Elza Rocha Pinto
O processo de avaliação
diagnóstica ocorre no início de boa parte das estratégias terapêuticas. E como
muito bem define O' Campo e col. (1978), trata-se de um processo de curta
duração, com objetivos bem definidos, através do qual o psicólogo,
utilizando-se de métodos e técnicas específicas, e orientado por uma teoria
escolhida previamente, vai avaliar aspectos da dinâmica individual e familiar
de uma pessoa; esse processo ocorre sempre após
uma demanda de orientação sobre problemas de ordem psicológica.
Para a adequada realização
de um processo tão complexo quanto este, são necessários determinados
conhecimentos. Em primeiro lugar é preciso um bom domínio de uma teoria de
personalidade, a qual vai fornecer os fundamentos teóricos a partir do qual o
psicólogo tentará compreender a pessoa. Além disto é preciso que sejam sólidos
não somente seus conhecimentos sobre desenvolvimento e psicopatologia, como
também sobre os recursos técnicos, métodos, instrumentos e estratégias que a
psicologia pode oferecer, no sentido de facilitar uma melhor compreensão sobre
a personalidade.
Mira y Lopez (1969), ao
comentar os problemas de diversos tipos relacionados ao desenvolvimento das
crianças refere-se à necessidade de um diagnóstico etiopatogênico preciso, que
possa levar a um adequado plano de tratamento e a um programa pedagógico
eficaz.
São inúmeros os problemas
que podem surgir vinculados a este processo. De imediato lembramos a
necessidade de que a avaliação diagnóstica se fundamente em uma abordagem
dinâmica e multidimensional da personalidade.[1]
Isto significa supor que todas as afirmações diagnósticas precisam estar contextualizadas
socialmente, além de permitir uma clara compreensão sobre as possibilidades de mudanças
futuras. Esta perspectiva assume, por um lado, que as causas de um
determinado problema devem se inserir em diversas ordens (culturais,
institucionais, familiares, genéticas, etc.); por outro lado exige que se
mantenha como meta tornar claro, para todos os envolvidos neste processo, a
importância do conceito de
transitoriedade do diagnóstico. Isto permite uma postura mais clara
contra a medicalização e estigmatização, fáceis de ocorrer quando se parte de
outros fundamentos teóricos.[2]
No entanto, escapando de
áreas mais polêmicas, vamos procurar manter os limites de um texto didático.
Para isto organizamos uma síntese das principais etapas já tão bem
desenvolvidas por outros autores como Arminda Aberastury (1969) ou Maria Luiza
O' Campo (1978). Porém, numa homenagem
singela ao professor Mira y Lopez, pessoa que tanto contribuiu no sentido do desdobramento das
técnicas de avaliação, escolhemos destacar o uso dos testes como instrumentos
complementares ao processo do psicodiagnóstico.
2. Definição e Objetivos do
Psicodiagnóstico
Na área clínica, a utilidade
da avaliação diagnóstica mostra todo seu valor no que diz respeito ao
atendimento infantil. Nem sempre é a criança ou o adolescente que precisa de
atendimento. Como diz Manoni (1971), a criança é um sintoma dos pais;[3]
ou então usando a designação do Pichon-Rivière (1986), a criança (e podemos
perfeitamente falar dos adolescentes também) é o bode expiatório da família; ela adoece porque o grupo nela deposita
maciçamente suas próprias partes doentes. E assim ela passa a ser o porta-voz
do grupo familiar.
A sociedade confere à criança um estatuto, porque o encarrega, por sua
vez, de realizar o futuro do adulto: a criança tem por missão reparar o malogro
dos pais, realizar-lhes os sonhos perdidos.[4]
Normalmente não é a criança quem procura o psicólogo; ela em
geral pouco sabe de sua situação; quando muito sabe que sofre e, algumas vezes,
nem isto. Em geral são os pais (ou responsáveis) que procuram o auxílio. Em
grande parte encaminhados por outro profissional da área de saúde mental, ou
então pela escola. Isto porque muitas vezes os pais não se dão conta das
condições emocionais desfavoráveis de seus filhos, e nem que existem problemas.
Outras vezes os pais percebem claramente que estão vivendo uma situação
emocional extremamente desconfortável e dolorosa, mas não sabem o que fazer,
nem como agir para modificar aquela situação. Sentem-se muitas vezes
angustiados, deprimidos, e desvalorizados enquanto pais. Sofrem, com o
sofrimento dos filhos. Nestas ocasiões
pode acontecer que um profissional (médico, fonoaudiólogo, fisioterapeuta,
professor, orientador educacional, etc.), ao lidar diretamente com a criança,
tenha seu olhar sensibilizado pelo sofrimento de seu pequeno paciente. Este
profissional pode procurar mostrar aos pais a necessidade de uma avaliação
psicológica mais profunda. E assim ele procura encaminhar os pais para um
psicólogo, que vai então realizar o psicodiagnóstico, para verificar que
medidas podem e devem ser tomadas.
Neste momento a
responsabilidade do psicólogo se impõe, pois muitas vezes atuando fora de uma
equipe multidisciplinar, a ele cabe a decisão sobre a orientação terapêutica a
ser dada. Por isto é necessário um exame detalhado e aprofundado, o mais
completo possível, para que o grupo familiar possa receber informações sobre a
melhor estratégia terapêutica, ou seja, aquela baseada em uma correta visão
sobre a dinâmica da situação familiar.
Apesar do psicodiagnóstico
poder se aplicar a qualquer pessoa, este processo, tal como será apresentado
aqui, é desenvolvido normalmente nos limites da faixa etária que se inicia na
infância, passa pela puberdade e termina na adolescência. Exceção feita para
casos bem particulares, o diagnóstico do adulto não atravessa as mesmas fases.
O adulto - mesmo o adulto jovem - ao procurar uma ajuda já não tem dúvidas
sobre a necessidade daquele atendimento. Além disto, diferente da criança, ele
verbaliza bem suas angústias e aflições, além de ter um melhor juízo crítico
para enfatizar, em seu relato ao terapeuta, aqueles acontecimentos que julga
serem importantes na instalação de seu sintoma.[CG1][5]
Então, o que vem a ser esta
avaliação da qual estamos falando? Como Maria Luiza O’Campo (1978) mostra tão
bem em seu livro O processo
psicodiagnóstico e as técnicas projetivas, o psicodiagnóstico é um processo
marcado por um contrato de duração temporária, contrato este que se faz entre o
paciente (indivíduo adulto, grupo familiar, pais e criança, casal, etc.) e o
psicólogo, onde o paciente pede ajuda para um problema determinado, e onde o
psicólogo se compromete a dar, uma vez que possa tomar conhecimento da dinâmica
daquele paciente em suas interações com seu meio. Para isto o psicólogo vai
lançar mão de vários recursos: entrevistas de anamnese, contato com
profissionais responsáveis, observação livre da criança dentro da própria
situação familiar, entrevistas de sessão livre, entrevistas para a aplicação de
testes, entrevistas de devolução, entrevistas de orientação final.
Esse processo tem duração
variável, pois o número de sessões depende de cada caso a ser examinado. No
entanto podemos imaginar a média das sessões varia entre seis a oito sessões,
realizadas em um período que poderá durar de uma semana a um mês, dependendo do
caso e do profissional. Existem atendimentos que são muito simples. Desde o
início já se pode ter uma noção muito clara do tipo de comprometimento do
paciente. Nestes casos algumas poucas entrevistas são suficientes para que a
hipótese diagnóstica possa ser verificada. Porém existem casos de difícil
compreensão; casos em que o diagnóstico diferencial é bem mais complicado. Por
exemplo, nem sempre é fácil diferenciar claramente entre uma criança autista e
uma outra que apresente deficiência mental. É aqui que a avaliação do psicólogo
se torna tremendamente importante visto que muitas vezes o destino do paciente
vai depender inteiramente de sua
opinião.
Entre as etapas do processo, escolhemos neste texto apreciar sucintamente a Entrevista de Devolução.
Uma vez que a aplicação dos testes psicológicos chega ao fim, o processo do psicodiagnóstico está praticamente encerrado. As conclusões diagnósticas devem ser trasmitidas a todos os envolvidos no processo de diagnóstico, e sobretudo devem ser conhecidas pela criança ou pelo adolescente. Os motivos desta comunicação final já foram muito bem analisados por Maria Luiza O’Campo e cols. (1988). A entrevista de resultados (ou de devolução) é um dos momentos mais importantes de todo este processo. É da aceitação e de uma boa elaboração das comunicações, por parte de todos, que vai depender muitas vezes o sucesso ou o fracasso de um possível atendimento psicoterapêutico.[6]
O fato desta etapa estar
colocada no final do processo não significa que no decorrer do processo de
psicodiagnóstico, alguns dados não possam ir sendo, aos poucos, discutidos com
as pessoas. Para nós, a interatividade e a flexibilidade constituem
características fundamentais do papel clínico. Porém esta fase da discussão dos
resultados permite que o psicólogo possa realizar uma intervenção mais focalizada sobre as comunicações
diagnósticas, e sobre as possíveis orientações que podem vir a ser
desenvolvidas. Para tanto o psicólogo vai procurar discutir com todos os envolvidos, não apenas o
resultado de suas observações, como também sua opinião quanto ao que deverá ser
feito. As orientações a serem dadas são diversas, e vão depender do diagnóstico
de cada caso. Elas variam desde psicoterapia para o paciente (individual ou de
grupo), ou indicação de tratamento para um ou para ambos os pais, até
recomendações de ordem pedagógica para a escola da criança ou do adolecente.
Somente através da visão
panorâmica que o processo psicodiagnóstico traz para o psicólogo é que ele
poderá chegar a propor medidas eficazes para solucionar o problema não só da
criança, mas de todo o campo dentro do qual ela está inserida (social,
familiar, escolar, institucional, etc.). Como já foi dito, as indicações
variam: terapia para a criança ou para seus pais, psicoterapia de casal,
encaminhamento para um neurologista em casos de suspeita de comprometimento
orgânico ou para outros tratamentos (fonoaudiologia, psicomotricidade, etc),
encaminhamento para atividades de socialização ou de expressão artística,
orientação para os professores, pais, familiares ou outros profissionais que
estejam precisando de auxílio no lidar com aquela criança ou adolescente.
No entanto, a entrevista de
resultados é uma etapa delicada, que exige muita sensibilidade e muita técnica
por parte do psicólogo. O´Campo e cols. (1988) lembram muito bem que esta
comunicação precisa ser feita de forma a permitir que ela seja elaborada pelas
pessoas com quem o psicólogo está discutindo a sua opinião. Mesmo que algumas
observações já tenham sido dosificadas, ao serem discutidas em momentos
anteriores, elas precisam ser recolocadas neste instante, de forma integrada.
Algumas vezes a entrevista de devolução precisa se desdobrar em contatos
posteriores. Nem sempre é fácil ouvir o
que o psicólogo tem a dizer. E isto se aplica não apenas aos pais, como também
à escola ou a outros profissionais que estejam tratando da criança ou do
adolescente, e que estejam recebendo a devolução. Às vezes é necessário dar
tempo às pessoas, para que elas possam diminuir sua ansiedade, aceitando
finalmente a indicação que está sendo dada. Nestes casos, o trabalho de
desmontagem das resistências pode exigir que o processo de devolução se
desdobre em várias entrevistas. É muito importante que todos, e entre eles
especialmente os pais, compreendam bem a situação da criança, e que elaborem
adequadamente as possíveis orientações, e as consequências futuras de seus atos
atuais. É importante que a escola entenda a necessidade de modificar determinadas
estratégias de ensino ou disciplinas. É importante que outros profissionais
compreendam a necessidade de um atendimento multidisciplinar, realizado em
equipe.
Finalmente nunca é demais
lembrar que todo este processo final precisa ser interativo. Isto significa que
também o psicólogo necessita processar e elaborar os novos dados e informações
que vão surgindo, até a ponto de ampliar ou retificar suas recomendações. Não
adianta estabelecer metas ideais cuja realização seja impossível.
[1] A
personalidade apresenta aspectos estruturais mais estáveis, porém submetidos a
uma constante modificação. Por vezes tais mudanças podem até ser
imperceptíveis. Porém quem faz o diagnóstico precisa ter clara esta noção, para
poder realizar intervenções modificadoras junto não apenas às famílias, como
também às instituições que vão ser cenários para algumas atividades
relacionadas à criança e ao adolescente.
[2]
Infelizmente o espaço não é suficiente para uma ampla reflexão sobre tais
problemas. Enquanto deixamos o aprofundamento de alguns assuntos para outra
ocasião, remetemos o leitor ao texto de Roberto
Moraes Salazar, O Laudo Psicológico e
a Classe Social.
[3] “O discurso que se processa engloba os pais,
a criança, o analista: é um discurso coletivo que se constitui em torno do
sintoma apresentado pela criança”. Maud
Mannoni, A criança, sua "doença” e os outros, p. 9.
[4]
Op. cit., p. 9.
[5]
Não estamos desconhecendo aqui as causas inconscientes, mas apenas reconhecendo
a importância de situações e eventos traumáticos que podem ser conscientes.
[6] Lembramos existir uma diferença de objetivos entre a entrevista de resultados e a entrevista de contrato; esta última focaliza as condições que se prendem ao atendimento psicoterapêutico. Naqueles casos em que o atendimento psicoterapêutivo vai ser assumido pelo mesmo profissional que realizou a avaliação diagnóstica, e quando a devolução é bem aceita, podem ocorrer superposição de objetivos nas entrevistas finais.
Referências Bibliográficas
ABERASTURY, ARMINDA - El psicoanalisis de niños y sus aplicaciones. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1972.- ABERASTURY, ARMINDA - Teoría y Técnica en Psicoanálisis de Niños. Buenos Aires: Paidós - 2a. ed., 1969
- CUNHA, JUREMA ALCIDES, NUNES, MARIA LUCIA TIELLET, WERLANG, BLANCA GUEVARA - As Respostas ao CAT-A na faixa pré-escolar - Porto Alegre, Psico, v. 22, no. 2 , p.89-103, Jul/Dez 1991.
- GRINBERG, REBECA; FAIGON, DELIA e SOIFER, RAQUEL - Conceptos Actuales sobre el análisis de niños en el grupo argentino. Apostila do Curso da Professora Arminda Aberastury, organizado pelo Dr. Fábio Leite Lobo, e vinculada à Clínica Psicoterápica do Rio de Janeiro.
- HAMMER, EMANUEL F. - Tests Proyectivos Gráficos. Editorial Paidós, Buenos Aires, 1969.
- KOPPITZ, ELIZABETH MUNSTENBERGER - Psychological Evaluation of Childre's Human Figure Drawings - Grune & Stratton, Inc., l968
- LAWRENCE EDWIN ABT e BELLAK, LEOPOLD - Psicologia Proyectiva,
- MACHOVER, KAREN - Proyección de la personalidad en el dibujo de la figura humana. Ediciones Cultural - Colombia - l974
- O’CAMPPO, MARIA LUISA SIQUIER DE, ARZENO, M.E.G., PICCOLO, ELSA GRASSANO y colab. - Las Técnicas Proyectivas y el Proceso Psicodiagnóstico. Buenos Aires: Editorial Nueva Visión - 4a. ed., 1978.
- O'CAMPO, MARIA LUIZA e colaboradores - O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas - Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1978.
- NEJAMKIS, JULIO - Los estilos del dibujo en el psicoanalisis de niños - Alex Editor, 1977
- PICHON-RIVIÈRE, ENRIQUE - Teoria do Vínculo. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1986.
- RAPAPORT, DAVID - Tests de Diagnostico Psicologico - Editorial Paidos, Buenos Aires, 1965
- SALAZAR, ROBERTO MORAES - O Laudo Psicológico e a Classe Especial - Psicologia, Ciência e Profissão, Ano 16, no. 3, págs. 4-11, 1996 - Revista do Conselho Federal de Psicologia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário