que se passam na realidade
dos atos de alguém. E enquanto perversidade
denotava uma falha mais ou menos grave do sujeito, uma disposição permanente de
caráter.
As perversões relacionavam-se com o
comportamento sexual, ao passo que a perversidade remetia à agressividade, bem
como à duplicidade: cruel e maligna, determinando inexoravelmente o mal em outrem. Perversidade pertencia ao mesmo campo da mania
sem delírio, ao delírio dos atos e, mais tarde, à psicopatia. Nesse aspecto, as
perversões apareciam como os sintomas
manifestados pelo perverso. [4]
Estes
sentidos, por outro lado, estão bem próximos do significado que a palavra perversão tem dentro do contexto
psicanalítico. Se tomamos o Vocabulário
da Psicanálise, vamos ver que Laplanche e Pontalis (l970) discutem a
questão do "desvio", e terminam afirmando a dificuldade de conceber a
noção de perversão fora da referência a uma norma.
Antes de Freud, e
ainda nos nossos dias, o termo é usado para designar "desvios" do
instinto, definido este como um comportamento pré-formado, próprio de
determinada espécie e relativamente invariável quanto à sua realização e ao seu
objeto. [5]
Deixaremos para examinar em outro texto algumas
das colocações freudianas sobre a sexualidade em geral, e sobre as perversões em particular. Aqui
no entanto, podemos adiantar a síntese que estes dois autores fazem daquilo que
Freud irá designar como perversão. Em seu sentido mais amplo, este conceito vai
indicar o conjunto do comportamento psicossexual que acompanha algumas formas
atípicas de obtenção do prazer sexual:
Diz-se que existe
perversão quando o orgasmo é obtido com outros objetos sexuais
(homossexualidade, pedofilia, bestialidade, etc.), ou por outras zonas
corporais (coito anal, por exemplo) e quando o orgasmo é subordinado de forma
imperiosa a certas condições extrínsecas (fetichismo, transvestismo,
escoptofilia e exibicionismo, sado-masoquismo); estas podem mesmo proporcionar,
por si sós, o prazer sexual. (...) Em psicanálise, fala-se de perversão apenas
em relação à sexualidade. [6]
Assim,
para a psicanálise, perversão indica sempre o desvio em relação ao ato sexual normal. A norma aqui aponta para a
obtenção do orgasmo através da relação sexual genital com um parceiro do sexo
oposto.
Em outro
artigo vamos examinar o trajeto feito pelo fenômeno das perversões, desde o
território das leis até o domínio da psiquiatria.
[1]
Datado de 1875.
[2]
Os personagens de Nelson Rodrigues
são dotados desta perversidade. Amado
Ribeiro, personagem de Asfalto
Selvagem, é descrito como “o
repórter policial mais cafageste da face da Terra, capaz de achacar suspeitos,
inventar culpados, chantagear a mulher da vítima e o diabo a quatro, tudo para
vender jornal”. Em Dorotéia a maldade de D. Flávia toca as raias da insanidade.
Assassina duas de suas primas, arruina a beleza de Dorotéia, obrigando a moça a contaminar seu lindo rosto com chagas
e, com inveja da felicidade de Das Dores,
para castigá-la destrói as ilusões de sua filha, contando-lhe que ela está
morta. O fim da peça se encontra na solidão de Dorotéia e D.Flávia, e a
fala final é de uma crueldade exemplar:
“Dorotéia: Qual será o nosso fim?
D. Flávia: Vamos apodrecer juntas”, Nelson Rodrigues, Dorotéia, Ato III, p.
107.
[3]
Em inglês prevalece o termo aberration,
com um sentido próximo de delírio: afastar-se da trilha. Em alemão existem duas
palavras. Uma delas é o termo Sexuellen
Abirrugen, ou aberrações sexuais, que Freud vai tornar clássico. Mas existe tambémo uso de Anomalien der Geschelechtstrieb que pode
ser traduzido literalmente por “anomalias das pulsões de reprodução da
espécie”.
[4]
G. Lanteri-Laura, Leitura das Perversões, p. 26.
[5]
Cf. J. Laplanche, J.B. Pontalis, Vocabulário de Psicanálise - p. 432.
[6] Op. cit., p. 432.
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