quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O Processo de Criação




____________________________________O Processo de Criação

Elza Rocha Pinto

O desejo utiliza uma ocasião do presente para projetar, conforme ao modelo do passado, uma imagem do porvir.[1]
                                         Freud
A obra de arte - e sobretudo a obra literária - não se impõe apenas como um objeto de gozo ou de conhecimento; ela se oferece ao espírito como objeto de interrogação, de indagação, de perplexidade.  [2]
       Gaëtan Picon
Como um complemento ao referencial psicanalítico, achamos que cabia articular alguns pontos de vista sobre o proceder da criação artística. Principalmente no que diz respeito ao fenômeno da inspiração. E incluímos algumas questões sobre o papel da  sublimação. Apesar de Freud (1908) ter afirmado uma correlação entre a sublimação e a arte, existe no processo de criação um momento bem nítido que não se pode articular com as definições clássicas de sublimação. É a “travessia do fantasma”, como diz Pommier[3] ou a “manifestação do espírito” nas palavras de Artaud (1971).
Acreditamos que os trabalhos de leitura crítica que a psicanálise vem realizando sobre textos literários, não somente ampliam a compreensão de tais textos, como também permitem um entendimento maior sobre o próprio autor. Além de contribuírem para tornar mais claro o processo criativo. 
Freud se interessou por alguns pintores: Leonardo da Vinci (1910) e Miguel Angelo (1914), por escritores como Dostoievski (1928), do qual examina Os Irmãos Karamázov e Crime e Castigo. Da literatura estuda ainda a Gradiva de Jensen (1907) e algumas obras de Shakespeare.[4] Seus estudos muito contribuíram para fortalecer a compreensão de que é impossível separar o artista de sua criação. Ao realizar sua obra, o artista a envolve com seu estilo, imprimindo uma espécie de marca registrada nas suas criações.
Em O Poeta e os Sonhos Diurnos, Freud (1908) avança uma explicação sobre o processo da arte. Diz que existe uma grande aproximação entre a brincadeira da criança e a criação do artista.
Toda criança que brinca se conduz como um poeta, criando para si mesma um mundo próprio, ou, mais exatamente, situando as coisas de seu mundo em uma nova ordem, agradável para ela. [5]
A diferença estaria no fato do artista brincar apenas em sua imaginação. Enquanto a criança precisa do referente, no real, onde apoiar sua imaginação.
Para Freud , “a poesia, como o sonho diurno, é a continuação e o substitutivo dos jogos infantis”.[6] A criança ao crescer, interrompe o seu brincar, aparentemente renunciando ao prazer que extraía do jogo. Mas, na verdade, na poesia não existe renúncia alguma, apenas uma substituição onde o indivíduo vai prescindir “de qualquer apoio nos objetos reais, e em lugar de brincar, fantasia. Faz castelos no ar; cria aquilo que chamamos fantasias ou sonhos diurnos”. [7]
O artista vive intensamente seu mundo interior, apoiando-se não mais nos elementos externos - os brinquedos de quando era criança, - mas nos elementos simbólicos[8] já integrados em sua personalidade. Segundo Freud (1908), o artista teria uma necessidade inadiável de ultrapassar seus tormentos, elaborar seus conflitos e sentimentos contraditórios, sublimar, enfim, suas pulsões.
Freud indica o processo da sublimação, através da elaboração destas fantasias. A criação vai atravessar três dimensões do tempo[9]. A fantasia criadora surge da mesma forma que o sonho: através de enlaces múltiplos. Uma impressão atual, uma situação do presente, se torna capaz de despertar um desejo no sujeito. Acompanhamos Freud no desfiar destes tempos:
Uma fantasia flutua entre três tempos: os três fatores temporais de nossa atividade representativa. O trabalho anímico se enlaça a uma impressão atual, a uma ocasião do presente, capaz de despertar um dos grandes desejos do sujeito; a partir deste ponto, apreende regressivamente, a recordação de um acontecimento passado,  quase sempre infantil, na qual ficou satisfeito tal desejo, e cria então uma situação que se refere ao futuro, e que apresenta, como satisfação de tal desejo, o sonho diurno ou fantasia, a qual leva, então, em si, as marcas de sua origem, na ocasião e na recordação.  Assim, pois, o pretérito, o presente e o futuro, aparecem como que entrelaçados pelo fio do desejo, que passa através deles. [10]
Afirma Freud que, da mesma forma como os sonhos noturnos são satisfações de desejo, as fantasias e os sonhos diurnos também procuram realizar os anseios e expectativas do indivíduo.
Os escritores de novelas e contos produzem estórias com uma característica singular. Todas elas tem um protagonista que é o centro do interesse do autor e dos leitores. É através deste herói que se expressa o ego do autor. Segundo Freud, o ego é o real personagem de todos os sonhos e de todas as novelas. Mesmo nas tramas mais complexas dos enredos modernos. Freud vai afirmar que a novela psicológica deve sua peculiaridade “à tendência do poeta moderno a dissociar seu ego por meio da auto-observação em egos parciais, e personificar em conseqüência em vários heróis as correntes contraditórias de sua vida anímica.” [11]
Ou seja, é o desejo do sujeito que flui através da relação que a fantasia mantém com o passado, com o presente e com o futuro:
Um poderoso acontecimento atual desperta no poeta a recordação de um acontecimento anterior, pertencente quase sempre a sua infância, e desta parte então o desejo, que se cria satisfação na obra poética, a qual do mesmo modo deixa ver elementos da ocasião recente e da antiga recordação. [12] 
Finalmente, Freud faz considerações sobre o processo psicológico dos poetas, afirmando que a vida do artista precisa ser levada em consideração, pois seus conflitos íntimos influem na elaboração da obra. Esta conclusão vai ser desenvolvida por Freud, através dos conceitos de projeção e sublimação. A ideia de uma determinação inconsciente não é nova. Traduz uma retomada do pensamento platônico. Platão (1952), se bem que não se refira a conflitos íntimos, afirma que o bom poeta é aquele que enlouquece. Ao criar ele está obedecendo a razões de ordem extra-lógica, para além do alcance de sua consciência.
O próprio Nelson Rodrigues compartilha desta opinião de Freud, uma vez que são constantes as suas referências ao menino que vivia enterrado nele e que lhe trazia lembranças de um passado profundo. Muitas das suas crônicas, refazem seu mundo infantil, onde ele muitas vezes foi o espectador de cenas trágicas e cruéis.[13] Em suas peças, onde a morte é um elemento constante, esta morte raramente é natural. Os desfechos trágicos ocorrem em função de violências. Sábato Magaldi (1987) diz que o próprio Nelson Rodrigues gostava de afirmar que ele tinha sido marcado pelo assassinato de seu irmão Roberto.
Sobre esta questão é bem interessante o diálogo que Sócrates mantém com Íon, onde o filósofo afirma que o artista ao fazer seus lindos versos, da mesma forma como o ator ao representar intensamente seus personagens, eles não estão em seu juízo perfeito. Perdem a consciência, caindo na esfera de atração da divindade, e só assim, inspirado pela Musa ele será capaz de fascinar os outros com seu canto, sua música ou sua dança.[14] Assim a criação literária, para Platão, também obedecia a um sentido oculto, que era necessário investigar.[15]









[1]  S. Freud, O Poeta e os Sonhos Diurnos, p. 1344
[2] Citado por Valmir Adamor da Silva, em Psicanálise da Criação Literária - As neuroses dos grandes escritores., p. 20.
[3] Gérard Pommier, A sublimação e o  final da análise - em  Revista Arriscado - ano II, nº. 4.
[4] Como Hamlet, Othelo e Macbeth.
[5] S.  Freud, O Poeta e os Sonhos Diurnos, p. 1234.
[6] Op. cit., p.  1347.
[7] Op. cit., p. 1344.
[8] Na literatura a criação artística vai simbolizar através das palavras aquilo que o autor pretende dizer.  O elemento simbólico - a palavra - substitui o referente.
[9] A criação, para Freud, vai ser o resultado do enlace entre passado, presente e futuro. Algo na vivência presente do artista se enlaça com algum acontecimento do seu passado e ele, então, se expressa na obra de arte. E esta se lança para o futuro, uma vez que cria um mundo inexistente, um mundo virtual, nem presente, nem passado, um mundo ainda por vir.
[10] O grifo é nosso. S. Freud, O Poeta e os Sonhos Diurnos, p. 1344
[11] Op. cit., p.  1347. Esta afirmação de Freud acaba dando oportunidade para uma contribuição de Melanie Klein, em artigo datado de 1929, A personificação no brinquedo das crianças, onde ela sistematiza e amplia esta idéia. A criança personifica através de seus brinquedos não apenas seu Ego, mas conteúdos do Id e do Super-Ego, que são distribuídos através dos diversos personagens que fazem parte da trama de uma determinada brincadeira. Assim como a criança, ao brincar, vai depositando partes suas nos diversos personagens da brincadeira, um romancista ao desenvolver seu enredo também vai distribuindo características da sua personalidade através dos diversos heróis da trama.  Um exemplo do próprio Nelson Rodrigues pode ilustrar este fato. Numa das mudanças feitas por sua família, Nelson encontrou um diário de uma adolescente, entre os pertences esquecidos pelos antigos moradores. E passa a ler, curiosamente, as confissões da jovem, cujo nome era Alaíde. Nelson parece ter sentido sua curiosidade como coisa de mulher, tanto que projeta este pequeno incidente em Vestido de Noiva, onde Alaíde acha o diário Mme. Clessy, passando a lê-lo atentamente. Ao mesmo tempo projeta outros aspectos de sua vida em outros personagenes. A expectativa diante da operação da moça, atropelada em frente ao relógio da Glória leva as pessoas a especular sobre se ela vai morrer ou nao. Este fato parece refletir a ansiedade pela qual a família Rodrigues atravessou, quando seu tio Augusto Rodrigues, desapareceu durante dias; ele havia morrido atropelado, em frente ao mesmo relógio, e estava sem documentos.Freud, S. O poeta e os sonhos diurnos, Pag. 1347. Esta afirmação de Freud acaba dando oportunidade para uma contribuição de Melanie Klein, num artigo de 1929, A personificação no brinquedo das crianças, onde ela sistematiza e amplia esta idéia de Freud. A criança personifica através do brinquedo não apenas seu Ego, mas conteúdos do Id e do Super-Ego, que são distribuídos através dos diversos personagens que fazem parte da trama de uma determinada brincadeiraFreud, S. O poeta e os sonhos diurnos, Pag. 1347. Esta afirmação de Freud acaba dando oportunidade para uma contribuição de Melanie Klein, num artigo de 1929, A personificação no brinquedo das crianças, onde ela sistematiza e amplia esta idéia de Freud. A criança personifica através do brinquedo não apenas seu Ego, mas conteúdos do Id e do Super-Ego, que são distribuídos através dos diversos personagens que fazem parte da trama de uma determinada brincadeira
[12] Op. cit., p. 1347
[13] Como o suicídio da adolescente que foi sua primeira paixão platônica de menino. A esse propósito, ver Lilia ardeu como uma estrela, em Nelson Rodrigues, O Óbvio Ululante, p. 39.
[14] Plato,  Íon, p. 142  .
[15] Em oposição, Aristóteles em sua Arte Poética não via razão para se preocupar com os motivos que levam um homem a escrever. As condições individuais que dão origem a uma obra de arte não importam. Aristóteles não estuda o gênio na arte. Para ele a tendência à criação poética podia ser vista como uma manifestação instintiva fundamental. “A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância (...) Pela imitação adquire seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam prazer (...) a aquisição de um conhecimento arrebata não só o filósofo, mas todos os seres humanos, mesmo que não saboreiem durante muito tempo essa satisfação. Sentem prazer em olhar essas imagens, cuja vista os instrui e os induz a discorrer sobre cada uma (...) Como nos é natural a tendência à imitação, bem como o gôsto da harmonia e do ritmo (...), na origem os homens mais aptos por natureza para estes exercícios aos poucos foram dando origem à poesia ou suas improvisações.” Aristóteles, Arte Poética, p. 294.  Aristóteles entendia que a análise estética se esgotava na própria obra de arte. Interessa-se pelo fim a que se propunha a obra, e pelos meios que a criação artística empregava, pricipalmente no domínio do teatro. Ao tentar precisar as características do belo, ele insiste mais nos elementos racionais, do que nos sensíveis. O belo residiria na grandeza da ordem. Suas formas se expressam através da unidade ou coordenação (proporção ou simetria, no sentido grego), na determinação ou precisão. Aristóteles, Arte Poética, p. 283.