segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O Delírio e a Prática Psicanalítica



__________________________ O Delírio e a Prática Psicanalítica

Elza Rocha Pinto

 
Quero estar desperto no sonho e conduzir meus sonhos como um homem desperto. Não aceito o inconsciente, não quero saber disso dentro de mim, de modo algum. [1]
                                                Artaud
A prática da clínica psicanalítica não pode se desvencilhar de alguns referenciais teóricos. E por isto às vezes os psicanalistas acabam por agir como os médicos citados por Artaud, e não aceitam o delírio em seus pacientes.
Para a psicanálise, as defesas das pessoas precisam estar ajustadas na justa medida platônica.[2] Na medida. Não fora dela. O trabalho do analista acaba sempre por focalizar o ego, tanto na perspectiva mais ortodoxa quanto na linha lacaniana. Freud e Melanie Klein sempre assumiram, sem o menor pudor, seu compromisso com a cura. Mas a escola lacaniana parece ter reagido a isso.
Mas, na genealogia do psicanalista existe um fio que vem do filósofo, passa pelo confessionário e termina no divã do consultório. A escuta do paciente pelo seu analista veio substituir claramente a confissão católica.[3] A terapia laica dentro da cidade é uma cena que vai sendo constituída aos poucos. Antigamente o tratamento da problemática psíquica era basicamente religioso. Não foi à toa que Levi-Strauss (1991) comparou os terapeutas da cidade com a figura religiosa dos pagés e feiticeiros nas primitivas tribos indígenas. Ao analisar a eficácia simbólica, ele afirma:
A psicanálise pode recolher uma confirmação de sua validade, ao mesmo tempo que a esperança de aprofundar suas bases teóricas e de melhor compreender o mecanismo de sua eficácia, por uma confrontação de seus métodos e de suas finalidades com os de seus grandes predecessores: os xamãs e os feiticeiros. [4]
O perdão dado pela figura do padre se transformou na elaboração da culpa, que o paciente vai realizar acompanhado por um super-ego externo menos cruel, o analista. Ora, a crítica marxista vai focalizar a  religião como um anestésico, um ópio do povo. O padre católico seria o moderno traficante desta droga. Lacan deve ter percebido a nítida correlação entre estas duas gestalts: o confessor e seu penitente, e o analista com seu paciente. Sendo a culpa sempre o fulcro da questão. A compreensão do caráter social e político, do exercício e da prática psicanalítica, no contexto do século XX, podem ter determinado a reação da escola lacaniana quanto à prática da cura.[5] 
Ora, em paralelo, o impacto brutal dos bits e bytes marcaram uma diferença acelerada por relação ao tempo em que Freud viveu. Na era da comunicação, a velocidade das transformações tem sido muito intensa. Se a psicanálise foi a prática revolucionária da passagem do século, já deixara de ser em poucos anos de existência. Hanna Arendt (1987) reeditou muito adequadamente o caráter público do ato político grego. O ato político é um ato grupal. É nas ruas que se faz a política. Nas praças. Ou nas passeatas. Não nos consultórios semi-iluminados dos psicanalistas, onde o sujeito volta-se para dentro de si mesmo, numa viagem quase interminável ao interior de uma subjetividade particular. Não há política no particular.
Talvez por isto Lacan tenha tentado recusar o papel do novo religioso. Intelectual de esquerda, ele não poderia compactuar com a idéia de estar contribuindo para a formação de uma população dócil e bem adaptada. Os lacanianos sempre afirmaram que não há objetivos de cura, quando atendem um paciente. Mas isso não se sustenta: nem teoricamente, nem na prática.[6]
Lacan tenta confirmar sua distância das concepções naturalistas da psicanálise freudiana com o auxílio da lingüística saussureana. Uma lingüística estruturalista. Sem falar do recurso às matemáticas, que forneceram os famosos matemas. E que  fazem um combate ruidoso contra as categorias do imaginário. Foi assim que a psicanálise francesa se modernizou, passando a enxergar a psicanálise americana com um certo desprezo. Esta é acusada entre outras coisas do pecado da “cura”, pois quer livrar o paciente de suas loucas fantasias, e de seus estranhos delírios. Os plebeus americanos vulgarizaram a psicanálise, pois em vez de se centralizarem simplesmente na nobre escuta do inconsciente, se arremeçaram ao fortalecimento do ego. E pretenderam desenvolver todo um trabalho tendo como foco o sintoma. Abominável heresia!
Mas na verdade é Lacan (1966) quem faz o grande combate contra a categoria do imaginário. Já no estágio do espelho[7] o imaginário se apresenta como que articulado pelo simbólico. Ou seja, para Lacan só interessa o imaginário enquanto prisioneiro do simbólico. Não se quer uma autonomia real para o imaginário.
De novo é preciso lembrar o grito desesperado de Artaud, implorando que seu médico não o livrasse de suas visões delirantes: “Os estados místicos do poeta são a base de sua poesia!”. Embora sua carta visasse o Dr. Ferdière, ela poderia ser perfeitamente endereçada a alguns representantes da psicanálise, que tanto rezam pela cartilha do simbólico, que prezam a racionalidade. É preciso não esquecer que Freud tinha uma grande expectativa a respeito da razão. Ele desejava que a razão pudesse um dia construir o seu reinado:
A voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não consegue uma audiência. Finalmente, após uma incontável sucessão de reveses, obtém êxito. Esse é um dos poucos pontos sobre o qual se pode ser otimista a respeito do futuro da humanidade e, em si mesmo, é de não pequena importância. E dele se podem derivar outras esperanças ainda. A primazia do intelecto jaz, é verdade, num futuro muito distante, mas, provavelmente, não num futuro infinitamente distante. [8]
Como complemento, lembramos mais uma vez as origens de Lacan, na antropologia de Levi-Strauss (1991), que por sua vez foi buscar a função simbólica dentro da lingüística saussureana. Levi-Strauss luta contra a diversidade através de uma unidade básica: o átomo do parentesco. [9]
Saussure, já no início de seu livro, Curso de Lingüística Geral,  quando se pergunta o que é a lingüística, vai desfazendo-se de todas as multiplicidades, até constatar que a lingüística tem seu objeto teórico na Langue, que é o grande sistema. Ele estabelece a sintaxe, que é a “lingüística sincrônica”, cuja unidade última é o signo. 
Todos os três - Lacan, Levi-Strauss e Saussure, - lidam com o objeto do conhecimento, ou seja, com o objeto abstrato. Não se interessam pelo objeto real, o qual seria o referente. Lacan e Levi-Strauss fogem da rude aplicação do modelo lingüístico saussureano através de seus estilos diferentes. Mas não podem esconder o óbvio: que é sempre atrás de uma totalidade abstrata, e atrás de formas de controle que o pensamento deles se constitui.
E o que é atingido com isso? O que é atingido é sempre a multiplicidade, as bifurcações, o imaginário. Atinge-se o mesmo objetivo que Platão desejava. Platão também combatia as multiplicidades e as singularidades. Queria expulsar os simulacros, criados pelos sofistas.[10] E é com dificuldades que ele abre seu coração para admirar o poeta. Para ele Homero e Hesíodo deviam mendigar de cidade em cidade, onde jamais seriam “carregados pelo povo”, pois que este lugar só caberia a alguém que defendesse as essências, a verdade, o abstrato.
Este discurso contra a aventura do imaginário nunca deixou de ser retomado na civilização ocidental. A  psicanálise pode ser vista como uma das últimas versões do platonismo. Paradoxalmente, apesar de ter sido revolucionária no início do século, ela teve também seu papel regulamentador. A função de controle da psicanálise foi levantada por Foucault (1977): passamos a vigiar a alma ou psiquismo. O interior do sujeito, com a psicanálise, passa a ser vasculhado com o objetivo de se garantir a saúde mental. Evitam-se as regressões, ou a “imaturidade afetiva e mental”. O objetivo é a disciplina da mente, porque em paralelo o Estado organiza a disciplina do corpo, como forma de submissão.[11] Nenhuma corrente psicanalítica aceita a morbidez de uma libido fixada ou regredida em neuroses ou psicoses. Só isto já serviria para mostrar como a psicanálise funciona dentro de um universo teórico com padrões platônicos. O comportamento ideal seria o “normal”. Procura-se a “medida” grega. Nada em excesso, a máxima inscrita no templo grego, e que norteou a filosofia aristotélica, está inscrita também no coração de qualquer psicanalista.
Com Freud ou com Lacan, vive-se num mundo de carência, um mundo de necessidade, onde o horizonte é de ameaças: a ameaça da perda de controle, a ameaça da loucura. Acabamos de indicar como Lacan combate o imaginário, terminando com a subordinação do pequeno outro pelo grande Outro. Ou seja, Lacan elege o domínio do simbólico. Sua teoria trata afinal do “grande objeto abstrato”, defendendo a Lei, através do nome do Pai.
Ora, a autonomia do imaginário só pode ser encontrada nos sintomas psicóticos. O psicótico seria aquele que não aceita a lei da castração. Como Artaud nos lembra, o louco é o homem que preferiu enlouquecer “no sentido socialmente aceito”, a se trair, a trair uma determinada idéia. E por isso o louco não tem entrada neste reinado do simbólico. Para os lacanianos, o louco não se socializa, não se humaniza. Um pouco mais de impiedade e estaríamos dizendo com La Mettrie, aplicado discípulo de Descartes: “Cela crie, mais cela ne sent pas”,[12] referindo-se à falta da alma racional nos animais.
Por tudo que foi exposto é que podemos dizer que, apesar de todos os disfarces, os lacanianos também querem a cura, através da aplicação da lei. A prática da clínica lacaniana procura a mesma coisa que os analistas americanos ou ingleses. Todos eles acertam os ponteiros do ego, ajustando suas defesas na exata medida. Afinal uma simples pontuação no discurso do paciente, ou um simples “por que?” já denuncia  o desejo do analista, indicando que parte do ego ele estará querendo reforçar.  O fato é que a potência do inconsciente não deve se manifestar. Em sendo assim, não há escândalo algum em se afirmar parentescos entre as diversidades psicanalíticas.
De qualquer forma, a psicanálise não poderia agir de forma diferente. O pensamento filosófico do Ocidente parece participar de um determinado cenário, cujo empenho é excluir os fluxos livres, as desterritorializações. O pensamento deve se subordinar às aparências do conhecimento, aos encaixes da lógica, da coerência, da metodologia, da sintaxe. Existe toda uma predisposição da subordinação ao abstrato. É o que se pode chamar, para usar a linguagem lacaniana - ou psicanalítica - o lugar do pai. Ou melhor, com Althusser (1983), o lugar do Estado. Tudo organizado para constituir como Nietzsche diria, a moral do escravo.[13] Para constituir o rebanho, o cidadão. Não há como negar que a psicanálise tem a sua contribuição na constituição deste lugar: a lei do pai,  a necessidade da castração, a normatização das pulsões, a valorização da culpa e da depressão, fontes do sentimento do amor, uma certa desqualificação da emoção em benefício da voz suave da razão.
Podemos dizer que a psicanálise nunca deixou de ser platônica. Seu chão é grego. Ela trabalha na escuta do inconsciente. Sim, ela o admira, mas quer domesticá-lo, se é que podemos falar assim. O inconsciente produtor, como queria Nietzsche ou Artaud, este inconsciente maquínico de Guattari (1981) e de Deleuze (1976), cujo desejo não se deixa capturar pelas medidas da cidade grega, pelos “padrões” da moral do escravo, pelas identificações, ou pelo nome do pai, este inconsciente a psicanálise ainda não suporta.
Freud logo percebeu que o fenômeno da criação necessitava de um mergulho neste inconsciente desmedido. Mas seus seguidores, ligeiramente assustados, preferiram assitir a cena freudiana confortavelmente instalados em um teatro de palco italiano, e reduziram o inconsciente freudiano à representação de uma peça grega: Édipo-Tirano. O inconsciente psicanalítico passou a ser uma consciência afundada na profundidade. E mais, em termos gerais, a psicanálise teve dificuldades para admitir a regressão com fins adaptativos. Somente a partir da colaboração de Kris (1968) passou-se a aceitar, com mais  tranqüilidade, a idéia de que só se pode criar quando os fantasmas inconscientes ganham voz.  Parafraseando Deleuze: “A loucura, afinal”. A multiplicidade quântica passou a ser relativamente admitida dentro do território psicanalítico. Mas, claro, sempre dentro das medidas.






















[1] Antonin Artaud, citado por Teixeira Coelho, em Artaud, p. 50.

[2] Para Platão existiriam alguns tipos de virtudes que seriam fundamentais: a sabedoria ou prudência, própria da parte racional da alma; a coragem, que seria uma virtude da vontade; a temperança, que seria característica da sensibilidade; e finalmente a justiça, originada do equilíbrio entre todas as disposições éticas e sociais.  É a este equilíbrio das virtudes que se aplica a justa medida platônica.  Ver A Filosofia Pagã de François Châtelet.
[3] Com a ascenção da burguesia ao poder, ocorre um afastamento da igreja. Marx é um dos pensadores que aponta para este grande ateísmo da burguesia. Na constituição das cidades, a prática da Medicina se aliou a esta queda da religiosidade. A medicina começa a se fortalecer,  a partir do século XII. O tratamento dos problemas psíquicos aos poucos vai ganhando características médicas, e uma impressão de cientificidade. A partir do século XIX surge uma nova ética, através das normas médicas que influenciam até mesmo a arquitetura das casas e das cidades. Sobre este assunto, ver A Danação da Norma, de Roberto Machado.
[4] C. Levi-Strauss,  Antropologia Estrutural, p. 236.
[5] Alguns dos conceitos e idéias que apresentamos aqui foram apreendidos, e organizados, através das inúmeras conferências que o filósofo Carlos Henrique Escobar vem realizando no Rio de Janeiro, como parte de seu trabalho de reflexão sobre o papel que a psicanálise desempenha na sociedade contemporânea.
[6] Parece evidente que, com Lacan, a psicanálise vai se transformar numa grande convição abstrata. Em parte porque Lacan tenta higienizar a psicanálise freudiana daquilo que ele chama de biologismo e evolucionismo. Este viés realmente chega a predominar em algumas correntes americanas. Lembramos aqui os trabalhos de Hartmann (1945; 1950; 1956), Kris (1945; 1950) e Loewenstein (1945; 1950). Mas atinge também as sofisticadas teorias da escola inglesa, pois Melanie Klein (1964), apesar de criticar a questão do desenvolvimento através da adoção da teoria da posição, ainda aceita a universalidade do Édipo, que tem suas raizes no biologismo freudiano. Atrás de Melanie Klein podem ser citadas uma série de contribuções inglesas como as de E. Shape (1973), N. Searl (1973), S. Isaacs (1973). Sem deixar de falar nos representantes ingleses da psicanálise do ego, como Anna Freud (1971) ou  Joseph Sandler  (1982).  Já a escola francesa procurou escapar da naturalização do inconsciente, a qual Freud estabeleceu ao afirmar que Édipo era universal. Só que Lacan também se torna responsável por tal naturalização. É certo que o inconsciente lacaniano pretende não ser de natureza, e nem de substância. Fugindo da ingênua concepção de Freud, Lacan procurou dar à teoria um caráter de objetividade e de universalidade. Para isto trocou o Édipo universal, por uma Lei universal. Seguindo a trilha de Levi-Strauss, ele afirma a proibição do incesto como protótipo desta Lei. Pode-se quase dizer que ele acaba naturalizando também, pelo abstrato. Isto para não falarmos da substancialização do inconsciente, que se mantém sem disfarces: “Là où c’était, dois-je advenir comme sujet”. O “isso” já existe previamente como substância. Não estaríamos voltando assim ao caminho platônico das idéias inatas, e à Lei, pela qual Sócrates deu sua vida?
[7] J. Lacan, Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, em Écrits I
[8] S. Fred, citado por A. G. Penna em  A Filosofia da Mente.
[9] Para Levi-Strauss, o inconsciente está sempre vazio. Ele é estranho às imagens, limitando-se a impor leis estruturais aos elementos inarticulados das pulsões, emoções, representações, recordações. O inconsciente organizaria todo este vocabulário da história pessoal segundo suas leis, que são sempre as mesmas. A estrutura permanece sempre a mesma, e é por ela que se realiza a função simbólica. As estruturas são as mesmas para todos, e são pouco numerosas. A grande massa de contos e mitos conhecidos poderiam ser reduzidos “a um pequeno número de tipos simples, se forem postas em evidência por detrás da diversidade dos personagens algumas funções elementares”. Levi-Strauss, Antropologia Estrutural.
[10] Em Górgias, Platão ataca os sofistas, dizendo que eles mereciam o ostracismo, porque faziam o povo acreditar nas aparências, nas ilusões e nas imagens criadas pelos falsos argumentos de sua retórica.
[11] Michel Foucault analisa a demarcação da geografia da subjetividade no livro História da Sexualidade, vol. I, A vontade do saber, e levanta as diversas formas de submeter os indivíduos, formando os corpos dóceis em Vigiar e Punir.
[12] Citado por Duane Schultz em História da Psicologia Moderna.
[13] Nietzsche, em Genealogia da Moral, analisa a transformação das forças ativas em reativas. Separada do que ela pode, a força ativa volta-se contra si, produzindo a dor.  E inventa-se um novo sentido para a dor, um sentido interno: faz-se da dor a consequência de uma falta ou pecado. Assim a força ativa é transformada em sentimento de falta, de temor, de castigo. A má consciência é a moral do escravo.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Estética da Loucura



___          ____________ __________        A Estética da Loucura

Elza Rocha Pinto

     A tragédia no palco não me basta mais, vou transportá-la para minha vida [1]
                                                       Artaud
Os super-homens suportam com dignidade, ou para usar ainda a palavra nietzschena, com nobreza, esta experiência do pensamento que Nietzsche vai chamar de horror,  a loucura. Por ela passaram homens como Hölderlin, Nerval, Maupassant, Rinbaud, Verlaine, pintores geniais como Van Gogh; músicos como Schumann, Henri Duparc, Maurice Ravel; ou mesmo bailarinos como Nijinski, o qual escolheu uma forma sensual de expressar seu pensamento: através da dança.
Todos eles trilharam um caminho fora da medida, atravessando a desrazão. Neles a ética da criação procurava o desatino. Bukowski, alcoólatra convicto, refletiu cristalinamente esta demanda quando uma vez respondeu a alguém que queria salvá-lo da miséria e do alcoolismo: “Não se pode escrever nada de bom fora do sofrimento”.[2] A criação para Nietzsche tem sua matriz no sofrimento e nas paixões dilacerantes. Foi isto que Artaud tentava esclarecer em sua carta ao Dr. Ferdière, e que por ser tão expressiva resolvemos transcrevê-la integralmente:
Algo de meu mundo interior lhe escapa e o senhor sente raiva de mim por eu me abrir com outras pessoas. Não é isso que eu pretendo. Eu sempre quis levá-lo para dentro de minha esfera poética própria, mas percebi que o senhor não queria acreditar nela e isso me dilacera o coração. Os estados místicos do poeta não são manifestações de delírio, Dr. Ferdière. São a base de sua poesia.
Considerar-me um alucinado é negar o valor poético do sofrimento que desde a idade de 15 anos vive em mim diante das maravilhas do mundo do espírito que o ser da vida real nunca pode realizar; e é deste sofrimento admirável do ser que extraí meus poemas e meus cantos. Como é que aquilo de que o senhor gosta em minha obra não o leva a gostar da mesma coisa existente em mim enquanto este personagem que sou? É de meu eu profundo que extraio meus poemas e meus textos e o senhor gosta deles. Todo poeta é um Vidente. E é de seu Iluminismo que Rimbaud extraiu as Iluminações e Temporadas no Inferno. E William Blake viu no mundo místico do Espírito o objeto destas visões maravilhosas transcritas no Casamento entre o Céu e o Inferno. Se eu não acreditasse nas imagens místicas de meu coração, não conseguiria dar-lhes vida.
Creio no Céu, Dr. Ferdière, mesmo não crendo no Inferno, e considero uma revoltante falta de piedade taxar de delirantes as imagens que me forjo desse céu.
Em Paris, o senhor me havia prometido defender-me sempre e me disse que meus estados místicos eram a própria verdade e não um delírio doentio, e que seria preciso o advento de uma época de crimes, de ignorância e loucura para tratá-los como doença. Suplico que se lembre de sua verdadeira alma e compreenda que uma outra série de eletrochoques me aniquilaria.
E não creio que em sã consciência o senhor deseja isso. [3]
Deixando de lado o fato de Artaud estar tentando livrar-se de uma nova série de eletrochoques, a lucidez na formulação do problema transcende qualquer razão imediata. Ela coloca em foco uma das questões centrais da criação poética. Principalmente quando aquele que cria recebe o rótulo de doente mental. Antecipando Foucault, que vai tornar claro as várias capturas do fenômeno, Artaud defende o contexto da loucura como criação poética,  posicionando-se  contra seu amesquinhamento como doença mental. [4]
Como as pessoas podem gostar de uma obra por aquilo que ela deixa entrever, e odiar a mesma coisa quando ela se apresenta na pessoa? É esta a pergunta de Artaud. Aparentemente o que pertuba as pessoas é o fato do poeta acreditar em suas imagens. Esta crença dá às imagens uma materialidade, uma densidade e realidade que não se suporta facilmente. Não é fácil aceitar as falsas sensações, como por exemplo a audição colorida, através da qual Rimbaud (1960) emprestava cores aos sons das vogais;[5] ou então como na demanda da nota azul de Chopin.[6]
Para a maioria das pessoas a arte torna-se aceitável enquanto for elemento de um mundo irreal, fictício, longínquo. Com o qual apenas se brinca de acreditar. Mas quando alguém, como Artaud, afirma tais imagens como verdadeiras e necessárias, o recurso mais imediato é taxá-las de delirantes. E interna-se o poeta. No hospício ou na prisão. “Esquizofrenia visceral de uma sociedade que propaga esta bactéria como uma epidemia”.[7] Quando o preconceito não pode desprezar a obra, por ela ser muito bela, acaba-se por desprezar o poeta, numa epidemia de desqualificações: Artaud e Van Gogh eram loucos; Rimbaud, um gênio, porém crápula e pervertido; Ezra Pound, um fascista, anti-semita; os contos de Borges são obras primas, mas seu autor é um narcisista. No Brasil, durante anos Jorge Amado foi considerado um autor menor, superficial e palatável, apesar de ser um dos escritores que melhor retrata a alma e a cultura baiana. Nelson Rodrigues? Um degenerado e obsceno, eternamente mergulhado na lama.[8]
Foucault perguntaria quem dita essas classificações. E em que circunstâncias? Os poetas, os grandes criadores, os super-homens nunca foram bons cidadãos do rebanho.
Lamentavelmente por vezes a psicanálise acaba servindo a estes objetivos, de assujeitamento. Através de alguns de seus conceitos que desempenham tal papel inocentemente. Ou através da boa vontade e do bom senso  de alguns psicanalistas. A nível teórico, a determinação da sublimação como meta do social é um dos melhores caminhos para estremecer o território do poeta. Artaud, por exemplo, jamais aceitaria uma tal proposta. Para ele não se poderia falar em  jogar qualquer substituto para a meta da pulsão. Indignado, ele denuncia em Van Gogh, o Suicidado da Sociedade:
O doutor Gachet não chegou a dizer a Van Gogh que estava ali para endireitar sua pintura (como ouvi o doutor Gaston Ferdière, médico-chefe do manicômio de Rodez, dizer que estava ali para endireitar minha poesia), porém mandava-o pintar a natureza, sepultar-se na paisagem para evitar a tortura de pensar. [9]


[1]  Carta a Jean Louis Barrault, em Teixeira Coelho, Artaud, p. 14.
[2] Charles Bukowski, em Barfly, de Barbet Schroder, 1987.
[3] Citado por Teixeira Coelho, Antonin Artaud, p.  25. 
[4] Foucault  vai mostrar em História da Loucura como os critérios para a definição da loucura, assim como as razões para o encarceramento dos loucos, traduziam diferentes motivos sociais. Artaud em Van Gogh, o Suicidado da Sociedade, faz uma áspera crítica destes motivos. Entretanto seu alvo mais direto é a psiquiatria. Diz ele: “Em todo demente há um gênio incompreendido cujas idéias, brilhando na sua cabeça, apavoram as pessoas,  e que só no delírio consegue encontrar uma saída para o cerceamento que a vida lhe preparou. A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença para assim ter uma razão de ser; mas a psiquitria nasceu da multidão vulgar de pessoas que quiseram presevar o mal como fonte da doença. E que assim produziram do seu próprio nada, uma espécie de Guarda Suiça, para extirpar na raiz o espírito de rebelião reivindicatória que está na origem do gênio. É quase impossível ser ao mesmo tempo médico e uma pessoa honesta. Mas é escandalosamente impossível ser psiquiatra sem estar ao mesmo tempo marcado pela mais indiscutível loucura: a de ser incapaz de resistir ao velho reflexo atávico da multidão que converte qualquer homem da ciência aprisionado na turba numa espécie de inimigo nato e inato de todo gênio”.  Antonin Artaud, em Escritos, p. 139.
[5] Ver o poema Voyelles, A. Rimbaud, Poèmes, p. 106.
[6] Era assim que Chopin denominava seus momentos de inspiração. Só quando atingia Zal, como ele chamava sua nota azul, é que ele conseguia improvisar.
[7] Antonin Artaud,  Van Gogh, o suicidado da sociedade,  em  Escritos.
[8]  Em  22/8/67 sai um artigo em O Jornal, com o título O Album só de negativos, onde um anônimo repórter escreve o seguinte: “Não me conformo em ver integralmente sórdidos todos os seres, todos com o pé na lama, nenhum tendo um instante na vida que seja para o sorriso de bondade e ternura. Todo homem, por pior que seja, tem um momento em que se descuida e experimenta um bom sentimento; todo diabo tem a sua fraqueza de anjo, num relance inesperado. Os personagens de Album de Família, não: não é sangue humano o que lhes corre nas veias - é pus. Eles falam e o hálito é de carniça. Nenhum deles tem olhos para ver um amanhecer tranquilo, a flor desabrochando, o vôo da andorinha; só olhos para o charco”. O Jornal, 22/8/67.
[9] Op. cit., p. 139.