quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Perversão em Álbum de Família



__________________________Perversão em Álbum de Família

Elza Rocha Pinto

Nossa intenção neste texto não é, em hipótese alguma, realizar um estudo sistemático sobre o conceito de perversão. Muito menos confrontar posições, pois estaríamos nos desviando de nossa questão principal. O foco de nosso interesse se centra sobre a leitura de Álbum de Família. Como esta peça está crivada de fenômenos perversos, achamos melhor introduzir o conceito para melhor entendimento dos futuros textos. Não pretendemos, portanto, discutir o termo perversão. No entanto, entendemos que seria necessário fazer pelo menos uma apresentação esquemática de alguns conceitos chaves da linguagem psicanalítica sobre as perversões.  Ou seja, vamos tentar colocar os pontos principais sobre a teoria das perversões. Não pretendemos nos estender aos aspectos relacionado às suas diferenças. O fetichismo, o travestismo, o voyeurismo e o sado-masoquismo só serão tratados dentro desta perspectiva geral. Consideramos tais diferenciações fundamentais para a teoria psicanalítica, porém elas ultrapassariam amplamente nossa atual questão. Por isto, aqui, só vamos reter aquilo que se relacionar de um modo mais direto com o tema que nos ocupa. Em textos anteriores, já indicamos como as peças de Nelson produzem personagens densos, e ricos em emoções, de forma a permitir exemplificar todo o vasto terreno destes desvios.
Na análise que pretendemos fazer e publicar posteriormente, como recurso de interpretação, vamos lançar mão de algumas categorias psicanalíticas que poderão refletir melhor o caráter e o perfil psicológico dos personagens de Álbum de Família. Para tanto se faz necessário o exame de alguns dos conceitos freudianos sobre a) desenvolvimento da libido, b) sobre a perversão e c) sobre algumas de suas variações, como o sadismo e o masoquismo. O foco das perversões, e especificamente, do sadismo, fornece um excelente terreno sobre o qual fundamentar nossa análise da peça, uma vez que a crueldade é um dos temas favoritos de Nelson Rodrigues, sendo bastante recorrente entre seus personagens. Para confirmar esta suposição, ao examinar a peça Álbum de Família, devemos tornar claro o significado de alguns termos.
Álbum de Família é um berço de perversões. Esbarramos com elas praticamente a cada página. Porém achamos que a exposição que se segue será mais do que suficiente para enquadrar os personagens. A relação entre Jonas e Senhorinha,  personagens principais da peça, é nitidamente recortada no terreno das perversões, tingindo-se com um colorido sado-masoquista.
A priorização destas características, no entanto, não ignora o fato de que  Álbum de Família caiu no “excesso”, tanto ao gosto de Nelson Rodrigues. E isto vai nos permitir encontrar também personagens com características fetichistas, voyeuristas, exibicionistas. 
Para a análise que pretendemos realizar, importa, pois, a exposição da teoria geral sobre as perversões. Para isto vamos partir das considerações traçadas por Freud em seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Freud vai se referir às perversões em outros ensaios,[1] mas este livro pode ser considerado como o epicentro de sua teoria sobre a sexualidade. Tomando todo cuidado para não nos prolongarmos muito neste assunto, gostaríamos de lançar mão de outras contribuições.[2] À título de mera curiosidade, achamos que caberia também  desdobrar a questão da etimologia da palavra perversão, assim como apresentar uma breve história de como a perversão terminou por se estabelecer dentro dos domínios da medicina.



[1] Em 1919 Freud desenvolve pontos de vista sobre o masoquismo, em Uma criança é espancada; e volta a examinar esta temática em O problema econômico do masoquismo, em 1924. O homossexualismo é examinado em 1920, A psicogênese de um caso de homossexualidade numa mulher, e em 1922 com Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, paranóida e homossexualidade. O Fetichismo é de 1927.
[2] Como a contribuição de O. Fenichel (s/d ), J. Chazaud (1973) e P. Valas (1990), entre outros. Além disto, gostaríamos de deixar aqui algumas indicações para futuras consultas. Na fase em que realizamos  uma revisão bibliográfica sobre a leitura psicanalítica de romances, poemas e peças, encontramos alguns títulos que se referiam especificamente à questão das perversões. Como por exemplo, The Sadomasochistic Homotext: Readings in Sade, Balzac, and Proust por Saylor, Douglas B, publicado em 1992, ou  como o artigo de Lee Edelman, Plasticity, paternity, perversity: Freud’s Falcon, Huston’s Freud, publicado em American Imago, em 1994. Estas e outras referências poderão ser encontradas relacionadas no texto Psicanálise e Arte - Levantamento Bibliográfico, neste blog.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Adolescência em Crise

Elza Rocha Pinto



Adolescência em Crise... - Trabalho escrito em 1994, como texto complementar para a cadeira Psicologia da Educação I, lecionada na Faculdade de Pedagogia da UFRJ. 
Publicação eletrônica original, em 1996, através da Home Page Página Psi,  no endereço Web do Laboratório de Computação Científica (LNCC):   http://www.lncc.br/elzamar/psypage 


A adolescência se configura por um recorte na cronologia do desenvolvimento que, no Brasil, compreende um período entre 12 e 18 anos de idade. Por outro lado, podemos dizer que é o período que acontece após a infância, começando com a puberdade. Caracteriza-se por uma série de transformações, tanto corporais quanto psicológicas que podem se estender até os 21 anos de idade.

O desenvolvimento normal passa por períodos de crise, e a adolescência é uma destas crises vitais. Erikson (1976), definindo o sentido não patológico desta palavra acaba por designar a adolescência como uma crise normativa. Ou seja, o adolescente atravessa por um processo onde ele está procurando se organizar, e se estruturar de uma forma diferente.

 A adolescência é uma fase bastante conturbada, marcada por intensas modificações (físicas e emocionais). A necessidade de reformular o papel e a identidade de criança constitui a modificação mais importante deste momento.

 Um das tarefas que mais transtorna o adolescente prende-se à formação da sua identidade sexual. Em poucos anos, o adolescente perde seu corpo infantil, com o qual estava acostumado enquanto criança, e ganha acesso à sexualidade do adulto. Uma sexualidade ainda muito misteriosa, cheia de segredos e de tabus, apesar da maior abertura dos tempos modernos. E toda esta transformação física do jovem é realizada em um curto espaço de tempo.

 Depois de atravessar a turbulência da primeira infância, que também marca grandes modificações e descobertas, a criança entra num período relativamente tranquilo, que Freud (1905) vai chamar de latência. Latência não porque a sexualidade ou o desejo estejam adormecidos, ou latentes. Porém, depois de ter conseguido elaborar as tensões e os conflitos dos anos precedentes, a criança consegue entrar em uma fase de relativa estabilidade e equilíbrio. Ao conjunto das fortes emoções e impulsos da primeira infância, que se concentra em torno dos pais, Freud designou como Complexo de Édipo. Sua resolução se dá através da renúncia do desejo pelo genitor do sexo oposto, com a consequente aceitação do tabu do incesto. O que importa aqui é que a criança realiza com sucesso a consolidação do mecanismo de repressão das fantasias e pulsões edípicas. Os mecanismos da sublimação entram em ação. Com isto, seu ego sofre um processo de ampliação, adequando-se mais às exigências da realidade externa, e a criança entra numa crescente capacidade de simbolização. Estes acontecimentos encerram a primeira infância, dando início a momentos de menor tumulto emocional. Porém nenhum dos aspectos deste processo anterior permanece latente. Estão todos presentes, embora com diferentes intensidades.

 Com um melhor domínio sobre seu próprio corpo, e com os grandes problemas emocionais sob contrôle, a criança começa a se dedicar a outras aventuras. Ela se desprende do grupo familiar, e cria sua nova identidade de escolar. Entra em contato com aquilo que poderíamos chamar de sua segunda realidade. O mundo institucionalizado da escola, e da aprendizagem, passam a ocupar uma grande parte de seus interêsses. Suas brincadeiras passam a ser mais socializadas, e através dos jogos de papéis, a criança vai se preparando para o futuro, incorporando algumas características dos personagens que representa em suas brincadeiras. Ela forma assim uma auto-imagem e uma identidade que vão acompanhá-la até a puberdade. Esta auto-imagem é psíquica, e corporal. A criança sabe quem é, e sabe como é seu corpo. Ela sabe seus papéis, e os desempenha com clareza dentro dos limites que a família e a escola determinam. Mesmo quando a situação é negativa, a criança possui uma identidade que ela domina. Ela pode se saber uma criança rejeitada pelos pais, preterida em função de um outro irmão que detém as afeições da família. A criança pode passar por momentos de intenso sofrimento e tristeza.Contudo, são situações que ela já conhece, e que não constitem mais novidades.

 Porém, com o início da adolescência, todo este equilíbrio se desmorona. Podemos dizer que a adolescência marca o auge do processo de maturação biopsicossocial do indivíduo. É preciso tentar compreender este processo de uma forma global, analisando de modo integrado os aspectos biológicos, psicológicos, e sociais que marcam a entrada na adolescência. Alguns autores costumam fazer uma distinção entre puberdade e adolescência. Até então uma criança, o adolescente enfrenta-se com rápidas modificações físicas que marcam a sexualidade adulta. Seu corpo cresce, e se desenvolve. Mas a imagem corporal nem sempre acompanha tais mudanças. A cabeça não acompanha o corpo. O esquema corporal internalizado, ainda permanece infantil. Durante um bom tempo vamos encontrar uma cabeça de criança em um corpo já amadurecido. Emocionalmente imaturo, o jovem se assusta com todas as intensas modificações que está enfrentando.

 Dentro da perspectiva psicanalítica, o adolescente vai reviver o Complexo de Édipo. Durante a puberdade, quando incrementam-se as pulsões instintivas, a libido continua orientada fundamentalmente para as figuras parentais, ou seja, a problemática edípica vai se reproduzir no jovem adolescente, porém com características próprias, conforme afirma Eduardo Kalina (1979), achando que este novo estado é muito diferente dos anteriores. Arminda Aberastury (1983) preocupada com os grandes contrastes mostrados pelo adolescente afirma que "as modificações psicológicas que se produzem neste período, e que são o correlato de modificações corporais, levam a uma nova relação com os pais e o mundo, o que só é possível se se elabora lenta e dolorosamente o luto pelo corpo de criança, pela identidade infantil, e pela relação dos pais da infância". A estes lutos, Eduardo Kalina acrescenta mais dois: o luto pelo renascimento e o luto pela exogamia. Seguindo esta trilha da psicanálise argentina, passamos a demarcar algumas questões cruciais para a adolescência, entre elas a da sexualidade. O adolescente precisa redefinir sua imagem corporal, pois perdeu seu corpo infantil e juntamente com isto, perdeu também seu papel de criança, quando então mantinha a ilusão de uma sexualidade única. Os corpos até então pouco diferenciados, com o surgimento das características sexuais secundárias, ganham identidades bastante definidas. O menino e a menina se transformam no homem e na mulher. As preocupações com o próprio corpo tornam-se bastante presentes. A altura, por exemplo pode mobilizar o menino que demora a crescer, ou a menina que fica muito alta. O excesso de peso diminui a auto-estima das meninas que passam a se sentir pouco atraentes. Por outro lado, dependendo de sua distribuição, a gordura pode sugerir ou qualidades infantis no menino, ou então, na menina, sugerem uma precocidade sexual física sem nenhum respaldo no desenvolvimento emocional. Os meninos cujo excesso de gordura se localiza nos quadris parecem mais femininos, o que é causa de grandes constrangimentos. As famosas espinhas da adolescência, ou um nariz um pouco maior, podem ser motivos para grandes depressões.15 Esta ansiedade em relação aos defeitos externos e visíveis, esconde toda um outro tipo de problemática. Os defeitos servem de anteparo para preocupações e atividades vinculadas com a sexualidade. É como se as espinhas, o nariz, ou a gordura, ao atrair os olhares dos outros, pudessem trair os pensamentos e atividades secretas do adolescente.

 O adolescente precisa ganhar independência do grupo familiar, com o objetivo de constituir sua identidade adulta. Assim a adolescência marca a intensificação do processo de separação/individuação, onde o vínculo de dependência com os pais da infância, até então aceita como normal passa a ser questionado. O adolescente perde seu estatuto de criança e, simultâneamente, perde o vínculo que mantinha com os pais de sua infância. A elaboração deste processo, em nossa sociedade, não se faz sem sofrimentos. A escolha de uma roupa pode ser motivo de semanas de mutismo de parte à parte. Claro que, por trás destes conflitos por fatos triviais, também está a dificuldade dos pais em aceitar o crescimento dos filhos. Para piorar este estado de coisas, o adolescente flutua entre a nova personalidade e a antiga, de criança, o que confunde mais ainda os adultos que lidam com ele, pois estes aparentemente esqueceram de suas inseguranças adolescentes. O adolescente parece um io-iô, que vai e vem em suas decisões e idéias, em poucos segundos, causando às vezes bastante estranheza no ouvinte mais despreparado. Uma jovem de 16 anos pode dizer com toda seguranca sobre uma ex-amiga, que esqueceu de convidá-la para um vídeo em sua casa: "Ela é desprezível, interesseira, não tem nenhuma personalidade. Eu queria mesmo me afastar dela. Eu já não aguentava mais. Ela vive se humilhando. Todo mundo gosta dela, mas é porque ela se humilha. Todo mundo ri dela. Ela diz um monte de bobagem, e nem liga de pagar mico". Isto é dito com muita intensidade, e com um tom sério e preocupado; a adolescente passa a fazer planos em outras direções, começa a falar em outros assuntos como se aquela resolução fosse final e definitiva. Porém, dois ou três dias depois, a futura ex-amiga volta a ocupar o status irrepreensível de amiga predileta, confidente e companheira de todas as horas. Estes comportamentos contraditórios, estas multiplas personalidades do adolescente podem confundir muito, não apenas os seus pais, como outros adultos.

 O adolescente entra em processo de construção de uma escala de valôres própria. Isto é necessário para quebrar a simbiose até então mantida com seu grupo familiar, e marcar uma posição individualizada perante o mundo. É frequente ouvirmos os adolescentes criticando alguns amigos por falta de personalidade. Na verdade é ele quem tem medo de não conseguir se afirmar como uma pessoa independente, caso não consiga desenvolver seus pontos de vista próprios. Além disto a habilidade recém-adquirida - da inteligência abstrata - , faz com que o adolescente entre numa espécie de sindrome cartesiana, onde ele vai duvidar de tudo. O domíno da lógica proposicional implica a possibilidade de raciocinar com hipóteses abstratas. Por isto o adolescente se envolve apaixonadamente em discussões que se referem à idéias, como liberdade, individualidade, Deus, igualdade, etc. O cogito adolescente coloca em cheque todos os valôres familiares. Extremamente crítico, o adolescente vai reformulando os padrões políticos, religiosos e morais de seus pais. Se o pai é muito conservador, ele pode se tornar um militante revolucionário. E esta dialética acaba provocando tremendas brigas e discussões familiares. O adolescente sempre consegue se incluir em um grupo, através do qual ele procura, e encontra, padrões de identificação. A turma ou galera funciona como um holding para suas inseguranças. Na verdade, o adolescente renega os valôres familiares; porém como ainda não constituiu seus próprios valôres, ele precisa de um modelo sobre o qual se apoiar, até poder organizar seu próprio código de ética. Daí a importância deste grupo de iguais. O grupo fornece uma espécie de identidade coletiva, que serve de amparo durante o processoda construção da nova identidade. Pode-se até dizer que a adolescência é um fenômeno de bando. Fala-se igual, pensa-se igual, veste-se a mesma moda, possuem-se os mesmo mitos, temem-se os mesmos micos. Esta personalidade grupal vai contribuindo para sustentar o adolescente, servindo como uma capa defensiva e dando-lhe mais segurança. Quanto à especificidade do Édipo adolescente, as principais diferenças podem ser resumidas da seguinte forma: a) Desenvolvimento da capacidade genital definitiva; b) Fantasias edípicas com características perverso-polimorfas. c) Conteúdos inconscientes mais próximos da consciência. d) O surgimento do processo de simbolização, e do raciocínio lógico-abstrato. São estas diferenças que tornam os sentimentos do Édipo altamente persecutórios, impregnados por uma intensa culpa e por temor de graves castigos. Isto porque o adolescente se percebe como podendo realizar o incesto, comentendo o crime edípico, perigo que não existia nas fases anteriores.

 Todo esta trama de desejos, angústias e culpas se alia, em virtude das mudanças fisiológicas da puberdade, a um grande aumento de energia, fato que muitas vezes empurra o adolescente à descarregar estas tensões através da ação. Por isto são comuns os actings outs, onde eles agem impulsivamente, de forma que, por vezes, par lógica, pois podem envolver brigas físicas ou mesmo acidentes.

 Nas moças, o ato supremo de desafio é o comportamento sexual e a promiscuidade, ao passo que, nos rapazes, é, provavelmente, um ato agressivo, como o roubo. A masturbação também é uma válvula de escape, para toda esta energia. Dolto (1989) lembra que "a masturbação é indispensável no momento da puberdade, e é importante não se sentir culpado".20 Porém, a masturbação não satisfaz inteiramente; utilizada como uma forma de descarregar a pressão das pulsões, só oferece uma saída através do imaginário. As fantasias que são produzidas neste momento envolvem encontros românticos, e paixões intensas. Mas, na puberdade os garotos e garotas sentem necessidade de encontros verdadeiros e reais. O adolecente precisa construir seu caminho em direção à exogamia, como diz Rascovski (1979). Os jovens precisam se afastar da família, precisam manter longe sua intimidade; dentro da geografia de seu grupo de iguais eles contam tudo, enquanto que os pais, em geral, são sempre os últimos a saber do que se passa. Mas este afastamento tem seus motivos, pois esta "é a idade da recomposição da interdição do incesto. E se os pais se misturam numa história amorosa de seu filho, ela fica então, beirando o incesto". 21 Contra esta ameaça dos impulsos sexuais e agressivos surgem duas formas de defesa, citadas por Anna Freud: o ascetismo e a intelectualização. O ascetismo constitui-se na tentativa de negar completamente os impulsos instintivos.Desta forma, o jovem pode se entregar de corpo e alma a um movimento religioso. Da mesma forma, a intelectualização pode ser usada como forma de defesa contra os impulsos sexuais e agressivos, e através dos processos mentais, o adolescente procura se livrar da culpa, e proteger-se da vergonha de ceder a tais impulsos. Mesmo quando contam com toda a assistência por parte de seus familiares, algumas vezes o adolescente sente-se tão despreparado, frente aos problemas externos e internos para os quais precisa encontrar uma solução, que sua personalidade chega a se desestruturar em episódicos fenômenos de desvio, que são mais ou menos tolerados pela sociedade. Erikson (l976) refere-se a estes fenômenos dizendo que é como se a sociedade concedesse aos adolescentes uma espécie de moratória social. Knobel (l98l) chega a afirmar que a adolescência constitui-se naquilo que ele chama de síndrome da adolescência normal. Isto porque, em paralelo ao desenvolvimento daqueles comportamentos já mais socialmente aceitos (a mesma moda, a mesma gíria, o grupo de iguais, as rebeldias sem causa, etc.), não são raros os comportamentos psicopáticos (roubos, agressões violentas, estupros), as intensas depressões (com episódios de anorexia), a promicuidade sexual, os suicídios (explícitos ou encobertos), as despersonalizações e mesmo quadros psicóticos agudos.

 Os processos acima descritos, nem sempre são vivenciados com as mesmas características.24 O início cronológico da puberdade é universal, coincidindo em praticamente todos os povos. No entanto a adolescência, apesar de ser também ser um fenômeno universal, mostra variações em função do ambiente sócio-cultural do indivíduo. Existem marcantes diferenças, principalmente quando levamos em conta realidades mais sub-desenvolvidas. Quando falamos de adolescente estamos nos referindo, de modo geral, aos jovens de classe média, que não precisam se preocupar com sua sobrevivência imediata. Talvez, como se pergunta Luiz Carlos Osório (1989), a adolescência seja um privilégio das classes mais abastadas:

Este período de moratória ou preparação para a idade adulta é um
"luxo" não permitido àqueles que estão empenhados na encarniçada luta por sua
subsistência. 25
 De fato, na faixa menos favorecida pela sorte, as crianças
parecem experimentar apenas a puberdade, "enquanto inevitável processo de
transformações corporais", sem poder vivenciar o processo de luto, através do
qual o adolescente elabora  as perdas infantis, e  adquire a identidade
adulta, através da assimilação de novas pautas de comportamento e de
pensamento.



Para tanto, é preciso dispor de um espaço-tempo a que não têm acesso os que
estão confinados pela geografia da fome e da miséria.

Compartilhando deste ponto de vista, queremos esclarecer que a crise de identidade, e as características às quais estamos nos referindo, pertencem ao adolescente dos extratos sócio-econômicos mais altos, cujas famílias providenciam par aeles a alimentação, vestuário, educação e saúde, e que podem assim se dedicar à super-estruturas psicológicas mais refinadas.

 Referências Bibliográficas
ABERASTURY, Arminda e colaboradores - Adolescência. Porto Alegre: Artes Médicas, 2a. Ediçào, 1983
ABERASTURY, ARMINDA e KNOBEL, Maurício - Adolescencia normal - Artes Médicas - P.A. - l98l
ARIÈS, Philippe - História Social da Criança e da Família. Zahar Editora, Rio de Janeiro - 1981
CAPLAN, Gerald - Princípios de Psiquiatria Preventiva. Comitê sobre a Adolescência do grupo para o adiantamento da psiquiatria - Dinâmica da Adolescência - Aspectos culturais, biológicos e psicológicos. São Paulo: Editora Cultrix, 1968
DRUMMOND, Murillo Côrtes - Reprodução e Adolescência - lº Congresso Nacional sobre a Saúde do Adolescente - Academia Nacional de Medicina - l99l
ERICKSON, Erik J. - Infância e Sociedade - Zahar Editora, RJ. - l976
FREUD, Anna - Infância normal e patológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971
FREUD, Anna - O Ego e os mecanismos de defesa. Rio de Janeiro: Biblioteca Universal Popular, 1968
FREUD, Sigmund - Tres ensayos para una teoria sexual (l905) - "in" Obras Completas, Tomo II, pag. 1.169 - Editorial Biblioteca Nueva, Madrid - Tercera edición, s/d.
KALINA, Eduardo - Psicoterapia de Adolescentes - Teoria, Técnica e Casos Clínicos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 3a. Edição, 1979.
OSÓRIO, Luiz Carlos - Adolescente Hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
PINTO, Elza Rocha - A Ética Perversa de Album de Família, Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da UFRJ, 1995.
RAPPAPORT, Clara, FIORI, Wagner da Rocha e DAVIS, Clara - Teorias do Desenvolvimento - Conceitos Fundamentais. S. Paulo: E.P.U. - l98l


Notas
 1. A palavra crise vem do grego krisis, que significa ato ou faculdade de distinguir, escolher, decidir ou resolver. E atualmente já perdeu qualquer significado negativo.
 2. G. Caplan com sua teoria da crise, contribuiu para tornar claro que tais momentos fazem parte do desenvolvimento normal, e que apenas apontam para passagens em que, por circunstâncias internas (adolescência, climatério,etc) ou externas (acidentes, mortes, mudanças, aposentadoria, casamentos, divorcios, etc.), a pessoa é obrigada a rever e renovar seus padrões de ajustamento ao meio, uma vez que suas antigas soluções, já não são mais adequadas para a nova situação. A crise pode fortalecer ou fragilizar a personalidade. Tudo depende de como a pessoa conseguir atravessar e elaborar aquela situação nova. Gerald Caplan, Princípios de Psiquiatria Preventiva.
 3.Vários autores dedicaram-se ao estudo da adolescência. Neste artigo estamos privilegiando o pensamento psicanalítico, que muito contribuiu para ampliar a compreensão do psiquismo adolescente. Podemos citar os trabalhos de August Aichorn, Donald Meltzer, Eduardo Salas, Elizabeth Geeler, Françoise Dolto, Helene Deutsch, James E. Anthony, L. A. Spiegel, M. Gitelson, Melanie Klein, Rudolf Ekstein, Peter Blos, Sigfried Bernfeld, Sara Jarast, Suzana Ferrer, e Sandor Lorand, entre outros. 4. Ao contrário, a atividade sexual se desenrola através da masturbação e de brincadeiras hetero e homossexuais. Até o mesmo o cancioneiro popular já consagrou as famosas brincadeiras de médico, ou os "troca-troca" que marcam a segunda infância. Rita Lee, por exemplo, já gravou uma música que aborda estas vivências infantis.
 5. Esse nome se aplica ao conjunto de idéias e afetos relacionados à situação triangular, que situa a criança entre seu desejo pelo genitor do sexo oposto, e a rivalidade com o genitor do mesmo sexo. O nome é uma referência ao personagem central de Édipo-Rei, tragédia de Sófocles, onde o adolescente mata seu pai Laio e depois de decifrar o enigma da esfinge, acaba se casando com sua mãe Jocasta, tornando-se rei de Tebas.
 6. Em A História Social da Criança e da Família, Philippe Ariès mostra a constituição da instituição da escola e do escolar através da história. 7. São frequentes as brincadeiras de casinha, de professor e aluno, de vendinha ou lojas, entre as meninas, enquanto os garotos brincam de polícia e bandido ou encarnam alguns dos super-heróis mais admirados.
 8. Uma paciente minha, em análise, costumava lembrar de sua infância dizendo: "Eu sabia que meus pais não gostavam de mim. Mas eu já estava acostumada com isto. Eles eram assim, e eu não podia fazer nada. Ou bem eu aceitava isto, ou bem eu acho que teria enlouquecido. O fato é que eu me acostumei. Depois de algum tempo eu não me surpreendia mais quando os melhores presentes eram para minha irmã. Eu já esperava que isto fosse acontecer, e já não sofria mais".
 9. A puberdade é uma palavra que vem do latim pubertare, e que quer dizer sinal de pêlos, barba, penugem. E normalmente é reservada para referir-se às modificações biológicas que acontecem entre os 12 e os 15 anos de idade. Já adolescência, deriva-se do latim adolescere, que significa crescer. E em geral aplica-se aos fenômenos e transformações psicossociais que acompanham as modificações físicas. Peter Blos organiza a adolescência em três grupos distintos: l) adolescência inicial, compreendendo a faixa etária dos onze e os treze anos até os quinze anos; 2) adolescência mediana, entre os quinze e os dezessete anos; 3) adolescência tardia, entre os dezessete e os vinte anos. Eduardo Kalina, Psicoterapia de Adolescentes - Teoria, Técnica e casos clínicos, p. 12.
 10. "A puberdade, como a própria etimologia do termo sugere, inicia-se com o crescimento dos pêlos, particularmente em certas regiões do corpo,tais como as axilas e região pubiana, tanto nos meninos como nas meninas, como resultado da ação hormonal que desencadeia o processo puberal; estas e outras modificações corporais que então ocorrem dão-se principalmente a partir do desenvolvimento das gônadas, ou seja, dos testículos nos meninos e dos ovários nas meninas. É esse amadurecimento das células germinativas masculinas e femininas que possibilita o surgimento de dois eventos que corroboram o advento da puberdade: a menarca ou primeira menstruação, na menina, e a primeira ejaculação ou emissão de esperma no menino, indícios exteriores da capacitação biológica para as funções de procriação. (...) Nem sempre o início da adolescência coincide com o da puberdade; tanto pode precedê-la como sucedê-la. E se o advento da puberdade tem a assinalá-lo evidências físicas bem definidas, o mesmo não ocorre com a adolescência". Luiz Carlos Osorio, Adolescência Hoje, p. 11.
 11. Kalina está se referindo não apenas ao Complexo de Édipo freudiano, que se passao por volta do quinto ou sexto ano de vida, como ao Complexo de Édipo kleiniano, responsável pelas intensas emoções e angústias relacionadas aos primeiros meses de vida.
 12. Arminda Aberastury, Adolescência, p. 24.
 13. Com a puberdade existe um brusco incremento das pulsões. As vivências pelas quais o adolescente passa neste instante são, segundo Kalina, como um renascimento: "Têm esta conotação psicológica em razão de reproduzirem o modelo de trauma do nascimento e os mecanismos que o sucedem - esquizo-paranóides, confusionais e depressivos - mas com outras características, já que as condições em que se encontra o adolescente para enfrentar o mundo adulto são completamente diferentes daquelas de que dispunha ao nascer. Refiro-me especialmente à crescente capacidade física, que não é acompanhada de modo paralelo pela psicológica, que exige um período de maturação muito mais prolongado. É por isso que surge o luto pelo renascimento no mundo do adulto, que em todos os casos - em alguns com muitíssima intensidade - o adolescente tenta negar mediante a utilização dos mecanismso maníacos (onipotência, negação, idealização, ataque ao objeto bom, etc.). Eduardo Kalina, Psicoterapia de Adolescentes - Teoria, Técnica e casos clínicos, p. 13/14. 14 Desenvolvido por Andrés Rascovsky, e que se refere ao fato do adolescente, na revivência do Édipo, "ter que aceitar o tabu do incesto, deslocando seus interesses sexuais para outras figuras substitutivas", Eduardo Kalina, Psicoterapia de Adolescentes
 15. Uma adolescente de 14 anos, descontente com o volume e peso de seus seios, andava sempre curvada, como forma de esconder-se. Sentia-se tão pouco atraente que não conseguia ir à praia, com vergonha de seu corpo. Por isto fez uma plástica. Depois disto passou a se queixar da diferença entre um seio e o outro, dizendo que não sabe como vai poder se casar, porque ela jamais teria coragem de tirar sua roupa diante do marido, a não ser no escuro, pois continua tendo vergonha de seu corpo.
 16. Lembramos a estranha relação que se formou entre Nelson Rodrigues e seu filho Nelsinho. O escritor era um dos intelectuais brasileiros mais afinados com a ditadura militar, crítico apaixonados do comunismo; responsável por algumas expressões que desmoralizavam a esquerda, como "padre de passeata", "esquerda festiva", e outras mais; um homem que diante da "passeata dos cem mil", conseguia desqualificar o movimento escrevendo que "na primeira passeata sentada da história" não vira "um operário, um preto, um desdentado" desfilando na avenida Rio Branco. Já Nelsinho, seu filho adolescente, liga-se ao MR-8 (grupo radical de esquerda que defendia a luta armada), cai na clandestinidade com o codinome de "Prancha", para se dedicar à guerrilha urbana durante os anos 70. Apesar de se darem bem, o filho desenvolveu posições completamente contraditórias e divergentes daquelas de seu pai. E.R. Pinto, A Ética Perversa de "Album de Família".
 17. Falando sobre este período de contradições, sobre as confusões e ambivalências que acabam caracterizando constantes atritos com o meio familiar e com o ambiente, Arminda Aberastury acaba reconhecendo que a dificudade também é dos pais: "Porque também o pai tem que desprender-se do filho criança e evoluir para uma relação com o filho adulto, o que lhe impõe muitas renúncias de sua parte. Ao perder para sempre o corpo de seu filho criança, vê-se enfrentando a aceitação do devenir, do envelhecimento e da morte. Deve abandonar a imagem de si mesmo, que seu filho criou, e na qual se instalou. Agora já não poderá funcionar como líder ou ídolo e deverá, ao contrário, aceitar uma relação cheia de ambivalências e de críticas." Arminda Aberastury, Adolescência, p. 16
 18."A gíria é um subproduto da cultura adolescente". Luiz Carlos Osório, Adolescente Hoje, p. 19
 19. Os comportamentos agressivos na adolescência acabam contribuindo para os acidentes , que são a principal causa de morte entre os quinze e os dezenove anos. Na década de sessenta os estudos realizados dentro desta faixa etária, indicavam entre as causas de morte mais frequentes, os desastres de automóvel, os afogamentos, as quedas e acidentes com armas de fogo. 20. Françoise Dolto, Dialogando sobre crianças e adolescentes, p. 182.
 21. Op. Cit., p. 182.
 22. Dizia uma paciente minha em análise: "Quando eu era adolescente, não sei por que, me dediquei à religião católica. Eu só fazia estudar e rezar. Até me chamavam de freirinha. Eu não perdia a missa das sete. E depois voltava à tardinha para a missa das dezoito horas. E rezava horas a fio, desfiando meu rosário. Era uma maluquice total. Às vezes eu ia para a igreja, durante a semana, e ficava lá, sozinha, olhando para a figura do Cristo pendurado na cruz. E achava ele lindo". Ela não fazia mais nada, a não ser rezar e estudar. A sexualidade ficava encarcerada por novenas intermináveis. Ela não se permitia qualquer atividade de masturbação, e muito menos qualquer tipo de namoro ou sedução.
 23. A mesma jovem citada anteriormente, que se dedicava tão ardorosamente aos seus rosários, entregava-se também apaixonadamente aos seus estudos: "Eu era a melhor aluna da classe. Eu tinha sempre que tirar dez. Uma vez, eu me lembro, eu tirei segundo lugar com a professora de matemática. Eu chorei a tarde inteira por causa disso". Ela havia tirado apenas 9.8, e esta decepção desarmou sua defesa tão bem estruturada, pois a nota de matemática, o fato de ter tirado apenas o segundo lugar colocou a jovem diante da possibilidade da falha e do erro. Se isto acontecia nos estudos, então podia acontecer também em sua vida sexual. Ela constatou que podia ceder às tentações físicas do corpo.
 24. Ver, a este respeito, o capítulo 2, Fatores Culturais na Adolescência , em Dinâmica da Adolescência - Aspectos culturais, biológicos e psicológicos, livro realizado pelo Comitê sobre a Adolescência do grupo para o adiantamento da psiquiatria.
 25. Luiz Carlos Osório, Adolescente Hoje, p. 21. 26 Op. Cit, p. 21 y