sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O Discurso Médico sobre as Perversões



____________________O Discurso Médico sobre as Perversões

Elza Rocha Pinto


Em meados do século XIX a Medicina teve seu interesse despertado pelo estudo do homossexualismo. Os primeiros estudos sobre as inversões sexuais foram feitos com objetivo de corrigir a severidade da legislação penal. E acabaram por afirmar a normalidade dos invertidos, admitindo que existiam diversas formas para se chegar ao orgasmo, sem que os médicos tivessem qualquer direito de designá-los como doentes.
Um jurista, C. J. Ulrichs,[1] contribui muito  para  o início destes estudos, afirmando que  os uranistas[2] tinham uma alma de mulher num corpo de homem, e só podiam experimentar desejo e paixão por homens viris. Isto não significava patologia, constituindo, somente, uma disposição singular da natureza.  Os homossexuais não eram doentes. E era ilusória a expectativa de uma modificação em seu comportamento, já que se tratava de uma disposição natural. A disposição não indicava a presença de uma degeneração. Separava-se, assim, o  homossexualismo da doença mental, e da devassidão. Ser homossexual , agora,  significava apenas ter um modo particular de satisfação sexual.
Aos poucos vai se fortalecendo a ideia de que o homossexual  apresenta uma sensibilidade sexual inversa, inversão essa que ele trazia desde seu nascimento. O homossexualismo deveria ser considerado como sua própria natureza. Os casos eram congênitos. Não no sentido de implicar hereditariedade mas, sim, significando que a inversão sexual era natural. Era um comportamento que podia ser  expresso pela metáfora da “alma de mulher num cérebro de homem e de cérebro de mulher num corpo de homem”.  O termo contra natura perdia seu sentido. Estava estabelecida, também,  a fronteira com o vício. A medicina não tinha nada a fazer, a não ser descrever, compreender, e, quando chamada pelo interessado, aliviá-lo. Mas apesar de tudo, o discurso médico vai conseguir o domínio do homossexualismo, organizando um vínculo entre a inversão e a neurose.
Por outro lado, Daumezon nos informa que em paralelo a esta luta pela liberdade e naturalidade do homossexualismo, a medicina legal, no final do século XIX, se achava empenhada em combater os abusos e maus tratos que eram dirigidos aos doentes mentais. “Todo tratado de psiquiatria inclui extensos argumentos condenando a barbárie dos tempos precedentes, que queimaram tanto bruxos, como inocentes enfermos”.[3] O psiquiatra continuava a acompanhar as perícias judiciais, e reunia uma variedade de bizarros comportamentos sexuais, com o propósito de convencer o juiz, sobre a enfermidade de uma pessoa em julgamento, pela comparação com o catálogo de casos. Krafft-Ebing, em seu Traité clinique de psychiatrie, em l897, vai tentar organizar esta multiplicidade de comportamentos. Faz classificações, distinguindo algumas espécies fundamentais. Entre outros casos, reconhecia como anomalia do instinto sexual, quando este instinto se manifestava “de maneira perversa, isto é, quando o tipo de satisfação não tem por finalidade a preservação da espécie (parestesia)”. [4]
As perversões são colocadas ao lado da esterilidade,[5] do prazer e da patologia, numa oposição à sexualidade normal, onde a saúde se relacionava com uma quantidade média de prazer, e com a reprodução. E se o prazer, no homem, parecia estar ligado à função reprodutora, na mulher dissocia-se dela:
Como a mulher pode ser fecundada sem gozar, o gozo já não extrai sua legitimidade da propagação da espécie, não é absolvido nem por Deus, nem por Darwin, e, por conseguinte, opera-se sub-repticiamente uma vinculação - um vinculum substantiale, teria escrito Leibnitz -  entre o gozo e o injustificado, o proibido, a transgressão.  [6]
Esta coletânea de Krafft-Ebing era um “inventário de sintomas”, sem sequer alcançar a “descrição da evolução”.[7] Mas, em função do uso do termo                    “parestesias”, Krafft-Ebing  delimitou o campo específico das perversões, que passam a abrigar “todas as satisfações eróticas cujo objetivo não parecia ser a preservação da espécie”.  Desta forma o próprio prazer ficou contaminado como perverso, “ou, pelo menos, viciado e depravado”.[8]
O livro de Krafft-Ebbing é um clássico. Ele não apenas unifica as perversões dentro de uma grande categoria mas, seguindo a tendência da época,[9] ele vai descrever e classificar em espécies toda a diversidade clínica. O eixo central é o homossexualismo, em torno do qual ele organiza diversos comportamentos: desde impotência e frigidez até comportamentos ridículos e monstruosos. O ridículo corre por conta dos capítulos dedicados ao sadismo, ao masoquismo, ao fetichismo e ao exibicionismo:
descritos como uma espécie de comédia, da qual a seriedade, em última instância é excluída: a crueldade do sadismo ou o sofrimento do masoquismo surgem como condutas teatrais, e é bem sabido que as instituições em questão eram comumente chamadas de casas das ilusões,[10] onde tudo acaba se reduzindo a espetáculos.
(...) O sadismo e o masoquismo conservam uma certa dignidade, devida à dor presumida; o fetichismo aparece principalmente como ridículo, às vezes tocante, mas muito frequentemente derrisório, e o exibicionismo parece um péssimo negócio: arriscar tudo por tão pouco... O conjunto resume-se num grotesco bastante digno de pena: o do cliente que desembolsa um preço tão alto por tamanha ilusão. [11] 
Segundo a análise feita por Lanteri-Laura, as perversões acabaram caindo no domínio do grotesco ou do monstruoso. Zoofilias, teratologias,[12] pedofilias, gerontofilias aparecem como variedades  de uma depravação monstruosa. Os perversos passam a ser vistos como monstros perigosos, ou como palhaços que provocavam risos. A clínica das perversões vai provocar riso ou horror, dependendo dos perversos se entregarem à monstruosidades como a zoofilia, ou a encenações ridículas e grotescas no estilo do sado-masoquismo ou do travestismo.
É neste ponto que Freud (1905)  vai surgir, contribuindo para a  compreensão da gênese das perversões. Seu livro Três Ensaios sobre uma teoria da Sexualidade, decididamente, traz novidades para a moral da época. Ele consolida a mudança de concepção no que se refere ao homossexualismo, libertando estes bons perversos dos  limites da psicopatologia. Sua teoria das pulsões, desenvolvendo-se através dos diversos estágios libidinais durante a infância precoce, acaba tornando as perversões parte da sexualidade normal.



[1] Lanteri-Laura,G - Leitura das Perversões.
[2] C. H. Ulrichs inventou o termo uranismo, para designar um tipo específico de homossexualismo. O nome era inspirado em Afrodite Urânia, locução usada por Platão, através da qual ele separava os aspectos divinos (celestiais, ouranios) dos aspectos vulgares do amor.
[3] G. Daumezon, O encontro da perversão pelo psiquiatra, em La Perversion, p. 19.
[4] Lanteri Laura, Leitura das Perversões,  p. 36.
[5] O eixo do excesso e da falta não é o do gozo, mas o da  preservação da espécie. No polo negativo, a impotência do homem é um obstáculo para a fecundação. Porém, na mulher, a frigidez não impede a geração; a rigor é a esterilidade deveria ser levada em conta, o que vai remeter a questão da perversão para um campo totalmente diferente.
[6] Op. cit., p. 38.
[7] G. Daumezon,O encontro da perversão com o psiquiatra”, em La Perversión, p. 22.
[8] G. Lanteri Laura, Leitura das Perversões,  p. 39.
[9] Ver sobre esta questão o livro de Roberto Machado, Ciência e Saber - A Trajetória da Arqueologia de Foucault.
[10] Ver o livro de  A. Robbe-Grillet, La maison de rendez-vous, Paris, Minuit, 1a. ed., 1965, citado por Lanteri-Laura.
[11] G. Lanteri Laura, Leitura das Perversões,  p. 41
[12] Segundo A. B. Hollanda, o termo tem  origem grega - teratología -, onde significava “narração de coisas maravilhosas”. Daí passou a ter uma conotação patológica ligada ao estudo das monstruosidades.