quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A Teoria das Pulsões



____________________________________A Teoria das Pulsões

Elza Rocha Pinto

O tratamento das neuroses permitiu que Freud desenvolvesse uma teoria sobre o psiquismo humano. E, a partir de suas observações clínicas, Freud precisou admitir a existência de uma sexualidade infantil, cuja energia chamou de libido.  Ele formalizou a estrutura do aparelho psíquico através de três instâncias: Id, Ego e Super-Ego. E definiu o inconsciente como o verdadeiro objeto de estudo da Psicanálise. O Id seria o reservatório da energia psíquica, a sede das pulsões e fonte de todos os desejos. O Super-Ego seria a instância das leis, normas, valores éticos e estéticos, que define a moral que o indivíduo vai elegendo ao longo de sua vida, e que rege seu comportamento. O Ego seria a parte da personalidade que se encarregaria de sua adaptação à realidade. Entre outras funções o Ego teria a tarefa de satisfazer as exigências do Id. Porém levando em consideração as restrições morais do Super-Ego, assim como os limites da realidade. O Ego seria, portanto, a instância responsável pelo equilíbrio e ajuste da personalidade. Este modelo de aparelho psíquico vai sendo construído durante o desenvolvimento da criança.
 Freud apresenta as bases para sua teoria das pulsões em 1905, no livro Três Ensaios sobre uma teoria sexual. 
Logo de início revoluciona as concepções da época, ao propor no lugar da noção de instinto sexual, o conceito de pulsão.[1] Ele não deixa de utilizar o termo instinto, porém este conceito passa a ser usado para focalizar características mais ou menos imutáveis, que se transmitem geneticamente através de gerações, que não precisam ser ensinadas, nem são adquiridas através de prática ou da experiência. Instinto vai se referir a um padrão mais ou menos complexo de comportamentos, que apresenta uma sucessão imutável e inflexível, pré-determinada. [2]  
Já a pulsão[3] freudiana difere do instinto sexual em alguns aspectos.   Freud começa a definir suas características, para libertar a partir daí, a sexualidade infantil. Esta se  fragmenta em pulsões parciais, que vão se realizar em objetos e finalidades perversas. A pulsão é definida, de imediato, por Freud como tendo três qualidades, às quais logo acrescenta uma quarta característica:
1. um objeto sexual: o objeto é normalmente uma pessoa do sexo oposto, na qual a libido é investida. Porém pode ser uma parte do corpo do próprio indivíduo (como ocorre nas experiências pré-genitais, na masturbação), ou uma pessoa do mesmo sexo (como no homossexualismo).
2. um fim, finalidade ou objetivo sexual: ato ou atividade que deverá ser realizado, impulsionado pela pulsão, para se obter a satisfação do desejo. O fim de uma pulsão sempre consiste na restauração do equilíbrio, através de transformações somáticas, fato que é percebido como uma satisfação ou prazer. A meta da pulsão requer sempre algum objeto através do qual seja possível a satisfação.
3. um impulso: força da pulsão, implícita na definição inicial que Freud dá ao seu  conceito.[4]
4. uma fonte: é a origem da energia, que é sempre uma parte do corpo. São chamadas de zonas erógenas.[5] A principal zona erógena é a genital. [6]
As pulsões são definidas como um conceito limítrofe entre o mental e o físico e representam uma demanda que o corpo faz à mente.  Sua energia é a libido, que é a  única  capaz de fazer o aparelho psíquico funcionar.[7] Usando de um recurso metafórico, Freud diz que libido é o termo científico para o estado geral de fome sexual. Logo a seguir constata que, à diferença do instinto, a pulsão comporta múltiplos desvios, tanto no que se refere ao objeto, como no que diz respeito ao seu fim. É a discussão deste tema que permite Freud chegar até a reformulação da ética das perversões. De acordo com esta sistematização,  podemos distinguir duas categorias de perversões sexuais:
a) Perversões que consistem na deformação da qualidade do desejo sexual
b) Perversão na qual o objeto do desejo sexual é anormal.
As perversões, portanto, são constituídas por impulsos pré-genitais, que se vinculam às fases do desenvolvimento da libido. Sadismo, masoquismo, voyeurismo, exibicionismo e travestismo pertencem ao primeiro grupo; ao segundo pertenceriam a homossexualidade, a pedofilia, zoofilia, necrofilia, e o incesto. No fetichismo tanto o objeto do impulso sexual, quanto a sua qualidade são alteradas.
Freud afirmou a independência destas numerosas pulsões pré-genitais. Tendo diferentes origens somáticas, elas vão procurar lutar pela gratificação da respectiva zona erógena. O objetivo destas pulsões parciais se esgotaria numa satisfação parcial, ou seja, limitada ao prazer de orgão. Algumas dessas pulsões serão reprimidas, outras serão incorporadas à organização final das funções sexuais adultas, como momentos preparatórios para a atividade genital.
A teoria do desenvolvimento vai procurar descrever os estágios ou fases atravessadas pelas pulsões,[8] designadas como oral-canibalística, sádico-anal, fálica e genital. No início da vida a libido é investida, primariamente, no amor de si mesmo (narcisismo). Mas logo depois se transfere parcialmente para o amor objetal, onde o bebê investe sua energia em alguém próximo a ele (seus pais ou substitutos). Estas pessoas vão constituir o objeto de desejo da criança. [9]
As pulsões podem alcançar seu objetivo, ou seja, a satisfação, de vários modos. É isto que constitui o que Freud chamou de economia da libido . Em outras palavras, as pulsões podem sofrer várias modificações. A libido, em suas relações com o objeto, pode ser substituída, trocada, deslocada, permutada, transferida. Todas estas trocas afetivas vão acontecendo com o auxílio de um conjunto de mecanismos de defesa, entre os quais a repressão, a sublimação, o split ou cisão, e vários outros. 
A sublimação é uma modificação da pulsão onde o fim e o objeto se transformam, com o objetivo de se tornarem socialmente válidos.  Freud acreditava que as obras de arte eram o resultado deste processo sublimatório. Através da sublimação as energias das pulsões são dirigidas para um fim artístico, não sexual; tanto a finalidade quanto o objeto da pulsão vão ser trocados por fins e objetos diferentes. Com isto a sublimação substitui o objeto inacessível por um outro, menos satisfatório, porém mais aceitável, tendo este novo objeto a aprovação do  super-ego, e da sociedade.  Maria Luiza T. Assumpção, em seu artigo O Projeto Inconsciente de Machado de Assis situa uma opinião de J. D. Nasio sobre este fenômeno da  troca:
O destino da pulsão a que chamamos sublimação é, estritamente falando, a própria operação de troca, o fato mesmo da substituição. Antes de um modo particular de satisfação, a sublimação é, antes de mais nada, a passagem de uma satisfação a outra. [10]
E, concluindo, a autora nos lembra o seguinte:
A sublimação para a psicanálise é o meio de transformar e elevar, ou mesmo uma modalidade de evitar a irrupção violenta do sexual (...) A sublimação não é, estritamente falando, uma satisfação, mas a capacidade plástica da pulsão de mudar de objeto e de encontrar novas satisfações. [11]
Já a repressão impede a satisfação do desejo. A repressão não é muito eficaz na resolução de conflitos,[12] porque aquilo que é reprimido retorna através da formação do sintoma. Existe ainda um outro mecanismo de defesa que se torna importante no estudo das perversões - a cisão -, quando uma parte da personalidade evolui, seguindo os padrões normais, enquanto que a outra permanece fixada em pulsões eróticas mais primárias.
A situação edipiana define um triângulo de emoções, onde o amor pelo progenitor de sexo oposto se acompanha de hostilidade e rivalidade para com o progenitor do mesmo sexo. Isto se acompanha de todo um contexto de decepções, angústias e sentimentos de culpa. Um dos momentos mais importantes deste drama se dá por ocasião do reconhecimento da diferença dos sexos, que é acompanhado por uma intensa angústia de castração, paradoxalmente vivenciada tanto pelo menino quanto pela menina. É justamente em função desta angústia, e dos sentimentos de culpa concomitantes, que ocorre a repressão dos componentes agressivos das organizações pré-genitais (sádico-oral, anal-sádica, fálica). A criança supera esta difícil complexidade afetiva, abandonando o objeto do desejo e iniciando sua identificação[13] com o progenitor do mesmo sexo. A identificação vai formando um ideal do ego.  
Esta elaboração do Édipo, com a aceitação da interdição do incesto, garante a futura entrada na organização genital do amor sexual adulto, que vai se constituir através da integração de todas estas pulsões parciais que constituem a sexualidade infantil. Existem diversas elaborações desviantes que vão constituir psicopatologias específicas. A psicopatologia psicanalítica vai ser o resultado das várias possibilidades de elaboração da situação edipiana. O prazer perverso pode, neste instante, ser definido como uma retomada destas organizações libidinais arcaicas, num movimento que envolve os mecanismos de regressão e fixação.[14]
O Complexo de Édipo tem uma posição central na estruturação da personalidade.  Por isto, antes de entrarmos na teoria das perversões gostaríamos de reproduzir um trecho de Kusnetzoff (1982)  pela clareza de sua interessante  terminologia:
O Complexo de Édipo é um drama dentro de uma estrutura básica. É um drama porque o sujeito expressa suas vivências em formas de fantasias que, analogicamente se assemelham a uma peça teatral.
E o Complexo de Édipo é uma estrutura porque nesse drama fantasiado há uma organização de personagens interligados entre si. Nessa organização há elementos ou peças fundamentais e sempre presentes: Mãe, Pai e Sujeito. Continuando com a analogia estas peças são os personagens básicos do argumento. No entanto, os atores que viverão esses papéis, assim como as vestimentas, a decoração, a ambientação e o clima, serão diferentes em cada momento vivenciado pelo sujeito. Não há nada fora do Complexo de Édipo. Durante a vida inteira a pessoa continua vivendo essa peça teatral, assumindo diferentes papéis de um argumento que reflete sua história passada com os personagens do passado e com os diferentes desfechos a que levaram as combinatórias em seu interacionar quase infinito. [15]
Achamos que estes pontos, se bem que muito condensados, podem fornecer subsídios suficientes para nosso objetivo, que é examinar a presença das perversões nos personagens de Álbum de Família, peça de Nelson Rodrigues. Uma exposição da concepção psicanalítica da personalidade pode ser melhor observada em textos do próprio Freud.[16] Mas além disto podem ser encontradas em qualquer dos manuais clássicos sobre psicanálise. Entre os quais podemos citar alguns livros clássicos como o os de Otto Fenichel,[17] Franz Alexander (1965)  ou Charles Brenner (1973), entre outros.[18] O Dicinário de Psicanálise de J. Laplanche e J. Pontalis oferece um referencial de pesquisa insubstituível. No Brasil podemos lembrar dois excelentes capítulos de Garcia-Roza (1984), O Discurso do Desejo e O Discurso da Pulsão, além do importante livro de Renato Mezan (1982) sobre a trama dos conceitos.



[1] Traduzida do alemõ Trieb.
[2] Em algumas passagens Freud vai se referir a instinto, porém com conotações bem específicas, e diferentes da categoria da pulsão. Definindo o comportamento instintivo poderíamos dizer que ele se caracteriza como complexo, previsível de acordo com a espécie, inflexível, automático e mecânico, revelando muito pouca variabilidade ou possibilidade de aprendizagem, isto é, não requerendo condições especiais de aprendizagem para seu aparecimento. Quando contrariado, o instinto parece cego e estúpido”. D. S. Martins, Psicologia da Aprendizagem, p. 22.
[3] Traduzida do alemão Trieb.
[4] A esse respeito, ver Benjamin Wolman ( 1970 ) e Hall - Lindzey (1972).
[5] Parte do corpo que é capaz de reagir a uma estimulação sexual.
[6] Porém em determinados casos, muitas outras partes do corpo podem reagir eroticamente (como a boca, o ânus, os órgãos dos sentidos, e mesmo órgãos internos), durante as fases pré-genitais do desenvolvimento da criança.
[7] Como Wolman observa; “A energia mental é energia no sentido físico da palavra, isso é, provavelmente algo que pode transformar-se em outro tipo de energia, de forma análoga à transformação da energia mecânica em térmica. A energia não é perecível; pode acumular-se, preservar-se, descarregar-se, dissipar-se, bloquear-se, porém não pode ser aniquilada. Este postulado da preservação da energia mental, de sua transformabilidade e seu funcionamento análogo ao da energia física, é um dos atributos fundamentais da psicanálise". Benjamin Wolman, Teorias y Sistemas Contemporaneos en Psicologia, p. 245.
[8] Ver a este respeito o livro de Karl Abraham, Teoria psicanalítica da libido, que se dedica a um estudo mais aprofundado das fases oral e anal, desdobrando cada uma delas em dois momentos, e demarcando de forma clara as origens do sadismo na fase oral canibalística.
[9] O desejo é a representação da pulsão, que se dá através dos fantasmas. Tornando mais claro, os fantasmas são as dramatizações imaginárias da satisfação dos desejos.
[10] J. D. Nasio, Os 7 conceitos cruciais em Psicanálise  (Rio de Janeiro, Zahar, 1989), citado por M. L. T. de Assumpção, O Projeto Inconsciente de Machado de Assis, Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol.43, nº. 3/4, 1991, p. 87.
[11] M. L. T. de Assumpção, O Projeto Inconsciente de Machado de Assis, Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol.43, nº. 3/4, 1991, p. 87.
[12]  Surgem na interação das três instâncias da personalidade.
[13] Podem ocorrer identificações com o objeto do desejo, com o objeto perdido, com o rival ou com o agressor.  Um melhor desenvolvimento destes mecanismos de defesa pode ser encontrado no livro de Anna Freud, O Ego e os Mecanismos de Defesa.
[14] Diante de frustrações e adversidades intransponíveis, a libido pode regredir para estágios anteriores do desenvolvimento, que foram mais satisfatórios para a criança. Já as fixações representam uma parada no desenvolvimento, ficando a libido fixada tenazmente em componentes da sexualidade perverso-polimorfa. Segundo Abraham, estes bloqueios podem acontecer tanto por excesso, como por falta de gratificação da libido. Karl Abraham,  A teoria psicanalítica da libido.
[15] E Kusnetzoff  (1982) complementando pergunta-se, com as palavras de  M. Safouan: “Em outras palavras... o Édipo é simplesmente uma história, a história de nosso primeiro amor, nosso amor infantil, ou então é o intemporal que faz da propria vida uma hitória que se repete, a ponto de que esta vida corre o risco de nunca nascer?” M. Safouan,  A sexualidade feminina na doutrina freudiana, citado por J. C. Kusnetzoff, Introdução à Psicopatologia Psicanalítica, p. 65/ 66.
[16] Cf. S. Freud, Cinco Lições de Psicanálise (1910) e Conferências Introdutórias à Psicanálise (1916).
[17] Otto Fenichel, Teoría Psicoanalítica de las Neurosis.  
[18] Franz Alexander, Fundamentos da Psicanálise; Charles Brenner, Noções Básicas de Psicanálise, Introdução à Psicopatologia Psicanalítica.