sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Nelson Rodrigues, uma Flor de Obsessão

Elza Rocha Pinto

Escrito em 1995

Que obras são estas que são contempladas com a aura peculiar que se empresta à palavra ARTE?
Que homens foram estes que as criaram, e que significado tinha para eles e para seu público a obra realizada? [1]
                      Ernst Kris

Nelson Rodrigues, uma flor de obsessão,[2] inaugurou o moderno teatro brasileiro. Ele foi uma das grandes expressões culturais de nossa época. Sua produção é imensa, e inclui vários gêneros, como as crônicas e folhetins que escreveu para os jornais,[3] e os romances e peças teatrais. Ele trabalhou em importantes órgãos de comunicação do país. E foi um dos primeiros jornalistas a marcar sua presença na televisão brasileira. Seu trabalho, que se inicia com reportagens policiais em 1925,  atravessou diversos regimes políticos, que vão do Estado Novo à ditadura militar, passando por breves períodos de democracia liberal. Sofre a mais massacrante campanha que um dramaturgo poderia suportar, sendo durante vinte anos considerado o único autor obsceno do Brasil.[4] Teve quatro peças interditadas, foi vaiado duas vezes no Municipal, e várias vezes despertou tumultos na platéia. Sua vida foi marcada por diversas tragédias. Viveu grandes paixões. Muitas vezes não correspondido, entregou-se a profundas depressões. Entretanto toda esta intensidade parece ter fortalecido sua obra. Pois foi desta matéria que Nelson construiu sua dramaturgia.
 Nelson Rodrigues é reconhecido como um dos nossos maiores autores, tendo inaugurado o moderno teatro brasileiro.[5] Ele revolucionou não apenas a dramaturgia, como a própria encenação. Um autor que dirigia seus atores a partir das rubricas,[6] uma de suas marcas registradas. Através delas Nelson assumia o papel de diretor: armava a cena, as marcações, as intenções emocionais e dramáticas dos atores.
Sua construção cênica é vibrante. Resgata a imagem e o movimento, deixados em segundo plano pelo teatro do início do século. Abre-se a todas as técnicas teatrais - desde o coral da tragédia grega até os palcos móveis, múltiplos. Cores, sons, luzes. Não foi à toa que Ziembinsky pôde iluminar com tanto talento a inauguração do atual Teatro Nelson Rodrigues, tornando por vezes diáfano o Vestido de Noiva. Ele já tinha o brilho rodrigueano na marcação da cena em planos e dimensões diferentes.
Podemos dizer que Nelson, sem o menor pudor, quebrou com a linguagem teatral de sua época, recorrendo aos flash-backs cinematográficos, ao plano do maravilhoso e do fantástico,[7] às intensidades sonoras utilizadas pelo rádio. Enfim, ele imprimiu uma grande transformação no teatro brasileiro, através de uma multiplicidade de recursos que nos lembra o teatro empesteado de Artaud.[8] O teatro de Nelson, sem dúvida, é cheio de peste.
O impacto de suas peças em várias ocasiões provocou revoltas. A radical falta de moral de alguns de seus personagens ofendeu inúmeras vezes a sensibilidade da família burguesa brasileira. A obsessão exasperada pelo sexo, levado muitas vezes ao paroxismo do incesto, fez com que o teatro de Nelson fosse interditado pela censura, vaiado em palco aberto,  criticado pelos jornais, incompreendido por muitos de nossos intelectuais. [9]
Interessante esta reação, na medida em que Nelson Rodrigues é um dos autores teatrais que melhor retrata o espírito e a ideologia da classe média das grandes cidades brasileiras. Por que esta resistência tão intensa à sua dramaturgia? Por que ele comoveu de tal forma o Brasil? Onde seus textos violentam o cidadão pacatamente instalado no confortável equilíbrio de sua família? Para tentar responder a um tal questionamento seria necessário um mergulho profundo na obra de Nelson.
Porém tomar a totalidade de sua produção estava fora de nosso atual propósito. Foi necessário, então, fazermos um recorte. Seria preciso escolher um texto através do qual iniciar nossa investigação. Que  critério utilizar para selecionar um segmento significativo da obra de Nelson? Para solucionar este problema, resolvemos partir de um dos pressupostos psicanalíticos. Ou seja, da suposição de que existe uma intensa relação entre o artista e sua obra. Assim,  poderíamos limitar nossa seleção, acreditando que a leitura e interpretação de um único texto permitiria trazer alguns elementos de compreensão, os quais poderiam ser aplicados a outras produções de Nelson Rodrigues.
Inicialmente pensamos em utilizar as crônicas jornalísticas. Porém surgiu um problema: as crônicas não se esgotam em  si. Seus motes se apresentam em seqüências. Ou seja, Nelson desenvolvia seus temas através de vários dias sucessivos. O livro O Óbvio Ululante exemplifica esta elaboração à intervalos. Justificando a seleção cronológica das Confissões publicadas em O Globo, seu organizador Ruy Castro (1993), comenta na breve introdução, feita ao livro:
A obediência à cronologia era indispensável porque não raro Nelson martelava o mesmo assunto em crônicas seguidas, até esgotá-lo. [10]
Nelson explorava um mesmo assunto, desfiando crônicas diferentes. Mas estas crônicas não foram publicadas integralmente. Houve uma seleção prévia, conforme nos informa o organizador do livro. E nesta seleção algumas foram eliminadas, por terem sido consideradas redundantes ou repetitivas. Mas num estudo como o que pretendíamos fazer este não seria o problema. Ao contrário: através das repetições poderíamos ver as diferenças se cristalizando em torno de posições mais definidas.
Por isto, abandonamos esta primeira idéia, para escolher uma obra cujo recorte - ou unidade -, tivesse sido realizado pelo próprio Nelson. Na verdade este abandono dos textos jornalísticos foi feito sem muitas tristezas: suas crônicas - folhetins, à parte  - nem sempre podiam apresentar a dramaticidade das peças teatrais. Levando-se em conta a totalidade de suas criações literárias, Nelson se destaca, sem dúvida, a partir de sua dramaturgia. Imaginamos até que tenha sido sua paixão verdadeira, visto a intensidade com a qual ele se entregava a elaborar suas peças, a conseguir suas montagens e, principalmente, a elogiá-las cabotinamente, através de seus vários pseudônimos. Chega a ser comovente o esforço de Nelson no sentido de se preservar como autor teatral, e que resultou nos pseudônimos de Suzana Flag e de Myrna, suas máscaras femininas. Para prestigiar este desejo de Nelson, nos decidimos por seu teatro. Como objeto de nosso estudo escolhemos Álbum de Família. Por ela ser uma das mais expressivas peças dentro do teatro de Nelson Rodrigues. E pela singularidade de sua proibição durante mais de 20 anos.[11] Além disto, era a peça predileta de Nelson, que certa vez confidenciou a Sábato Magaldi (1987) sua secreta preferência pelas peças míticas, sobretudo por Álbum de Família.


[1] Ernst Kris, Psicanálise da Arte, p. 11 
[2] Nelson escreveu em uma de suas crônicas: “Se eu fosse mais importante, e entrasse numa enciclopédia, gostaria que fosse assim, mais ou menos assim - NELSON RODRIGUES - Autor Brasileiro, também conhecido por flor de obssessão, etc. etc”, Nelson Rodrigues, O Reacionário, memórias e confissões, p. 359.
[3] Com o pseudônimo de Suzana Flag e de Myrna.
[4] São inúmeras as opiniões contrárias a Nelson Rodrigues, que podem ser encontradas ao longo de sua carreira. Como exemplo, citamos a opinião que Gracinda Freire declarou a Fatos e Fotos, em 1965: “Li três páginas de Toda Nudez Será Castigada, e o personagem principal me repugnou. Nelson Rodrigues é o maior comerciante do teatro. É o dono absoluto da indústria do sensacionalismo”.
[5] Ver a este propósito o livro de Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações.
[6] Este termo se refere às orientações marcadas antes do início de suas falas.
[7] Embora sabendo que tais termos apresentam definições mais precisas, pensamos que eles poderiam ser aplicados a algumas peças de Nelson. Em Dorotéia, uma das personagens é a misteriosa Das Dores, que nasceu morta, mas que pensa que é viva. Já  Valsa nº. 6 traz para a cena a figura de uma encantadora menina que, ao morrer, tenta recordar-se do que aconteceu; o aparecimento de suas memórias delirantes, imprime um caráter de maravilhoso, sem no entanto empobrecer a dimensão trágica da peça. Vestido de Noiva já havia demarcado um interesse iniciante de Nelson pelo fantástico, traduzido nas alucinações e delírios de Alaíde. Como o próprio Nelson vai afirmar, numa entrevista que dá ao O Cruzeiro, três meses depois da estréia, referindo-se a Alaíde, que está morrendo: “Sua memória entra em franca dissolução, perde qualquer harmonia, digo mais, qualquer ordem cronológica. Tudo se superpõe monstruosamente: fatos, imagens e sonhos. Não há mais noção de tempo: Vestido de Noiva está, então, fora do tempo” (Ruy Castro, O Anjo Pornográfico, p. 178). Na peça entramos em outras dimensões temporais e espaciais. Esta atração pelo fantástico vai reaparecer em outros momentos. Lembramos que  Dorotéia poderia ter inaugurado o teatro do absurdo, caso Nelson Rodrigues não fosse um brasileiro.
[8] Em O teatro e seu duplo,  Artaud (1984)  abre seu livro com um artigo entitulado O teatro e a peste, onde ele registra os parâmetros de seu teatro. Ele quer um teatro cruel, rigoroso, porém extremamente plástico e belo, de forma a  contaminar a platéia, como uma peste.

[9] Ver a este respeito a análise realizada por Pompeu de Souza, em Teatro Quase Completo, vol 1.
[10] Castro, Ruy, in: Crônicas, coletânea de crônicas de Nelson Rodrigues Ruy Castro, in: Crônicas, coletânea de crônicas de Nelson Rodrigues.

Castro, Ruy, in: Crônicas, coletânea de crônicas de Nelson Rodrigues