segunda-feira, 10 de março de 2008

Vida e Obra de Nelson Rodrigues




                                                                               Vida e Obra de Nelson Rodrigues


Elza Rocha Pinto


Em O Projeto Inconsciente de Machado de Assis, M. L. Assumpção lembra que um escritor vai “revivendo todas as figuras e lugares da infância, todas as implicações que estes trazem” através da elaboração de seus romances; e é nesta medida, diz a autora, que vai ocorrer uma “interrelação entre a dinâmica do espaço e do tempo vivido. Certa vez Nelson Rodrigues afirmou em relação a Vestido de Noiva:
...eu estaria fazendo, ali, uma imitação da vida. Era Roberto que morria outra vez, assassinado outra vez. E confesso, - o meu teatro não seria como é, se não tivesse chorado, até a última lágrima de paixão o assassinato  de Roberto. [1]
No segundo capítulo desta dissertação, procuramos deixar claro como o estudo da biografia do autor se torna importante, quando queremos ampliar a dimensão das interpretações de uma obra de arte, de um texto literário, ou de uma produção cinematográfica. O autor e o diretor, direta ou indiretamente, estão se confessando, utilizando para tanto recursos os mais variados. Quase sempre tentando camuflar alguma coisa. Um livro, um filme, uma fotografia são paradoxos que revelam e ocultam ao mesmo tempo. Metáfora do sonho, o enredo pode misturar ficção com realidade, produzindo o pensamento manifesto de um conteúdo latente, que caberia ao leitor interpretar. Despistamentos, camuflagens, máscaras são recursos que criam obscuridades, sombras e lacunas, disfarçando a verdade do artista.
Nelson Rodrigues, como jornalista, lidava quotidianamente com a realidade brasileira, através das notícias que chegavam às redações de seu jornal. Mas certamente quando escrevia, ele não poderia se restringir apenas a reproduzir esta realidade. Como um pintor ao corrigir nuances em sua paisagem, o jornalista também faz seus retoques na crua fotografia. Kris (1950), por saber disto, afirmou  que os noticiários de jornais com freqüência tratavam “de acontecimentos semelhantes aos temas genéricos da mitologia e da fantasia individual da mesma forma que as grandes obras literárias”.[2]  Isto é ainda mais verdadeiro no que se refere a Nelson Rodrigues. Criado por um pai que acreditava na produção das notícias, Nelson impregnou este lema em seu estilo: algumas de suas crônicas jornalísticas são misturas indisfarçadas da ficção com a realidades. A ponto de alguns de seus personagens reclamarem.[3] Personagens reais, vida real, mas sempre retocada pelos conteúdos da subjetividade de Nelson.  Em seu folhetim Asfalto Selvagem, a vida de Engraçadinha se misturava com pormenores do quotidiano dos amigos e inimigos de Nelson: Otto Lara Resende, Hélio Pelegrino, J. C. Tinhorão, e outros tantos se imortalizaram nas aventuras da heroína .[4]
 O autor não consegue se libertar de seu mundo interior. Fato reconhecido não apenas pela psicanálise, mas também pelos próprios artistas. Por isto foi muito grande a tentação de direcionar esta dissertação para uma análise do autor, tentando apreendê-lo a partir de sua obra. Existem diversos trabalhos analíticos deste tipo, no domínio da literatura. Mas este não era o nosso propósito. Para realizar tal objetivo, sem cair em radicalismos ou incorrer em erros grosseiros, seria necessário desenvolver um trabalho bem mais detalhado.
Poderíamos, é claro, partir de um suposto corte diacrônico. Em avaliação diagnóstica tomamos uma pequena amostra do comportamento do sujeito (sua realização nos testes projetivos, e as observações das entrevistas) para fazer inferências sobre sua vida passada, presente, e futura.[5] Porém, para se chegar a uma adequada conclusão diagnóstica, sempre é necessário examinar várias situações.[6] Da mesma forma, para desenvolvermos uma tal interpretação sincrônica de Nelson Rodrigues, partindo da produção de Álbum de Família, seria necessário uma pesquisa muito mais ampla do que aquela que nos interessava fazer nesta dissertação. Caberia levar em consideração vários outras realizações de Nelson, crônicas, reportagens, folhetins, contemporâneos de Álbum de Família. E o que queremos, neste momento, é centralizar nossa análise apenas nesta peça.
Tendo em conta que a obra é efeito de uma comunicação interativa entre a subjetividade e o social, temos intenção de apresentar o contexto que a sociedade brasileira oferecia para Nelson naquela ocasião. Através das expectativas, anseios, temores, conflitos e desejos de seus personagens, Nelson falava não só dele e de sua família, mas de toda uma época.
Este relato sobre a vida de Nelson pretende sublinhar as vivências individuais e as influências familiares que podem ter levado Nelson a escrever Álbum de Família. Tomamos, por vezes, trechos da autobiografia do autor, relatada fragmentariamente em suas memórias e confissões; outras vezes nos remetemos às lembranças de sua irmã Stella.[7] Porém a base desta apresentação está centrada no livro de Ruy Castro (1992), o qual foi para nós uma agradável surpresa. Pois ele oferece muito mais do que uma pálida biografia. Além da paixão pelo autor, Ruy Castro tem a paixão do jornalista. De uma forma equivalente a Samuel Wainer,[8] o autor nos faz percorrer as redações dos principais jornais e revistas brasileiras nestas últimas décadas. E assim, através dos noticiários e editoriais, vamos  entrando em contato com toda uma época. Suas informações são cuidadosamente datadas, e bastante minuciosas. Acho que podemos afirmar, sem grandes riscos de erro, que Ruy Castro se tornou, com O Anjo Pornográfico, o principal biógrafo de Nelson Rodrigues. Outros autores escreveram sobre Nelson,[9] porém nenhum destes trabalhos foi feito a partir de uma tão extensa pesquisa quanto o livro de Ruy Castro.[10] Tendo acesso a inúmeros documentos e a diversas  pessoas que conviveram com Nelson, ele nos forneceu um material além daquilo que procurávamos. Seu livro acabou oferecendo um  excelente panorama cultural e político do Brasil, do início do século até 1980.
A vida de Nelson foi marcada por várias desgraças. As diversas prisões do pai, sempre envolvido em atentados à lei da imprensa; o absurdo assassinato de seu irmão Roberto, na redação de Crítica; a morte do pai, desgostoso com a perda do filho; as privações financeiras e o desemprego dos Rodrigues; o prolongado período de miséria e fome; a doença com a qual teve que conviver durante tanto tempo; a morte de Joffre, seu irmão predileto, contaminado por sua tuberculose; a prematura morte de Mário Filho; o trágico desaparecimento de seu irmão Paulinho e toda sua família, poucos meses depois, vítimas de um desabamento de prédios em Laranjeiras, em noite de temporal; o suicídio da cunhada um ano após a morte de Mário Filho; a prisão e as torturas de seu filho Nelsinho; e, como se não fosse suficiente, a tragédia de Daniela, a filhinha de Nelson.  Diante de todos estes trágicos acontecimentos é difícil termos uma idéia do intenso sofrimento de Nelson Rodrigues. No entanto, a primeira tragédia, sem dúvida, deixou uma marca indelével, pois Nelson estava presente quando seu irmão foi assassinado:
Nunca mais me libertei de seu grito. Foi o espanto de ver e de ouvir, foi esse espanto que os outros não sentiram na carne ou na alma. E só eu, um dia, hei de morrer abraçado ao grito de meu irmão, Roberto Rodrigues. [11]
Por tudo isto é que o próprio Nelson Rodrigues dizia que se não fosse pelo seu ofício de  escrever, ele teria enlouquecido. Como nosso interesse se centraliza mais no período que vai até o surgimento de Álbum de Família,[12] vamos nos limitar a configurar os eventos até esta época, delimitando ainda a intervenção da censura na obra de Nelson Rodrigues. E é isto que passamos a apresentar agora. Porém organizamos uma cronologia, que pode ser encontrada no Anexo II, onde oferecemos a orgânica de todos os eventos significativos ocorridos na vida de Nelson Rodrigues, desde seu nascimento até sua morte, em 1980.


[1] Nelson Rodrigues, Memórias de Nelson Rodrigues, p. 128.
[2] O grifo é nosso. Ernst Kris, Psicanálise da Arte, p.ag. 26
[3] Nelson que tinha uma admiração imensa por Otto Lara Resende, vivia citando o escritor em suas crônicas. Otto se queixava., reclamando. Mas Nelson Rodrigues continuava, apoiado porpelas observaões de Héhlio Pelegrino, que observava dizia que Otto no fundo gostava de tudo aquilo. Mas o fato é que na opinião de Otto, Nelson extrapolou, quando aliou chegou a aliar sseu nome ao título de uma de suas peças,  Otto Lara Resende ou BBonitinha, mas Ordinária, ou Otto Lara Resende”..  Para mostrar sua indignação, Otto  nem foi ver a peça, que ficou meses em cartaz, deixando Nelson Rodrigues bastante sentido..
[4] Na segunda parte de Asfalto Selvagem, Nelson começa a misturar fantasia e realidade. Ou seja, mistura seus personagens de ficção com figuras reais. Em geral, seus amigos jornalistas, que apareciam no folhetim com seus próprios nomes, participando da história: Otto Llara Resende, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Wilson Figueiredo, Carlinhos de Oliveira, Raimundo Pessoa, Helio Pelegrino, Hermano Alves, Paulo Reis, eEtc. O fotógrafo Amado Ribeiro era descrito em Asfalto Selvagem como um repóorter policial bem cafajeste, capaz de subornar suspeitos, inventar culpados, de fazer chantagens com mulher de vítima, etc. Tudo isto para vender jornal. Amado Ribeiro em vez de se aborrecer, sentia-se orgulhoso. Um soneto erótico de Otto Lara Resende poderia ser usado pelo Ddoutor  Odorico como forma de seduzir Engraçadinha. E assim por diante; um ginecologista, praticante de abortos ganhava o nome de Alceu (em referencia a Alceu do Amoroso Lima). Políticos como Juscelino, Carlos Lacerda, Juraci Magalhães, Jânio Quadros, Israel Pinheiro, Lourival Fontes, Gilberto Amado, Sobral Pinto, Neiva Moreira, Almino Afonso e outras pessoas públicas como Augusto Frederico Schmidt, Abraão Medina, Abdias do Nascimento, o poeta Lêedo Ivo, o historiador Pedro Calmon, todos eles entravam e saiam da história, como temas das conversas entre os personagens. E assim Nelson ia fazendo colunismo político, crítica literária e crônica social - sem paralisar a ação. Ao mesmo tempo, ia escrevendo o que pensava de cada um. Nem sempre conhecia as pessoas que citava no folhetim.  Assim o Tinhorão, por exemplo, que foi descrito e sugerido por seu colega Wilson Figueiredo do Jornal do Brasil, tinha realmente um carro bem velho. Freqüentador do Bar do Pepino, na Av. Niemeyer, ele e seu carro vão aparecer na estória, como o principal suspeito de ter deflorado e engravidado a filha de Engraçadinha. caindo aos pedaços. Frequentador do Bar do Pepino, na Av. Niemeyer, foi tido como o principal suspeito de ter deflorado e engravidado a filha de Engraçadinha. - Silene.
[5] As projeções feitas para o futuro são chamadas de prognóstico.
[6] O levantamento da anamnese e do ambiente sócio-familiar devemrãos ser articulados com as análises de diversas observações;  as histórias dos testes temáticos serão alinhadasadas com aos paradigmas dos testes estruturais, e às expressões dos testes gráficos.
[7] Stella Rodrigues, Nelson Rodrigues, meu irmão.
[8] Samuel Wainer, Minha Razão de Viver.
[9] Entre eles podemos citar Maria Hhelena Pires Martins, Nelson Rodrigues; a monografia de Angela Leite Soares, Nelson Rodrigues e o fato do palco; Carlos Vogt e Berta Waldman, Nelson Rodrigues, flor de obsessão; Mário Guidarini, Nelson Rodrigues: flor de obsessão. E o livro de Stella Rodrigues, sua irmã, Nelson Rodrigues, meu irmão. Informações sobre Nelson Rodrigues também podem ser acessíveis através de dois locais, que visitamos: a Biblioteca Nacional, que tem o registro de depoimentos feitos por ele ao Museu da Imagem e do Som; e a Biblioteca da SNT, que contém inúmeros dados jornalísticos sobre Nelson, organizadas em pastas divididas por peças, contendo reportagens,  notas de divulgação, e críticas sobre cada montagem, além de inúmeros documentos sobre a vida de Nelson, de modo geral. Apesar estarem cuidadosamente catalogados, não acrescentaram novas informações à biografia feita por Ruy Castro. Já o livro de Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações¸ outra obra fundamental para quem pretende se dedicar ao estudo de Nelson Rodrigues, trabalha dentro de uma outra perspectiva, a dramaturgia de Nelson; nesta medida suas informações biográficas são mais reduzidas.
[10] Exceção feita ao livro de Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações.
[11] Citado por Stella Rodrigues, Nelson Rodrigues, meu irmão, p. 49..
[12] Ou seja, de 1912 a 1946