quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Perversão - A Ética do Desafio


___________________________________A Ética do Desafio

Elza Rocha Pinto


Ó minha alma, lavei-te do pudor mesquinho e das virtudes tacanhas e persuadi-te a erguer-te nua ante os olhos do sol  [1]
                                                      Nietzsche
Em 1946, alguns intelectuais apoiaram o veto à Álbum de Família, corroborando a censura; eles comungavam, certamente, com Santo Agostinho,[2] para quem o teatro era um veneno, que lançado sobre o corpo social, poderia desagregá-lo. Talvez Santo Agostinho estivesse certo. Pois Artaud chama nossa atenção.  “O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura”.[3]  Uma peça como Álbum de Família poderia, de fato, como uma peste envenenadora contaminar a platéia de uma nação. Houve um tempo em que Carlos Lacerda bradava aos quatro ventos que Nelson Rodrigues era um instrumento do comunismo, o qual tinha o propósito de destruir a instituição da família.  Mais uma vez é Artaud quem nos ensina:
Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que aliás só pode assumir todo seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas à sua volta uma atitude heróica e difícil.[4]  
Álbum de Família era a liberação deste inconsciente comprimido. E provocou, justamente por isto, uma intensa resistência. Para ser endossada, Álbum de Família exigia, da época, uma atitude heróica da “coletividade reunida à sua volta”, como disse Artaud.  Mas nem todos puderam assumir tal posição. Houve depoimentos indignados. O que causou tanto impacto foi o fato de Nelson Rodrigues ter colocado a platéia brasileira diante do espelho; os leitores da peça visualizaram, assustados, a abertura, no palco, das páginas de seus próprios álbuns de fotografias. Por esta razão as fotos foram censuradas, determinando-se o repúdio da peça, na esperança de calar o escritor. Mas, a censura acabou por ter um efeito contrário. Nelson Rodrigues se afirmou como um autor brasileiro, que merecia o tempo e o espaço de uma discussão. Na época, nosso autor sentiu-se muito injustiçado.  Mas, anos mais tarde, em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som, em 1967, ele reconheceu que a polêmica, criada pela peça, trouxe para ele uma situação favorável.
Assim como a literatura de Sade refletia o sadismo que já aflorava por toda parte, como atestam os roman noir, Álbum de Família também refletia algo, que já estava no limiar das consciências, desde que a psicanálise defendera a sensualidade e a violência como partes integrantes da natureza humana.  E Nelson Rodrigues dedicou-se a escrever sobre estas paixões e estes desejos, tornando-se um escritor maldito. Em 1946, a violência que hoje nos ocupa as ruas quotidianamente, já não causava espanto. Bastava abrir os jornais que tivessem repórteres de polícia,[5]  para constatar a crueldade que se abriga no interior das famílias:
Todos os dias há a mulher que mata o marido e, inversamente, o marido que mata a mulher. O brasileiro é um fascinado pelo crime passional (cada um de nós se identifica ou com a vítima, ou com o criminoso, ou com ambos). [6]
A lucidez de Álbum de Família recusou qualquer pacto perverso com instituições que tentassem ignorar o lado sórdido de sua realidade.[7] O que costuma acontecer com freqüência. Como uma atriz vaidosa, o social procura esconder sua face menos fotogênica,  tentando deixá-la fora das luzes dos refletores. Mas o fato é que esta outra face tem um brilho próprio, e não se deixa ofuscar tão facilmente. Parafraseando o que diz Eliane R. Moraes (1994)  sobre o roman noir (1994), podemos dizer que a  maior inconveniência de Álbum de Família está precisamente em expor a solidão terrível do indivíduo confrontado com a violência de seu interior. Relembramos as palavras de Yan Michalski, por ocasião da remontagem de Antunes Filho:
... Nelson Rodrigues aparece como uma espécie de Ésquilo brasileiro, pai de uma tipologia e de uma imagística na qual todos nos podemos reconhecer, na medida em que traduz momentos vitais comuns a todos, ligados aos traumas do nascimento e da infância, aos fantasmas da morte, aos impulsos das paixões que escapam ao controle da razão, ao choque dos anseios primitivos contra o muro das proibições construídas pela civilização. [8]
São forças perigosas que constituem o psiquismo inconsciente, diante das quais é necessário ter-se muito cuidado. Em Álbum de Família, aos poucos, vamos vendo a rendição dos personagens,  subjugados por estas forças, tão poderosas e tão irresistíveis que, sem dúvida, poderiam ganhar o nome de Destino. Um dos destinos do homem é o de lidar com as perigosas paixões dos nossos desejos parciais. Álbum de Família coloca à descoberto, que estes desejos de alta intensidade, atingem os membros da família. Este reconhecimento causou muito desconforto entre os intelectuais da época. Não resta dúvida que a peça oferecia-se como um excelente alvo para projeções. Nelson Rodrigues foi chamado de imoral, obsceno e indecente.  Álbum de Família ofendeu a sensibilidade dos profetas da moral, com uma saraivada de incestos. E no entanto, desde Édipo-Rei que a temática do incesto já indicava quão pouco a Natureza se importa com a moral. E como estas forças são determinadas, pois mesmo quando alguém procura escapar delas, como tentou fazer Édipo, elas insistem.  Pedro Dantas, na introdução de Álbum de Família desenvolve um pensamento definitivo:
Um Destino implacável pesa sobre cada personagem, dirigindo-lhes a vida, que os oráculos poderiam ter anunciado como inelutável, a Jonas, a Senhorinha, ainda no berço. Não poderíamos viver, agir, sentir diferentemente porque, em verdade, não são senhores de si, mas, por algum secreto desígnio dos deuses, não passam de títeres das Eríneas. [9]
Em Álbum de Família, os personagens no palco nada tem de seu, a não ser a tremenda força de seus desejos. Vemos para nosso espanto, todas as nossas paixões expostas publicamente. Vemos a insolente demanda do incesto, se impondo sem estratégias. Incesto que tanto esforço nos custa a recalcar. Todos os membros da família transgridem em nome de um desejo que não dá tréguas. O que vemos no palco nada mais tem a ver com o universo do quotidiano, com o mundo cristão da falta, do medo e do pecado. Na busca do sonho infantil, cada um dos personagens vai se colocar acima de todas as leis. Mesmo assim, Álbum de Família não pode ser taxada como uma peça imoral. A não ser que se esteja também chamando de imoral a própria humanidade, já que as forças da pulsão fazem parte da condição humana. Helio Pelegrino arremata esta questão, com uma observação irretocável:
A moral convencional se aplica aos humanos, não aos heróis míticos da espécie. Eles são tão imorais ou tão elementares como um grande rio em plena enchente, destruindo casas, alagando campos, afogando crianças e rebanhos. [10]
Em Álbum de Família processa-se uma catarse. É o próprio Nelson Rodrigues quem elabora esta idéia, ao responder a seus críticos: “Morbidez? Sensacionalismo? Não. E explico: a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós”.[11] Martim Gonçalves, em seu artigo O Álbum Ainda, faz uma análise muito bonita sobre a peça de Nelson Rodrigues. Entre outras afirmações, ele compara o teatro de Nelson com o teatro de Genet. E por achar que pode se aplicar ao dramaturgo brasileiro, ele cita uma observação de Bernard Dort sobre o escritor francês:  “A catarse que ele nos oferece é como se fosse o inverso da catarse clássica. Depois de ter suscitado piedade e temor, essa catarse, longe de operar a purgação característica de tais emoções, abre-se ao contrário, sobre o medo e a piedade de uma existência nua”. E Martim Gonçalves retoma sua análise lembrando Artaud:
Nelson nos apresenta o que poderíamos também chamar de o silêncio dos danados sobre a terra. Álbum de Família oferece aos espectadores “os fiéis precipitados de seus sonhos, nos quais o seu gosto pelo crime, suas obsessões eróticas, sua selvageria, suas quimeras, seu sentido utópico de vida e matéria, mesmo o seu canibalismo, se derramam num nível não falsificado e contrafeito mais interior”. É Artaud em seu Teatro da Crueldade quem assim fala. [12]
Concordando com estas idéias, Isabel Câmara, outra admiradora de Nelson, diz que ele é por natureza um “escritor do sombrio, do burlesco, do tragicômico, daquilo que se esconde por trás das máscaras, e das impostações”.  Para colocar o homem diante do espelho, segundo Martim Gonçalves, Nelson Rodrigues vai se utilizar do mito. Porém “não o mito da tradição greco-romana e cristã, mas o Mito e o Ritual das culturas primitivas”, que trata justamente deste sombrio. Mostrando a proximidade que existe entre Artaud e Freud, Martim Gonçalves diz que os personagens de Nelson Rodrigues corporificam as idéias destes dois pensadores, e finaliza com um pensamento de Artaud:
Podemos afirmar agora que toda verdadeira liberdade é sombria, e está infalivelmente identificada com a liberdade sexual, que também é sombria. E essa é a razão pela qual os grandes mitos são sombrios. [13]
Em artigo feito para servir como introdução a uma das peças de Nelson Rodrigues,  A Obra e o “Beijo no Asfalto”, o psicanalista Helio Pelegrino também afirma que Álbum de Família é uma peça mítica. “Acima da realidade está o mito, no que comporta de essencial e universal”.[14] Nas peças mitológicas,[15] Nelson se volta  “para as raízes mais profundas de seu inconsciente”. Com isto, através de sua dramaturgia ele procura encontrar seu próprio mito pessoal, ao mesmo tempo em que recupera  problemas  essenciais da espécie. “Neste sentido, sua obra é tão imoral como a mitologia grega ou a mitologia de qualquer povo, crivada de incestos, de crimes, de sangue e excrementos”.[16] Os personagens de Álbum de Família são intemporais, “lançam suas raízes na matriz da alma humana - também intemporal”. [17] Assim eles não são o retrato de um homem historicamente datado. Representam a transposição deste homem para o mundo do mito.  Finalizando seu pensamento, Pelegrino completa:
Nessa obra, o que importa é o mito do incesto, tratado em todas as direções possíveis, desdobrado nos dilaceramentos e nos ódios que lhe são intrínsecos. Senhorinha, Nonô, Jonas, Glorinha não são pessoas de carne e osso, são símbolos, são arquétipos, solenes e terríveis na sua grandeza e na sua miséria super-humanas...[18]
Como personagens arquetípicos, a família do álbum está acima da lei. Imitando a família divina no Olimpo, ele também podem se entregar às suas paixões. E quando cometem seus crimes, transformam-se em irmãos espirituais dos personagens de Sade. Pois podemos dizer que eles são criminosos com audácia e ostentação. São todos eles  personagens que podem dizer em uníssono, com Annabella, de Ford[19]:
Choro não por remorso mas por medo de não conseguir satisfazer minha paixão. [20]
 Álbum de Família traduz muito da abordagem freudiana sobre o psiquismo.  Seus personagens são produtos da regressão ao mundo primitivo das pulsões parciais. Todos eles marcados por desejos proibidos.[21] Em Álbum de Família a perversão assume diversas identidades. O sadismo e o incesto fornecem a tônica, porém cada personagem apresenta, como vimos, uma variedade diferente de perversão.
Todos eles desafiam o processo de socialização, através do qual as pulsões parciais são submetidas ao governo do ego, e da consciência moral. Neste processo, a castração é o significante da lei. A interdição do incesto funda o sujeito, ao interromper a relação simbiótica entre a criança e sua mãe. Com isto o indivíduo acessa ao mundo do simbólico.  O próprio  Nelson Rodrigues testemunha tal movimento, ao afirmar em uma de suas crônicas que “o homem começa a ser homem depois dos instintos e contra os instintos”.[22]
Álbum de Família realiza uma psicanálise ao reverso. Pelo processo psicanalítico o indivíduo pode tomar conhecimento de verdadeiros desejos, e assim dominá-los, em vez de ser dominado por eles.  Porém, em Álbum de Família Nelson Rodrigues percorre uma trajetória inversa.   Os personagens vão perdendo suas máscaras sociais.[23] E o mundo originário, como um anjo exterminador,[24] vai ganhando terreno e liberando a ação. Na medida em que as repressões e recalques se desfazem, os personagens assumem seus desejos mais primitivos, sensuais e cruéis. As características de humanidade  - afeto, carinho, admiração, respeito e amizade -  vão cedendo a impulsos hostis, agressivos, eróticos e incestuosos. 
Podemos dizer que Freud volta a falar, através de Álbum de Família. No entanto, é interessante relembrar as dificuldades de Nelson com a psicanálise. Ele chega a declarar que odeia os psicanalistas, em uma de suas entrevistas. Álbum de Família ilustra o motivo.  Em Apelo de uma Fé Perdida, encontramos um pequeno trecho que traduz toda a tristeza de se saber apanhado nas redes de um desejo perverso:
Lembro-me de que, uma noite, comecei a ler uma condensação de Freud. Lia aquilo e voltava para reler. Não entendia nada ou entendia muito pouco. Parecia-me que o sábio valorizava os instintos e só os instintos. E, súbito, deixei de ser o homem eterno. Reagi como se Freud fosse um veterinário e todos nós, bezerros. Fechei o livrinho e comecei a chorar. [25]
Diante da interpretação psicanalítica, Nelson chora a perda de sua inocência e de sua fé na pureza de uma alma imaculada. Anos depois surge Álbum de Família como vestígios deste luto. A peça é a fala do inconsciente. Seus  personagens vão deixando de funcionar segundo o  princípio de realidade, marca do processo secundário. E voltam a se reger pelo  princípio do prazer, lei do processo primário. Sem os freios, e sem os limites da socialização, os personagens assumem a tragédia de seus desejos.
Como conclusão, podemos afirmar que a leitura psicanalítica destas paixões permitiu uma reflexão sobre algumas perversões, e sobre a dimensão ética do desafio à lei, característica destes fenômenos. Pretendemos, com isto, mostrar que o processo de criação de Álbum de Família passou por valores inconscientes, inscritos na teoria das pulsões do pensamento freudiano.
Antes de encerrar nosso trabalho, achamos necessário desenvolver algumas observações finais. Vernant, em seu livro, Mito e Tragédia na Grécia Antiga,  faz uma profunda análise da tragédia, no mundo grego. Ele mostra como este gênero nasce do confronto entre o mundo lendário do passado, com suas tradições míticas, e o mundo da cidade grega, com seus novos valores políticos e judiciários. A tragédia expressaria o olhar do cidadão sobre o mito. Álbum de Família não se coloca muito distante desta análise. Se bem que em outro contexto. Mas o fato é que vamos ver, na peça, o contraste entre a psicologia política de um lado, e a psicologia mítica de outro. E assim se configura o trágico em Álbum de Família. Conforme Vernant,  “o que a tragédia mostra é uma díkë em luta contra uma outra díkë”.[26] Álbum de Família também gera dois tipos de confronto. Um confronto de valores se dá entre o palco e  o público. O mundo mítico representado na cena. E o mundo socializado, que podemos representar pela palavra do judiciário, representado pelas normas éticas do espectador. A polêmica de 1946 foi o resultado deste enfrentamento. Mas o outro combate se dá dentro da própria peça.
Na tragédia grega, a lei  jurídica se afirma sobre a lei familiar, e vemos o tirano Édipo ser expulso da cidade, depois de se decretar o castigo da cegueira.  Em Álbum de Família, uma das chaves da peça certamente está na frase de Edmundo:
Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer, você, papai, eu e meus irmãos. Como se  a nossa família fosse a única e primeira  Então, o amor e o ódio teriam de nascer entre nós. Mas não, não!  [27]
O que se afirma é a lei familiar mais primitiva. Não é que deixem de ocorrer tensões entre o universo do mito e o contexto da cidade. Na própria fala de Edmundo surge o mundo legal. Acordando de seu sonho, espanta-se com ele mesmo, e repudia o que acabou de dizer. Edmundo representa, em seu íntimo, toda a “tensão entre o passado e o presente,  o universo do mito e o da cidade”.[28] O combate entre os dois universos também se vê, em Jonas. Apesar de desejar a filha, não teve coragem de chegar ao incesto. A um certo momento da peça ele próprio confessa que ia adiando o momento de trazê-la de volta para a fazenda. Tinha medo. No entanto, é Jonas quem representa o universo legal. Ele é o significante do poder patriarcal, que se apoia na  religião oficial.[29] Ele é o pai, e por isto ele é sagrado, como Deus. Sua palavra tem efeito de lei, e precisa ser respeitada. A philia de Jonas é o Estado. Em paralelo seus filhos e Senhorinha representam uma outra ordem de leis.  Seus sentimentos, suas falas e suas ações partem de um outro êthos. Exprimem a philia ao mundo marginalizado das pulsões. Poderíamos até dizer que a pulsão é a moderna representação do daímön grego.[30] São quatro, os personagens verdadeiramente trágicos de Álbum de Família.  Senhorinha, e seus três filhos, pois que assumem seu destino. Matando ou morrendo, eles afirmam a lei mítica deste mundo originário. Não traem a sua philia. A ação assassina, incestuosa ou suicida não exprime o sentimento comum do homem mediano, domesticado pelos princípios morais da lei judaico-cristã. A força demoníaca das pulsões se apodera destes personagens, decidindo de seu destino. Eles não podem nada fazer, a não ser obedecer a esta dominação, ainda que isto signifique a condenação à morte, ou à loucura.
É denso o diálogo que Nelson Rodrigues trava com os valores de seu tempo. O confronto do casal perverso,[31] aponta para o combate das duas grandes forças. Poderíamos até nos utilizar da leitura deleuziana, para dizer que o que encontramos no final de Álbum de Família, é o enfrentamento de dois inconscientes. O inconsciente freudiano, que traduz um Édipo recalcado, metáfora da lei social. É este o inconsciente de Jonas. E o inconsciente maquínico e produtor, que afirma o desejo acima de qualquer lei. “Não ceder de seu desejo”, como diria Lacan,[32] esta é a máxima de Senhorinha.  “Com a grandeza que vem da própria consciência da tragédia”, com  “o sereno deslumbramento ante o sentido transcendente da força superior que a dirige”,[33] Senhorinha assume seu próprio destino. Pedro Dantas apaixonadamente descreve Senhorinha, na introdução de Álbum de Família:
Ela é a personagem trágica, por excelência, isto é, a que vive lucidamente a sua tragédia. (...) É superior à vida e à morte pois que se sabe marcada pela fatalidade, ordem misteriosa dos deuses. Nada poderia desviá-la, nada, por isso, a perturba. Esse é o seu clima e o seu papel: só lhe cumpre vivê-lo.[34]
Como sempre se entregou às características perversas de sua personagem, mais uma vez Senhorinha não foge daquilo que lhe foi determinado por um perverso inconsciente. A última frase de Álbum de Família nos coloca diante de um enigma.  "Senhorinha parte para se encontrar com Nonô, e com uma vida nova". Não seria este reencontro entre Senhorinha e Nonô, uma outra metáfora rodrigueana? [35] Porque ao assassinar Jonas,  Senhorinha está se desvencilhando, ao mesmo tempo, da lei patriarcal. E estabelecendo uma ética[36] do desafio, uma ética da perversão.























[1] Friedrich Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 228.
[2] Ver O Teatro e a Peste, em Antonin Artaud, O Teatro e seu Duplo.
[3] Op. cit., p.  44.
[4] Antonin Artaud, O Teatro e seu Duplo, p. 40.
[5] A ressalva é em respeito à crítica que Nelson Rodrigues fará ao Jornal do Brasil. Em  A estrela do Atropelado, Nelson escreve “No Jornal do Brasil, por exemplo, é mais fácil encontrar uma girafa do que um repórter de polícia. Na folha do Dr. Brito (antigamente chamava-se jornal de folha), na folha do Dr. Brito, dizia eu, não abrem espaço para o crime. (...) Mas em vão o brasileiro mata e se mata; em vão é atropelado e fica estendido, no asfalto, rente ao meio-fio; em vão os namorados fazem pactos de morte e os consumam (há cada vez menos namorados e cada vez menos pactos de morte). Tudo inútil. O Dr. Brito não lhes dá cobertura nenhuma, nenhuma.” Nelson Rodrigues, O Óbvio Ululante , p. 135,
[6]  Op. cit., p.  135
[7]  Em julho de 1994, O Globo publicou uma reportagem realizada por Daniel Hessel Teich, cujo título O dolorido silêncio do estupro em casa, já indica o assunto. Para se ter uma idéia, segundo as informações do SOS Criança de São Paulo, “ 73% das 177 crianças e adolescentes até 17 anos que sofreram abuso sexual no período de janeiro a junho deste ano foram vítimas de seus próprios pais, padrastos, irmãos ou tios.”. E as estatísticas do SOS revelam detalhes ainda mais preocupantes: “metade dos estupros foram praticados pelos pais biológicos das crianças, 25,6% contra meninas de até 5 anos de idade, e 37,4% contra meninas de 6 anos até 14 anos.  Os técnicos, no entanto, acreditam que estes números representem apenas uma parte da realidade. O Globo, 31 de julho de 1994, p. 14.
[8] Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações, p. 182.
[9] Nelson Rodrigues, Álbum de Família, em Teatro Quase Completo, vol. 1, p.241.
[10] Helio Pelegrino, A Obra e ‘O Beijo no Asfalto’, em Teatro Quase Completo, vol. IV, p. 10
[11] Revista Veja, 11/3/1980.
[12] Martim Gonçalves, O Álbum Ainda, Jornal O Globo, 9/8/67.
[13] Antonin Artaud, O Teatro de Protesto, Zahar Ed., citado por Martim Gonçalves, O Álbum Ainda, Jornal O Globo, 9/8/67.
[14]  Op. cit., p. 10.
[15] Seriam elas Vestido de Noiva, Anjo Negro, Senhora dos Afogados e Álbum de Família. Incluiríamos também Dorotéia.
[16] Helio Pelegrino, A Obra e ‘O Beijo no Asfalto’, em Teatro Quase Completo, vol. IV, p. 11.
[17] Op. cit., p.  11.
[18] Op. cit., p.  10/11.
[19] Autor citado por Artaud, em O Teatro e seu Duplo.
[20] Citado em O Teatro e a Peste, Op. cit., p.  41.
[21] De um modo ou de outro eles acabam rompendo as barreiras do processo secundário.
[22] Nelson Rodrigues, A Última Mulher Fatal , em O Óbvio Ululante,  p. 85.
[23] As defesas - repressão, deslocamentos, sublimações, negação, etc.-, que trabalham à serviço do Ego, vão desaparecendo. Desmorona-se o Super-Ego de cada personagem, juntamente com todas suas normas, costumes e leis.
[24] Em Anjo Exterminador, o cineasta Luis Buñuel, trata da mesma temática, descrevendo um grupo de convidados para um jantar, que ficam paralisados, presos nesta situação absurda. Este fato aos poucos vai liberando comportamentos completamente associais.
[25] Nelson Rodrigues, O Óbvio Ululante, p. 74.
[26] Jean Pierre Vernant e Pierre Vidal Naquet, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, p. 13.
[27] Nelson Rodrigues, Álbum de Família, em Teatro Quase Completo, vol. 1, p. 325.
[28] Jean Pierre Vernant e Pierre Vidal Naquet, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, p. 21.
[29] Ver Anexo-4, nota Jonas-10
[30] Termo grego que designa um “tipo de potência divina, pouco individualizada, que, sob uma variedade de formas, age de uma maneira que, no mais das vezes, é nefasta ao coração da vida humana”. Jean Pierre Vernant e Pierre Vidal Naquet, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, p.22.
[31] Jonas e Senhorinha.
[32] Citado por Garcia-Roza, em O Mal Radical em Freud.
[33] Pedro Dantas, Álbum de Família, em Teatro Quase Completo, vol. 1, p. 241
[34] Op. cit., p. 241.
[35] Não podemos evitar associar à Senhorinha a figura de Sylvia Seraphim, que de uma só vez matou o irmão e o pai de Nelson. E que também sai impune de seu crime, tais as artimanhas que foram tramadas para iludir o público.
[36] Estamos aqui utilizando o termo ética em seu sentido mais amplo, através do qual muitas vezes ele é tomado como sinônimo de moral.