segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A Inspiração na Obra de Arte



                    __________________ A Força da Inspiração


Elza Rocha Pinto


Não tenho nem teatro nem palco que não o teatro de meu inconsciente e de meu coração. [1]
                                   Artaud
Tendo o sofrimento como fonte, o artista vai sendo levado a criar por um impulso. Impulso que normalmente é chamado de inspiração. Pode-se então dizer, como Adamor Silva,  que no artista, a neurose funciona como um agente de libertação, impondo nele a necessidade de criar. “É uma neurose criadora onde são amenizadas as animalidades sexuais e homicidas”, diz ele. E conclui que a neurose é a grande estimulante da arte. “Quanto mais neurotizado o artista, mais fecunda a sua produção”.[2]
Os gregos diziam que esta qualidade tinha origem divina. O poeta só tinha o dom de cantar desde que inspirado pelas Musas.[3] Então ele se tornava semelhante aos deuses. A inspiração é sentida como uma necessidade, um impulso inadiável que domina a pessoa como se fosse uma força da natureza;  é sentida como exterior à pessoa. Por isso os gregos imaginavam que o poeta fosse possuído  pela divindade.
O fenômeno da inspiração é valorizado dentro de quase todas as artes, a partir do século dezoito.  A inspiração será  cada vez mais prestigiada, “até atingir o momento em que o sonho e a fantasia são representados e traduzidos em palavras”.[4] Os surrealistas admiravam o processo da associação livre da psicanálise, e se utilizaram desta técnica como uma espécie de treinamento para o pensamento criador. Eles procuravam, assim, induzir a inspiração. Como lembra Kris (1968): “a psicanálise e suas descobertas atuaram como uma força social sobre a arte e o artista”. [5]
Esta antiga experiência do sagrado é designada, na modernidade, como transe, espécie de automatismo psíquico que não se controla. Foi o que fez  Guerra Junqueiro[6] achar que ele só conseguia escrever poemas quando seus versos assim o queriam. Lamartine chega a negar sua participação na inspiração: “Eu não penso. São minhas idéias que pensam”.[7] Foi ainda a constatação desta força da inspiração, equivalente a um surto focalizado e limitado, que possui o artista no momento da criação, que levou Platão a afirmar que quando os poetas “conservam o uso da razão eles são incapazes de produzir algo de maravilhoso ou de sublime”.[8] Ou o que levou Porto-Carrero (1933) a descrever o momento do transe inspirador de forma tão expressiva:
O momento da inspiração é uma crise de angústia. Há qualquer coisa que demanda exprimir-se; ele não sabe o que seja - é qualquer coisa inconsciente. Enquanto não a exprime, há como que aquele quadro do “estado de necessidade” em que ficam os morfinômanos privados de tóxico e ansiosos por ele... [9]
Impulso irresistível, a inspiração é uma obrigação. Como dizia  Aristóteles (1966), só a catarse vai permitir o alívio. Na modernidade, seus seguidores dentro da psicanálise confirmam:
Uma vez realizado o transfert sobrevirá o alívio psíquico, acompanhado de uma sensação de bem estar, euforia. Porque o momento criador é, para alguns, uma crise de angústia, mas também uma catarse. Desde que satisfaça esta necessidade, tudo cessará como se acordasse de um pesadelo e depois viesse o alívio.  [10]
Tomado pela inspiração, o artista é um rebelde que se afasta dos caminhos que ele próprio traçou. São inúmeros os depoimentos de como os personagens dominam seu autor, de como o enredo se impõe à vontade do escritor. D. Anzieu tenta explicar este fenômeno em Le Corps de l’oeuvre através do conceito do duplo imaginário pré-consciente. Diz o autor:
Assim um personagem fictício, chamado a ser o herói do romance, põe-se a conduzir uma vida própria na consciência do escritor. Eu vejo aí a manifestação do desdobramento entre Eu ideal (o personagem-herói) e o Eu consciente (o autor-narrador), desdobramento sobre fundo de continuidade entre eles. [11]










[1] Teixeira Coelho, Antonin Artaud, p. 99.
[2] Essa hipótese é bastante interessante, mas mereceria ser melhor pesquisada. Uma coisa é dizer, como Freud, que o poeta escreve a partir do sofrimento. A outra é afirmar que todo artista escreve a partir de uma neurose já estabelecida. Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária - As neuroses dos grandes escritores, p. 41.
[3] Na Teogonia, de Hesíodo, um dos poemas mais antigos de nossa civilização e que trata da Origem dos Deuses, a primeira palavra pronunciada é Musas, genitivo plural, através da qual o poeta invoca estas divindades: “Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar”. Ou seja, é preciso primeiro pronunciar o nome das Musas, para que elas se apresentem como a força das palavras cantadas. Elas é que vão dar sentido, força, direção e presença ao canto. Sem elas não haveria poesia. Hesíodo, Teogonia - A Origem dos Deuses, p. 129.
[4] Ernst Kris, Psicanálise da Arte, p.  26
[5] Op. cit., p. 26
[6] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária - As neuroses dos grandes escritores, p. 42
[7] Op. cit., p. 42.
[8] Em Íon, Sócrates afirmava que os poetas compõe por instinto, como os oráculos, que faziam previsões sem ter consciência do que diziam. Platão, seguindo suas idéias, também sustenta o seguinte: “O poeta é coisa efêmera, volúvel e sagrada; não contará jamais sem a intervenção de um bafo divino, sem um doce furor. Longe dele a razão; quando quer obedecer a ela, nada produz; nem versos, nem oráculos... Os poetas não criam sua arte. Um deus, o deus que subjuga o espírito toma-os por ministro. Quer, ofuscando-lhes o sentido, ensinar-nos que eles não são autores de todas as maravilhas (...) os poetas, no momento que têm a alma tranquila e que conservam o uso da razão, tornam-se incapazes de produzir algo de maravilhoso ou de sublime. Somente quando, dominados pela harmonia e pelo ritmo, entram em delírio, compõem e elevam a nossa admiração”.  Platão, Íon, p. 144/145.
[9] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária - As neuroses dos grandes escritores, p. 42.
[10] Op. cit., p. 37.
[11] D. Anzieu, Le Corps de l’oeuvre. Paris, Gallimard, 1981. Citado por Maria Luiza Teixeira de Assumpção,  O Projeto Incosciente de Machado de Assis.  Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 43, nº. 3/4, p. 86.

sábado, 13 de agosto de 2011

Relação entre Sofrimento e Criação



 ______  __  ______________________A Criação e o Sofrimento

Elza Rocha Pinto


 Nunca ninguém escreveu ou pintou,
        esculpiu, modelou, construiu, inventou,
  a não ser para sair realmente do inferno.[1]
                                                     Artaud
Mas, e o que leva o homem até a expressão de seus conflitos através de uma obra de arte? A inspiração, motivada pelo sofrimento, seria uma das respostas possíveis. Dentro de uma concepção trágica da criação, alguns artistas chegam a afirmar que o sofrimento é essencial para a qualidade da obra de arte.  Freud (1908) aceita  esta perspectiva, tanto que em O poeta e os sonhos diurnos, ele observa:
Pode-se afirmar que o homem feliz jamais fantasia, e sim somente aquele que é insatisfeito. As pulsões insatisfeitas são as forças impulsionadoras das fantasias, e cada fantasia é uma satisfação de desejos, uma retificação da realidade insatisfatória. [2]
Esta posição de Freud vai ser desdobrada pelo escritor e contista Adamor da Silva , um admirador da psicanálise. Entre diversas publicações este autor tem um livro muito interessante, onde analisa inúmeras poesias e romances do ponto de vista psicanalítico. E é em Psicanálise da Criação Literária, que encontramos o seguinte:
Sem a concorrência da neurose, ou mesmo leves conflitos psíquicos, a Arte seria medíocre. Para sua realização completa há invariavelmente, a presença da dor, do sofrimento, e até da infelicidade. É a regra geral da qual poucos fogem. (...) O sofrimento é seu patrimônio e a Arte, a sua grande libertadora. Artista feliz é raro. Quando feliz, produz pouco ou é medíocre.[3]
Como já vimos, existe uma relação muito próxima entre a vida emocional do artista e sua criação. E, realmente, o sofrimento parece ser uma importante força inspiradora. Artaud (1971) chegou a implorar por seus delírios, acusando seu médico de querer retirar-lhe, por meio de eletrochoques, a base de sua poética. O romantismo, em sua vertente alemã, torna corrente este ponto de vista: o sofrimento passou a ser a marca essencial da boa poesia. Sem o sofrimento o artista seria estéril, ou faria poesia de má qualidade. Sobre esta vinculação da arte com a dor, Maria Luiza T. Assumpção (1992) analisa:
O trabalho através da literatura constituiu-se, na verdade, na tentativa de preservar o investimento, pelo qual se sente responsável, e abolir o sofrimento, diminuindo o conflito entre o desejo e o sofrimento. Com isto, podendo chegar tanto ao extremo do mundo interior, o delírio, quanto ao extremo do mundo exterior, a criação.[4]
Sem o sofrimento talvez o artista ficasse reduzido a ser um homem comum, onde a capacidade criativa voltar-se-ia para objetivos mais funcionais. Nietzsche expressa esta mesma opinião em  A Origem da Tragédia.
Realmente, talvez uma das forças do artista esteja na vivência de um mundo interno bastante conturbado por distúrbios e conflitos, determinando nele a necessidade de se exorcizar. T. S. Elliot afirmava que ninguém faz poesias para expressar suas emoções, e sim para fugir delas.[5] A obra de arte seria então uma espécie de exorcismo destes demônios interiores. O artista sempre parece ter uma necessidade inevitável, e inadiável, de exprimir seus tormentos. Só que, à diferença do homem comum, uma das qualidades do artista é seu dom de transformar o sofrimento em beleza. O artista é capaz de materializar sua dor, seus tormentos e suas misérias em uma forma estética capaz de fascinação. A magia da arte vai recobrindo sofrimentos e alegrias com as belas roupagens da música, da escultura, da pintura, da literatura, da dança. Dostoievsky (1963) escreve sua obra a partir de um intenso sofrimento. Seus romances são sombrios. Memória da Casa dos Mortos reflete a densidade de seus tormentos. Humilhados e Ofendidos parece revelar a opressão do autor diante da vida, que tanto o maltratou. Sem  falar dos sofridos personagens de Crime e Castigo ou dos Irmãos Karamazov. A medida desta dor é dada por suas palavras: “Deus torturou-me durante toda minha vida”.[6] Porém, contraditoriamente, ele extraía sua força da própria doença. Sentia-se extraordinariamente bem durante as crises epilépticas, chegando a dizer que “daria dez anos de vida para prolongar tais momentos”.[7] Segundo ele confessava, a felicidade que ele sentia nestes momentos jamais poderia ser experimentada no estado natural.
Botticelli, inválido desde muito cedo, com saúde precária e físico pouco desenvolvido, sublima sua fragilidade e nos encanta com um auto-retrato onde se visualiza como um robusto jovem florentino,[8] expressando uma imagem idealizada de si mesmo. Toulouse Lautrec,[9] cuja auto-imagem parece ter sido tão afetada pelos acidentes que o deformaram, procurava encobrir sua infelicidade sob a aparência de uma falsa alegria. Retratou profissionais da diversão: palhaços, bailarinas, amazonas, cantores; assim como garçonetes dos bares e prostitutas. Seu gênio conseguiu transformar a sordidez dos cafés e bordéis de Montmartre em expressivos quadros que imortalizaram os sensuais movimentos do can-can. Sua dor, no entanto, estava registrada através dos tons apáticos que usava, e na economia e quase desprezo pelas cores.[10] Com sua pintura ele ia testemunhando o inferno pessoal de cada um dos retratados, além do seu próprio.
É a esse inferno pessoal que Lautréamont (1986) se refere em seus Chants de Maldoror, aceitando corajosamente seu destino:
A l’heure que j’écris, de nouveaux frisson parcourent  l’atmosphere  intellectuelle: il ne s’agit que d’avoir le courage de les regarder en   face.  [11]
 E é de seu inferno particular que Artaud (1971) retira sua força. Artaud convivia bem com a dimensão do trágico. De forma semelhante aos artistas citados, a tragédia, para Artaud, sempre foi vivida com espírito dionisíaco. Melhor do que ninguém, ele sempre se deu conta que diante do sofrimento, da dor e da loucura, não havia nada a fazer, além de escrever. Era isto que o sustentava, pois ele costumava dizer que escrevia para não morrer. A arte, para ele, agia com força imperativa. Ao defender seus estados delirantes como sendo a base de sua poesia, Artaud  constituiu uma das páginas mais belas da anti-psiquiatria.
Esta constatação sobre a força do sofrimento, tão lúcida e acessível para  qualquer poeta, só aos poucos foi sendo admitida pela psicanálise. Não para Freud que, como vimos, já possuía esta noção. Mas, entre seus seguidores, nem sempre o sofrimento foi bem aceito. Mesmo hoje em dia, para a maioria dos psicanalistas a tragédia nunca é celebrada, [12] como em Nietzsche, em Dostoievsky,  ou como em Lautréamont.
Diferente do homem comum, o artista tem um dom: o de transformar em beleza todo um universo de sofrimentos. O horrível, o absurdo na existência, vai sendo transfigurado em imagens ideais que acabam por tornar a vida uma celebração. Imagens sublimes, cômicas, dramáticas ou mesmo trágicas vão se presentificando nos sons das melodias, nas cores das paisagens pintadas, nas imagens do cinema, nos movimentos da dança  ou nas graciosas formas de uma estátua.



[1] Citado por Teixeira Coelho em  Antonin Artaud, p. 88
[2] S, Freud,  O poeta e os sonhos diurnos, p. 1344.
[3] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária, As neuroses dos grandes escritores, p. 36.
[4] Maria Luiza Teixeira de Assumpção, O Projeto Inconsciente de Machado de Assis: O morto na vida e obra de Machado de Assis - Mito e Fantasma, Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 44, nº. 1/2, 1992, p. 125.
[5] Tom e Viv
[6] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária, As neuroses dos grandes escritores, p. 93.
[7] Op. cit., p. 41.
[8] Retrato do Desconhecido, em Botticelli, Gênios da Pintura, vol. 11, prancha III.
[9] Toulouse Lautrec, em Gênios da Pintura, vol 37 .
[10] Este fato pode ser obsservado em seu quadro La Troupe de Mlle. Eglantine ; observam-se  ainda os tons sombrios e as massas de cores de denso volume no Exame na Faculdade de Medicina. Toulouse Lautrec, Gênios da Pintura, vol. 37, pranchas V e XVI.
[11] D. I. Lautréamont, Les Chants de Maldoror.     
[12] É difícil para um analista admitir a valorização do sofrimento e da dor por parte de seus pacientes, fato que normalmente seria tomado como indício de perversão masoquista.