quinta-feira, 13 de agosto de 2009

As Novas Regras e a Exclusão do Prazer



____________As Novas Regras e a Exclusão do Prazer


Elza Rocha Pinto



As perversões, como Freud tornou claro em Três Ensaios sobre uma Teoria Sexual (1905), são algo universalmente humano. Reforçando esta opinião, Fenichel acrescenta:
Foram praticadas em todos os tempos e entre todas as raças, e algumas delas, em determinados períodos foram até toleradas pela maioria das pessoas, e inclusive altamente estimadas. [1]
No entanto elas só começam a ser estudadas ao longo do século XIX. Inicialmente dentro da patologia geral. Somente aos poucos vão adquirindo uma conotação psiquiátrica. Portanto, mesmo antes da decisiva contribuição de Freud, em 1905, já se tentava a compreensão das perversões, como indica a existência de alguns trabalhos considerados clássicos.  E, apesar de Freud ter rompido com estas perspectivas anteriores, organizando uma síntese não mais descritiva, porém explicativa,[2] ele não desconheceu a importância destes discursos psiquiátricos, prévios à sua obra de l905. [3]
Durante muito tempo os perversos não tiveram interesse para a Medicina. Só eventualmente o médico era chamado, para opinar em alguns tribunais, à pedido dos magistrados. O Código Penal francês, bastante liberal, só punia os comportamentos sexuais que atentassem contra os bons costumes em razão de dois fatores: idade e consentimento. Existia crime em relação ao menor de idade, mesmo quando havia consentimento, ou em relação ao adulto quando havia violência, ou seja, na ausência de consentimento.  A lei, 
punia o escândalo, protegia os menores, e quanto ao mais, condenava apenas a violência cometida contra um maior que não desse seu consentimento; (...) Os cidadãos maiores podiam perfeitamente chegar ao orgasmo por todos os meios que julgassem apropriados, desde que os parceiros dessem seu consentimento. [4]
Daumezon, em seu artigo O encontro da perversão pelo psiquiatra, mostra como a sociedade lidava com a conduta perversa. Não se exigia que o médico a compreendesse ou desse conta dela. Ao contrário, nos países anglo-saxões, o perito devia “fundar seu raciocínio em elementos alheios ao delito.[5] No mais, os comportamentos perversos eram ignorados pela medicina. O discurso médico apenas afirmava que as múltiplas e aberrantes condutas sexuais eram variedades da alienação mental. Ali onde a doxa via depravação, a episteme da medicina construiria um novo saber, sobre a doença mental.
Somente  no final do século XIX, é que a psiquiatria começou a se interessar mais de perto pelas variedades, mais ou menos singulares, do comportamento sexual. Este novo saber psiquiátrico, que vai se construindo lentamente, fez surgir capítulos específicos dentro dos tratados de psiquiatria. Além disto contribuiu também para o estabelecimento das normas éticas. A libertinagem tinha sido deposta juntamente com a aristocracia. Apesar da nova sociedade não se interessar por grandes normatizações sobre suas maneiras de prazer, precisou aceitar a imposição de um certo moralismo por ocasião da retomada da religião. Nesta ocasião, o retorno à religião trouxe um conjunto de restrições à vida sexual. As novas regras se acompanharam da exclusão do prazer. Esta ética religiosa acabou assumindo um valor dogmático. A justificativa para a sexualidade estava na procriação. O prazer em si era considerado uma falha, uma falta, mesmo dentro do casamento. Sendo que a mulher podia ser salva do pecado do prazer, pela graça da frigidez. A regra era muito simples: o sexual lícito estava do lado da procriação dentro do casamento. Tudo o mais fazia parte do ilícito.[6] O desrespeito às normas acarretariam o castigo eterno. Se no início estas regras eram pregadas devido à sua utilidade, aos poucos elas foram se transformando no imperativo da moral sexual. Seu desrespeito deveria se acompanhar de consciência pesada e por sentimentos de culpa.
A licenciosidade continuava a ser tolerada apenas nas pessoas que detinham o poder. Fora da classe dominante, as regras precisavam ser seguidas com rigor. As mulheres, por exemplo, só podiam ter acesso ao prazer caso fizessem parte da alta burguesia. E, ainda assim, por intermédio do adultério. O prazer nas mulheres do povo só poderia ser conseguido através de aventuras amorosas ou da prostituição. O gozo tinha sido excluído inteiramente da instituição do casamento. O prazer adquiria inclusive uma conotação anti-social. O domínio do lícito, como já foi dito, era a procriação, com absoluta ausência de prazer, regido pelo sacramento do matrimônio. Para além estava o adultério da mulher. [7]
Com o passar do tempo, no domínio do ilícito desenha-se todo um conjunto de comportamentos sexuais,  classificados “num eixo que ia desde condutas ridículas até verdadeiros crimes”.[8] As perversões começam a se constituir, designando agora as práticas do sado-masoquismo, realizadas nas casas das ilusões, os travestismos, as sodomias, assim como práticas tidas como totalmente excêntricas e monstruosas. [9]
Qualquer que fosse seu tipo, as anomalias sexuais eram consideradas como repugnantes e lastimáveis.[10] Se bem que as perversões mais perigosas sempre pertenciam  às classes populares. Quando surgia na elite - o homossexualismo, por exemplo --, era considerado como um infortúnio, e nem sempre chegava a macular a honra das pessoas. Cabia agora ao psiquiatra, segundo Daumezon, a tarefa de informar ao juiz se “o impulso, ou melhor, a força que empurra o perverso ao seu ato, é mais poderosa, mais irresistível que a força que orienta a atividade instintiva ordinária”. [11]
A Igreja Católica não admitia originalidades em matéria de gozo. Estas diversidades sexuais eram vistas não como um excesso de luxúria, mas como uma revolta contra a natureza, muito próxima da heresia. E assim, passível de arder na fogueira. Já a burguesia era um pouco mais tolerante, aceitando que as anomalias poderiam surgir em função de exigências da natureza humana. [12]
Em resumo, a sociedade, antes de Freud, dissociava prazer e matrimônio. As fantasias eróticas dos homens recebiam um tratamento mais liberal. Porém o acesso ao prazer estava terminantemente proibido para as mulheres. As anomalias sexuais eram consideradas repugnantes ou perigosas, quando não ridículas e dignas de pena. Podia se chamar de perverso qualquer um que fosse movido por uma perversidade moral. Perversão  e pervertido eram  dois termos que remetiam à oposição entre o inato e o adquirido. E a sociedade não se interessava por tais desvios. Legou as perversões aos médicos, enquanto peritos de medicina legal; e mesmo então, a significação sexual não suscitava interesses.
Mas, a partir do metade do século XIX ocorre uma modificação. As singularidades da vida sexual apesar de exercerem um fascínio, precisavam ser controladas. A proposta moral de Sade não fora bem aceita. Na verdade Sade tinha sido proscrito como abominável. Mas a sociedade precisava de razões diferentes das razões religiosas para se defender contra os extremos de uma liberdade sexual. Deus estava morrendo e a religião já não servia mais para nada.[13] E as razões foram oferecidas pelo discurso médico, através do conhecimento positivista das perversões. Assim, a nova moral vai ser proposta pela medicina. De uma forma disfarçada, através do conhecimento científico. Só que a Medicina, ao se interessar pela sexualidade e seus desvios, acaba vinculando as singularidades do comportamento sexual com as variedades e singularidades da alienação mental.


[1] Otto Fenichel, Teoria Psicanalítica de las neurosis, p. 416.
[2] A explicação de Freud vai supor um psiquismo inconsciente, que se organiza através de defesas diante da situação edipiana, teoria que foi completada com as noções sobre a sexualidade infantil e seus estágios de desenvolvimento.
[3] Na verdade, Freud cita com frequência os trabalhos de Krafft-Ebing, Moll, Moebius, Havelock Ellis, Eulenburg e principalmente Hirschfeld. Eles constituem o pano de fundo contra o qual ergue seus Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade.
[4] G. Lanteri-Laura, Leitura das Perversões, p. 15.
[5] J. Daumezon, O encontro da perversão pelo psiquiatra, em La Perversion, p. 19.
[6] “A partir daí, grande parte da vida sexual ficou sob suspeita. (...) podia-se tolerar um certo prazer, sob a condição de que ele fosse bastante reduzido e de modo algum se transformasse num fim em si; mas ele conservava alguma coisa de suspeito; muito mais suspeito, talvez, era tudo aquilo que preparava para o prazer (beijos, carícias, denudamento, etc.), mas do qual as pessoas deveriam poder prescindir. Ruim, indiscutivelmente, era todo o resto, mesmo no casamento, ou até pior no casamento do que no adultério ou na prostituição.”[6] Lanteri-Laura,G., Leitura das Perversões,  p. 21.
[7] “Antes do casamento, o homem podia gozar, mas com mulheres de reputação duvidosa ou mulheres do povo, a quem, de qualquer maneira, ele não podia desposar, e a mulher devia permanecer virgem; no casamento ficou entendido que o marido não devia tratar sua esposa tal como as amantes, e que sua mulher só podia ter acesso ao gozo por vias adulterinas”.  Op. cit., p.  22
[8] Op. cit., p.  23.
[9] Como pedofilias, zoofilias, necrofilias, etc.
[10] Entre os crimes pelos quais Sade foi condenado, relacionavam-se práticas de sodomias. Ver a este respeito o livro de Eliane Rober Moraes, Sade, A Felicidade Libertina.
[11] Georges Daumezon, “ Encontro da perversão pelo psiquiatra” em La Perversion, p.19.
[12] Voltaire, por exemplo, criticava o casamento indissolúvel, e denunciava a hipocrisia da moral religiosa.que censurava o concubinato. Diderot também mantinha uma opinião semelhante: "Através de suas proibições , a religião e, com ela, a sociedade intolerante obrigavam os homens e as mulheres a satisfações vergonhosas e excusas; a liberdade acarretaria a generalização dos gozos sexuais naturais. Era preciso deixar as pessoas fazerem amor como quisessem”.   Op. cit., p. 28.
[13] Laplace, que havia examinado cientificamente a hipótese sobre a evolução do sistema solar, respondera a Napoleão que lastimava a ausência de Deus, em sua explicação: “Magestade, não tive necessidade desta hipótese” . G. Politzer, G. Besse,  e M. Caveing , Princípios Fundamentais de Filosofia, p. 126.