quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A Catarse na Obra de Arte



_________________                                                                  __          _A Catarse e a Obra de Arte
                                                                                 Assim os cantos que purificam a alma
                                                             causam em nós um encanto sem perigo [1]
                                                                     Aristóteles
Podemos dizer que existem algumas equivalências entre a situação da criação de uma obra e o tratamento psicanalítico. E seria uma tarefa interessante, para outro momento, delimitar estas equivalências, pesar as semelhanças e diferenças, analisar com cuidado as aproximações. Por agora achamos pertinente apenas avançar algumas observações. Em análise, o paciente relata seu mundo interior ao analista, e escuta suas interpretações. O mito de Pigmalião poderia perfeitamente aplicar-se à figura do analista. Ele representa de forma cristalina o vínculo do artista com sua obra. Foi nela que Bernard Shaw se inspirou ao escrever sua comédia Pigmalião, em 1912. Pigmalião foi um famoso escultor de Chipre, uma ilha do Mediterrâneo. Segunda a lenda, Vênus zangada com as mulheres de Chipre, quando estas lhe negaram a divindade, impôs como castigo a total falta de recato. Pigmalião, revoltado contra o comportamento sem pudor destas mulheres, esculpiu em marfim a estátua de uma formosa mulher. “Esta era uma obra-prima de tal perfeição e de tal fascínio que o próprio escultor se apaixonou imediatamente por ela. Fez sentidas súplicas a Vênus pedindo que desse vida a sua estátua, a que a deusa do amor não ficou indiferente. Animou, pois, com o sôpro da vida, a criação de Pigmalião. O artista pôde então tomar por esposa a própria mulher que inventara na pedra.” [2]
O contexto do atendimento psicanalítico se propõe à construção de um novo sujeito. Neste sentido o psicanalista também cria uma obra, aberta, viva
Por outro lado, com certeza o artista se confessa através daquilo que cria. Um escritor nunca consegue se libertar totalmente de seu mundo interior. Suas contradições  e ambigüidades vão sempre extravasar em sua produção. Neste transbordamento e através desta catarse, o autor vai realizando uma melhor elaboração de seus fantasmas.
Tanto o artista quanto o sujeito em análise se confessam. Uma diferença, entretanto, está no fato do paciente em análise confessar-se ao analista, enquanto o artista se confessa para o público. Esta particularidade determina uma outra diferença significativa entre os dois processos, e que diz respeito à interpretação. De forma semelhante, tanto a obra, quanto o sujeito em análise são interpretados. Mas em análise, a interpretação é interativa e dual. Enquanto que na obra de arte a interpretação é sempre coletiva. Porém, apesar de ser múltipla, ela mantém também o caráter interativo. Para além da interpretação do artista existe a interpretação do fruidor. A opinião do público, por vezes, pode influenciar a visão do artista, ampliando, modificando, transformando a concepção de sua própria obra. Não se pode deixar de notar que existe uma intensa comunicação entre eles. É no mínimo digno de nota, o interesse dos pintores pelas opiniões do público, por ocasião da inauguração de suas exposições.
É sabida a repercussão que a opinião pública acaba por ter no direcionamento das novelas. Este é um fenômeno cuja leitura não deveria ser reduzida apenas a um problema de marketing. Seria interessante abordá-lo através das interações e articulações que se formam entre as fantasias inconscientes dos autores e as interpretações do público, as quais se originam, com certeza, nas fantasias inconscientes e coletivas destes espectadores.
E também é notória a ansiedade dos autores teatrais por ocasião da estréia de suas peças, querendo ouvir os comentários dos espectadores. Nelson Rodrigues, por exemplo, ficava indócil, e em suspense, aguardando as reações da plateia. Durante as representações de O Beijo no Asfalto (RODRIGUES, 1960/1965), Nelson chegava a ficar de tocaia, no saguão do teatro, para abordar os espectadores que desistiam de ver sua peça até o final. Puxava conversa com eles, discutia, argumentava, e muitas vezes conseguia até convencê-los a voltar para a plateia.
No caso de Nelson Rodrigues, a interpretação de sua obra torna-se até bem pública. É dele a seguinte frase: “A obra de arte quando nasce, é preciso que ela encontre oposição, que desagrade, irrite”.[3] Sua obra teve este poder, e por isto Nelson foi bastante interpretado. Em diversos momentos, estas interpretações poderiam ser emblemas de uma psicanálise selvagem. Nelson Rodrigues algumas vezes ficou mobilizado. Por exemplo, quando Alceu Amoroso Lima lamentou que ele estivesse sempre envolvido na lama, referindo-se, naturalmente, ao fato de Nelson retratar com tanta franqueza as baixezas e infâmias do ser humano, que sempre constituíram sua matéria de inspiração. Nelson, sentido, nunca mais voltou a falar com o Dr. Alceu, e chegou a fazer uma crônica, Reze Menos por Mim (1968/1993),[4] onde desabafa:
...qualquer um tem seus íntimos pântanos, sim, pântanos adormecidos. É preciso não despertá-los. Mas certos acontecimentos acordam a lama do seu negro sono. Quando isso acontece, a alma começa a exalar o tifo, a malária, e a paisagem apodrece. [5]
Em diversas ocasiões Nelson foi interpretado pelos próprios amigos. Algumas destas observações feriam Nelson. Por exemplo, quando Manuel Bandeira sugeriu que ele escrevesse sobre pessoas normais. (CASTRO, 1992) [6]
Ruy Castro (1992) comenta que Nelson ficou magoado por perceber que, se Manuel Bandeira, um estudioso dos gregos, franceses e espanhóis, podia interpretá-lo tão mal, possivelmente a maior parte das pessoas não conseguiria enxergar  “que a força que o movia era uma profunda ‘nostalgia da pureza’ - pureza que só seria atingida depois que o homem chapinhasse descalço sobre as mais hediondas impurezas”. Foi tentando explicar-se que Nelson escreveu Dorotéia (RODRIGUES,1949/1965).
Segundo a opinião de Sábato Magaldi (1987) Nelson não teria mudado sua trajetória, em função das pressões recebidas.[7] Concordamos. O autor está se referindo ao nítido corte que ocorreu entre Valsa nº. 6 (1951/1965) e A Falecida (1953/1965). Foi preciso que Nelson Rodrigues esgotasse a elaboração interna que fazia através de suas peças míticas para que finalmente conseguisse mudar a trajetória de suas peças, entrando na veia que constituiu as chamadas tragédias cariocas. Porém, com certeza, as interpretações recebidas auxiliavam uma melhor elaboração de sua temática interior. O próprio Nelson sabia disto, como mostra um comentário seu onde reconhece a complexidade do processo catártico:
Em “Crime e Castigo”, Raskolnikov, mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele matou por todos. E, no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a plateia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteras, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los. [8]
Se esta catarse ocorre para o artista, também acontece o mesmo processo para o leitor. Através de um processo de identificação, o leitor pode se colocar no lugar do personagem, e viver suas aventuras e infortúnios como equivalentes aos seus. Estas afinidades ou antipatias do leitor com os personagens fornecem novos parâmetros para o autor. Modificações fundamentais podem ser determinadas através de como a peça se rebate na plateia, ou de como uma novela impacta o público; e nem sempre motivadas por simples motivos comerciais. Damos a seguir um exemplo. Ao escrever Asfalto Selvagem (RODRIGUES, 1959), Nelson Rodrigues inúmeras vezes incluiu pessoas e situações sugeridas por seus leitores e amigos, sem falar que na vida de Engraçadinha participavam personagens reais, como Otto Lara Resende e Gustavo Corção. Após a publicação de um livro, inicia-se uma intercomunicação afetivo-emocional, por limitada que seja, entre os leitores e o escritor.  Isto acontece através da repercussão da obra nos meios de comunicação, ou pelos contatos individuais entre o autor e seus ouvintes, durante  conferências e palestras. Esta interação, por vezes, leva o poeta a reelaborações e insights completamente divergentes de seus parâmetros iniciais. E pode revelar-se profundamente enriquecedora. O autor está sendo interpretado pelo público, da mesma forma como por vezes o analista interpreta seu paciente.
A diferença é que no caso da obra de arte, a interpretação percorre uma via de mão dupla. Não apenas o artista é interpretado. Mas ele interpreta o público com sua obra. Isto é reconhecido desde os tempos gregos. Aristóteles na Arte Poética (325-323 AC/1966) definiu o processo da catarse como uma espécie de cura e purificação onde as almas conseguem alívio libertando-se das paixões.


[1] Aristóteles, em Arte Poética, p. 284
[2] Enciclopédia Barsa, p. 16. 
[3] Entrevista concedida para o Ciclo de Teatro Brasileiro do Museu da Imagem e do Som, em 30/6/67, p. 15.
[4] Nelson Rodrigues, O Óbvio Ululante, p. 21.
[5] Op. cit., p.  23.
[6] Ruy Castro,  O Anjo Pornográfico.
[7] Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações.
[8]  Revista Veja, 11/3/1980.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
  • ARISTÓTELES (325-323 AC) - Arte Retórica e Arte Poética (s/de). Rio de Janeiro: Edições de Ouro.
  • __________________________ - Poética (1966) - Porto Alegre: Editora Globo.
  • CASTRO, RUY - O Anjo Pornográfico, A Vida de Nelson Rodrigues (1992). São Paulo: Companhia das Letras.
  • ENCICLOPÉDIA BARSA -  Encyclopaedia Britannica Ltda, Rio de Janeiro / São. Paulo.
  • MAGALDI, SÁBATO (1987) - Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações.  São Paulo: Editora Perspectiva.
  • RODRIGUES, NELSON (1949) – Dorotéia, in Teatro Quase Completo (l965) - 4 volumes - Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro Ltda.
  • ______________________ (1951) – Valsa no. 6, in Teatro Quase Completo - 4 volumes - Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro Ltda. 
  • ______________________ (1953) – A Falecida, in Teatro Quase Completo (l965) - 4 volumes - Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro Ltda. 
  • ______________________ (1959) – Asfalto Selvagem: Engraçadinha, Seus Pecados e Seus Amores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • ______________________ (1960) – O Beijo no Asfalto, in Teatro Quase Completo (l965) - 4 volumes - Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro Ltda.
  • ______________________ (1965) - Teatro quase completo - 4 volumes - Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro Ltda.
  • _____________________ (1967) - Entrevista para o Ciclo do Teatro Brasileiro do Museu da Imagem e do Som, em 30/06/67. Participação dos entrevistadores: Walmir Ayala, José Lino Grunewald, Fausto Wolff, Otto Lara Resende, Helio Pelegrino.
  • ______________________ (1968) - Reze Menos por Mim,  inO óbvio ululante: Primeiras Confissões(1993). Crônicas. Seleção de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras.
  • ______________________  (1980) – Entrevista publicada na Revista Veja, 11/3/1980.
  • ______________________ (1993) - O Óbvio Ululante: Primeiras Confissões. Crônicas. Seleção de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras.