Observação da Criança em seu Meio Ambiente
No Brasil não temos ainda,
vinculado à clínica, a figura de um psicólogo social, como em algumas clínicas,
na Inglaterra. Suas funções são algo semelhantes à do nosso assistente social:
avaliar as condições sociais bem como a dinâmica do grupo familiar. O psicólogo
pode desenvolver estas observações nas vizinhanças e na própria residência
familiar. A visita do psicólogo ao lar onde o paciente vive pode trazer
informações valiosas sobre as interações do grupo familiar, assim como sobre o
próprio espaço físico e seus significados.
Esta compreensão do espaço,
tal como nos revela Gisela Pankow (1988) é muito importante.[1]
A etologia, pelo seu lado, vem mostrando a importância dos espaços para o mundo
animal, onde a marcação do território é um fenômeno comum. Conforme M. Augras
(1978) nos lembra:
O espaço próprio, sendo extensão do corpo, não pode ser invadido.
Constitui condição imprescindível de sobrevivência, tal como os limites
corporais. É, textualmente, o espaço
vital, cuja extensão deve ser mantida, custe o que custar. Toda a história
do mundo é escrita em termos de manutenção e extensão do território, e em
nenhum outro campo a transgressão dos limites acarreta mais dores e
sofrimentos. (...) Proteção e extensão do corpo, a casa é por excelência o território
próprio. Estende-se em todas as direções da espacialidade: em cima, por baixo,
ao lado, em frente, atrás. Nela, o homem é realmente o centro do espaço. [2]
A dinâmica do espaço, tal
como ele é vivenciado pelos membros da família, pode trazer informações
adicionais e complementares, enriquecendo a compreensão sobre determinados
estados emocionais, assim como sobre os hábitos e atitudes de uma pessoa. Além
disto o conhecimento do grupo familiar se torna muito mais concreto para o
profissional que vai lidar com o caso. Esta prática já nos foi útil em ocasiões
passadas;[3] e achamos que poderá ser indicada na
avaliação de alguns casos.
Em contrapartida, torna-se
muito útil, também, a observação livre da criança dentro de um setting mais controlado e homogêneo.
Mira y Lopez diz que "...os jogos infantis, longe de serem uma atividade
secundária, optativa e susceptível de controle externo, são uma atividade
essencial, necessária e básica para o normal desenvolvimento da personalidade
da criança".[4] A
sala de brinquedo, da mesma forma como o material da caixa da sessão livre,
fornece uma situação padronizada, e
bastante neutra, para que a criança possa expressar, através do brinquedo, seus
conflitos, fantasias, angústias, temores e expectativas. Os primeiros analistas
infantis viram a tremenda importância desta linguagem lúdica. Freud pelo menos
em dois momentos dentro de sua obra já havia apontado a trilha desta linguagem.[5]
Continuando o trabalho freudiano, Melanie Klein (1964) teve a ousadia de
comparar a seqüência do brincar com as associações livres que o adulto
produzia. Ao fazer isto conseguiu chamar atenção de todos para a significação
do brincar, e abriu as portas da psicanálise para as crianças. A partir daí o
brinquedo passou a ser a via principal de acesso às fantasias e conflitos
inconscientes da criança. Na esteira dos psicanalistas infantis a hora de jogo
diagnóstica passou a ter uma vida própria no processo de avaliação. Lembramos
mais uma vez Mira y Lopez:
A seriação dos motivos de jogo, modificação do ânimo e experiência, tarefa construtiva ou destrutiva das atividades lúdicas e, sobretudo, o grande simbolismo dos "temas" (reveladores diretos de conflitos, temores e desejos básicos) colocaram esta exploração psicolúdica em primeiro plano entre as técnicas da moderna Psicologia Evolutiva (dinâmica, global e personalista).[6]
Nesta hora de jogo diagnóstica, a criança deve ficar livre para determinar a direção da sessão, realizando o que bem entender: poderá brincar, desenhar ou conversar. "Ao oferecer à criança a possibilidade de brincar em um contexto particular, com um enquadramento dado que inclui espaço, tempo, explicitação de papéis e finalidade, cria-se um campo que será estruturado, basicamente, em função das variáveis internas de sua personalidade."[7] Constitui-se assim uma excelente oportunidade para que o psicólogo possa testar as hipóteses diagnósticas mantidas até então. Esta observação direta pode contribuir para confirmar ou não a impressão diagnóstica causada pelo relato dos pais, e pelos contatos com profissionais diretamente envolvidos com a criança; pode estabelecer a precisão de um diagnóstico diferencial; e pode ajudar o psicólogo a decidir sobre a necessidade ou a urgência de uma terapia. Rebeca Grinberg, Delia Faigon e Raquel Soifer (1968), realizaram uma pesquisa entre psicanalistas argentinos de crianças e adolescentes, onde confirmam este ponto de vista:
Aqueles que tomam sistematicamente a hora de jogo, fundamentaram tal prática na necessidade de verificar a impressão diagnóstica obtida durante a entrevista com os pais, ter um contato direto com a criança e poder decidir se se sentem contratransferencialmente dispostos a tratá-la. Ou seja, emprestam a esta sessão uma categoria semelhante à entrevista com o adulto. Contudo, deixam de lado esta norma naqueles casos em que a criança já vem diagnosticada previamente por uma pessoa cuja experiência respeitam. [8]
Semelhante às primeiras entrevistas com os pais, esta fase nem sempre se esgota em uma única entrevista; podem ser necessárias a realização de duas ou mais sessões livres, conforme a necessidade do atendimento em questão.
A partir deste momento,
alguns processos psicodiagnósticos podem ser encerrados. E então o psicólogo passará para a fase da devolução de suas observações. Isto se dá
quando o caso é muito claro, quando as condições dinâmicas são transparentes, e
sempre quando o psicólogo consiga formar uma visão adequada sobre o
encaminhamento. Só assim ele poderá indicar uma estratégia de atendimento, sem
ter necessidade de recorrer à etapa seguinte. Porém nem sempre isto acontece.
Muitas vezes o diagnóstico diferencial não fica claro, e precisamos realizar
outras observações. Para obter mais informações o psicólogo poderá, então,
recorrer a outras técnicas, específicas de sua profissão: os testes
psicológicos.
[1]
Também para Cassirer, quando afirma
que "o lugar é uma parte do ser". Citado por Monique Augras, no capítulo "O Espaço", em O Ser da Compreensão, p. 38.
[2] Monique Augras, O Ser da Compreensão - Fenomenologia da Situação de Psicodiagnóstico,
p. 40/41.
[3] Por ocasião de nosso trabalho como supervisora
do Serviço de Psicologia Aplicada da
Universidade Santa Úrsula, no período entre 1976 e 1989, tivemos
oportunidade de desenvolver este tipo de observação em diversos casos atendidos
por nossas equipes de psicoterapia infanto-juvenil.
[5] Em l909 Freud
publica o historial clínico onde ao analisar a fobia de um menino de cinco anos
de idade leva em conta o claro significado de algumas brincadeiras de Hans. Posteriormente, em 1920, em Além do Princípio do Prazer, ao estudar
a compulsão à repetição, analisa a brincadeira de uma criança de um ano e meio;
afirma que o brinquedo repetido foi o meio usado pela criança para elaborar sua
frustração diante do afastamento da mãe, renunciando à satisfação da pulsão.
Com isto apontava o caminho que levou ao rápido desenvolvimento da psicanálise
para crianças.
[6] Emilio Mira y Lopez - Psicologia Evolutiva. Rio de Janeiro: Editora Científica, s/d, p.
20.
[7] Os critérios
para a avaliação do brincar, segundo uma perspectiva psicanalítica,
podem ser encontrados na excelente exposição desenvolvida por um grupo de
psicanalistas infantis, no capítulo VII do livro de Maria Luiza O' Campo e col., de onde tiramos o trecho citado acima.
As Técnicas Projetivas e o Processo do
Psicodiagnóstico, p. 169.
[8] Rebeca
V. de Grinberg, Delia Faigon e
Raquel Soifer - Conceptos Actuales
sobre el Análisis de Niños en el Grupo Argentino, p. 6.
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