quarta-feira, 10 de abril de 2013

Perspectiva Histórica sobre o Consumo de Álcool



Este texto é parte da tese de Doutorado, Alcoolismo Feminino: Conhecer para Prevenir, defendida no Instituto Fernandes Figueira, FIOCRUZ/RJ
Há vários anos, o álcool vem ocupando o primeiro lugar nos índices de consumo das substâncias psicoativas. Porém, nem sempre o consumo excessivo do álcool foi visto como um problema.
A dependência de substâncias psicoativas só se tornou uma questão a partir do século XX. Antes disto, esse fenômeno permaneceu ignorado na maior parte do mundo (UNODC, 1995). Em 1999, segundo a Organização Mundial de Saúde, 30% da população mundial apresentava problemas com o álcool e entre 10-12% das pessoas eram considerados alcoólatras. Segundo Gmel e Rehm (2003), citando os dados da pesquisa de Carlini, em 2002, 11% da população brasileira apresentava problemas de dependência. 
O uso de drogas sempre esteve presente em mais diferentes culturas, inclusive nas grandes civilizações da Antiguidade, onde seu uso era associado a rituais mágicos e religiosos. A aceitação das drogas varia em função da época e da cultura, o que pode ser visto através das leis, normas, costumes, religiões e de outros mecanismos de controle. Na sociedade contemporânea, a industrialização, a lógica do consumo e a medicalização da vida social, colaboraram para transformar o sentido e o uso das substâncias psicoativas em um problema de saúde mental.
Pode-se dizer que o uso do álcool é tão antigo quanto a própria civilização humana. Achados arqueológicos indicam que o álcool constitui a droga mais antiga da qual se tem notícia. Um jarro de cerâmica com resíduos de vinho resinado, descoberto no norte do Irã datando de 5.400 A.C. é considerada a mais antiga evidência da produção de bebida alcoólica. O interessante livro “A História do Mundo em Seis Copos”, afirma que é possível dividir a história da civilização conforme o domínio de determinadas bebidas. Segundo Standage (2005), seu autor, seis bebidas vão definir o fluxo da história mundial: cerveja, vinho, bebidas destiladas (como conhaque, rum e whisky), café, chá e cola. Portanto, três contendo álcool, e três definidas pela cafeína. O elemento em comum entre elas é o predomínio que tiveram em determinado período histórico. Embora não se saiba exatamente quando a primeira cerveja foi fermentada, ela já se espalhava pelo Oriente Próximo na altura de 4.000 a.C., aparecendo em um pictograma da Mesopotâmia (região hoje correspondente ao Iraque), e retrata duas pessoas tomando cerveja com canudos de junco em um enorme vaso de cerâmica. “A cerveja é uma relíquia líquida da pré-história do homem, e suas origens estão fortemente entrelaçadas com as próprias origens da civilização” (STANDAGE, 2005:16) Em 2.100 A.C., segundo inscrições encontradas em tabuletas de argila, os médicos sumérios já receitavam cerveja para a cura de todos os males. O álcool era usado muitas vezes em cerimônias religiosas e de iniciação. Entre as festas gregas mais populares, durante as homenagens ao deus Baco, o consumo de vinho estendia-se por vários dias de celebrações ritualísticas.
Lima (2007) também se dedicou a fazer uma breve revisão sobre aspectos históricos e culturais do álcool e do alcoolismo, chegando inclusive a relembrar descobertas antropológicas da era paleolítica que sugerem que o próprio homem das cavernas, aparentemente, já consumia bebidas alcoólicas. Na era neolítica (6.000 a 7.000 a. C.) existem fortes indícios arqueológicos de que o homem já dominava a produção artesanal de bebidas alcoólicas. Por volta de 4.000 A.C., dentro do contexto da cultura egípcia, comprova-se o uso de bebidas fermentadas através de alguns utensílios descobertos nas tumbas dos faraós. Alguns livros sagrados antigos, como a Bíblia (através do Velho Testamento) ou o Alcorão, contêm várias citações sobre bebidas alcoólicas, como é o caso do vinho. Em algumas civilizações (como a sumeriana de 3.000 a.C) o vinho era considerado uma bebida das divindades e, por isso, usado tanto em rituais pagãos, quanto em ritos religiosos. Também na civilização egípcia, ele vai fazer parte de várias cerimônias e rituais. Existiam deuses específicos para as bebidas, em especial para o vinho. Assim esta qualidade é atribuída ao egípcio deus Osíris, ao deus grego Dionísio, e ao seu equivalente romano, Baco. Com Homero, a Ilíada e a Odisséia descrevem cenas de consumo de bebidas alcoólicas tanto em ritos religiosos, quanto em festividades que tangenciam o excesso: “muitas vezes terminavam em orgias com mais ou menos violentas, e nas quais o sexo, juntamente com as bebidas alcoólicas, era o ingrediente fundamental” (LIMA, 2007:12). Baco, deus do vinho e dos excessos, especialmente os sexuais, tem em Príapo um de seus companheiros favoritos. Os rituais religiosos em sua homenagem são chamados bacanais. Nesses rituais, procurava-se atingir o êxtase arrebatador, o estado dionisíaco análogo à embriaguez:
Graças ao poderio da beberagem narcótica era que todos os homens todos os povos primitivos cantavam seus hinos. Ou então era isso devido à força despótica de renovação primaveril, aquela que alegremente penetra em toda a natureza, que vai despertar a exaltação dionisíaca, que vai atrair o indivíduo subjetivo, para obrigar a aniquilar-se no total esquecimento de si mesmo. Durante a Idade Média alemã havia ainda multidões cada vez mais numerosas que eram movidas pelo sopro desta potência dionisíaca, cantando e dançando, de lugar em lugar; nesses dançarinos das Janeiras e do São João reconhecemos os coros báquicos dos Gregos cuja origem se perde, através da Ásia Menor, pela Babilônia, até as orgias sírias (NIETZSCHE, 1892, 39).
Embora a fermentação das frutas, originando o vinho, tenha sido anterior à fermentação dos grãos, que deu origem à cerveja, é apenas na Idade Média que se desenvolve a cultura da uva, tendo como efeito a produção de diferentes tipos de vinhos. Até os religiosos em seus mosteiros e abadias colaboraram para a produção de vinhos de excelente qualidade. Cresce também a variedade e a produção de outras bebidas fermentadas, como as destiladas e a cerveja. A destilação, um processo que já era conhecido no mundo antigo, havia sido aperfeiçoado pelos árabes. Durante a época das explorações, os países europeus procuravam ultrapassar o monopólio árabe sobre o comércio com o Oriente (STANDAGE, 2005). Com isto as bebidas destiladas, como conhaque, rum e whisky, mais resistentes para o transporte marítimo, ganharam destaque, passando a funcionar como moeda de troca no comércio de escravos. Tornaram-se particularmente populares nas colônias americanas. Em paralelo ao seu valor comercial, a bebida alcoólica passa a ser uma importante referência cultural e comunitária, já que vai ser representada “como produto nacional, valores e peculiaridades daquela região ou povoado” (LIMA, 2007:13).
Na Idade Moderna, o desenvolvimento das relações comerciais junto com o aumento da produção das bebidas alcoólicas vai determinar o efeito de crescimento do consumo. Durante os séculos XVIII e XIX, a industrialização aumenta e modifica a estrutura das sociedades, principalmente pelo advento de novas classes - operários, trabalhadores, comerciantes. E o consumo de bebida alcoólica continua a ser feito nas vilas e cidades que crescem ao redor das fábricas e usinas. Uma nova geografia sócio-cultural se desenha, com o crescimento das cidades, levando o consumo de álcool a aumentar através do surgimento de locais específicos: pubs, tavernas e bares que passam a fazer parte do ambiente urbano.
É dentro desse novo cenário, criado pela revolução industrial, que o consumo excessivo do álcool começa a chamar atenção. O gim inventado na Holanda do século XVII, e popularizado na Inglaterra do século XVIII, cria então uma questão social, em função da incidência de alcoolismo entre as classes trabalhadoras. Mas é a partir do século XX que o consumo de drogas começa a ser encarado como um grave problema, garantindo um lugar de destaque nas orientações da saúde pública.
A revisão histórica desenvolvida por Sáad (2001) sobre dependência de drogas acabou revelando que a grande maioria das pesquisas toma o álcool como base de referência. Seu estudo se baseia principalmente em autores americanos, que mostram o desdobramento, de diferentes concepções associadas a estratégias diferenciadas de ação ao longo dos anos. Até o século XVII o ato de beber era bastante liberado em comemorações e festividades, da mesma forma que ocorre hoje. Ela lembra que a embriaguez nunca se constituiu em problema social ou de ordem pública durante o período colonial americano: essa questão “não era nem problematizada nem estigmatizada” (SÁAD, 2001:12). Embora na Europa, no fim da Idade Média, François I tivesse promulgado uma lei cujo objetivo era punir qualquer pessoa que fosse encontrada embriagada nas ruas (LIMA, 2007).
No fim do século XVIII, o uso do álcool começa a causar incômodo social, e são aplicados termos desabonadores aos que abusam dele; um exemplo é o termo “homens degenerados”, aludindo ao fraco caráter daqueles que eram considerados subjugados pela bebida. Em 1810, Benjamin Rush estabelece o conceito de “dependência” do álcool (SÁAD, 2001). Esse autor, que tinha uma posição liberal, acabou por reconhecer que havia um problema de adição à bebida e que essa se estabelecia de forma progressiva e gradual. O modelo proposto por Rush predomina até hoje, numa visão que considera o uso excessivo de álcool como doença. Ele descreve essa doença como uma atividade compulsiva em que a pessoa perde o controle sobre seu comportamento de beber. Para ele, a única forma de atuação eficaz seria a abstinência total, base da filosofia dos grupos de mútua-ajuda como os Alcoólicos Anônimos (AA).
No início do século XIX surge nos Estados Unidos um movimento denominado “Movimento da Temperança” que criticava o uso do álcool e defendia a abstinência completa. Segundo Levine (1984:109), este “foi um dos movimentos de massa de maior vigor dos fins do século XIX e vai cumprir um papel fundamental na configuração da ideologia capitalista norte-americana de que o mundo da livre concorrência é justo; são certas pessoas que não colaboram”. No século XX, as novas condições políticas e econômicas aceleram o rápido crescimento do proletariado industrial.  Neste contexto, o álcool e seus consumidores passam a ser apresentados como bode expiatório para todos os problemas: insucessos pessoais, falências ou má gestões financeiras, crime, violência e pobreza. “Para problemas sociais e econômicos muito concretos a ideologia da Temperança colocava o demônio do álcool como o grande responsável e a abstinência como a grande solução” (LEVINE, 1984:111). Com o movimento da Temperança, a cultura e a religião protestantes marcam uma divisão em relação à posição liberal existente até então em relação ao uso de álcool, adotando, sobre o tema, uma postura moralista.
Para defender suas posições, o movimento da Temperança gerou relatos dramáticos: pais de famílias embriagados espancando pessoas da família, homens anteriormente corretos e trabalhadores sob a influência do rum do demônio perdendo emprego e todos os seus bens. Nesse contexto, embora houvesse a hipótese de que essa doença pudesse ser adquirida, também se desenvolveu a suposição da hereditariedade do alcoolismo.
Em meados do século XIX, a idéia do alcoolismo como doença ganha a forma que tem atualmente. Segundo Lima (2007:14) foi Magnus Huss, em 1940, quem usou pela primeira vez o termo “alcoolismo” para indicar o quadro clínico com todas as suas manifestações biopsicossociais, que resulta da intoxicação crônica.
No final do século XIX, o paradigma da Temperança foi sendo substituído por novos conceitos, e o uso do álcool começou a enfrentar o “Movimento Proibicionista”. O que importava agora era a influência que o álcool poderia ter na produção e no comportamento dos trabalhadores. Desta forma, o alcoólatra deixa de ser vítima de uma doença para ser visto como uma ameaça à sociedade.  Combate-se inclusive o objeto da adição. No entanto, a proibição das bebidas alcoólicas não resolveu o problema, ao contrário, criou um mercado negro, e gerou espaço para o fortalecimento e o desdobramento da Máfia. É dentro dessa mentalidade e contexto que em 1935 surge o movimento dos AA, constituindo-se numa fusão das idéias dos Movimentos de Temperança e Proibicionista.
Portanto, a embriaguez como doença tem suas raízes no século XVIII, quando Rush fala na perda da capacidade para beber moderadamente (SÁAD, 2001). No entanto, é no século XIX que o saber médico se apossa dos conceitos de tolerância e abstinência oriundos das posições moralistas e religiosas do século XVIII. No século XX, o tema é tratado sobretudo do ponto de vista médico: estabelecem-se critérios diagnósticos bem sistematizados e que podem ser encontrados na CID-10 e no DSM-IV. No entanto, existem certas dificuldades relacionadas a essas sistematizações. Um dos principais problemas diz respeito ao fato de que, historicamente, os modelos de adição foram desenvolvidos baseando-se em pesquisas que contavam apenas com amostras de homens brancos americanos: “diferenças culturais no desenvolvimento da dependência de álcool podem clarificar o impacto de diferenças sócio-culturais bem documentadas nas práticas do beber” (VENNER & FELDSTEIN, 2006: 675)
Existem autores que discutem os critérios utilizados para o diagnóstico de dependência de drogas, lembrando que a escolha se dá entre categorias e dimensões. Nos sistemas nosológicos, a doença recebe uma classificação que “forma categorias ideais, distintas umas das outras e da normalidade” (Cruz, 1997:116). O sistema dimensional supõe que existem características pré-mórbidas que acabariam se desenvolvendo. Nesse caso, as doenças não seriam nitidamente diferenciadas. Cruz (1997) levantando algumas questões relacionadas aos conceitos utilizados em relação ao uso de substâncias psicoativas lembra que ainda não foi demonstrada a existência de pontos de descontinuidade em relação aos padrões de uso, de forma a fundamentar a classificação em categorias:
As categorias de dependência e abuso podem definir grupos qualitativamente diferentes entre si e de um padrão de uso não abusivo? Ou a diferença entre eles é de intensidade e há um continuum entre o que ocorre com as pessoas que nunca usaram nenhum tipo de droga, as que já usaram alguma vez, as que usam freqüentemente e as que usam freqüentemente com grave comprometimento pessoal e social? Se há diferenças qualitativas, que critério(s) deve(m) definir as categorias? (CRUZ, 1997:116).
Apesar dos problemas de conceituação, que acabam por ter conseqüências clínicas, esse autor reconhece que a operacionalização dos critérios em sistemas de categorias conseguiu padronizar os diagnósticos, trazendo maior fidedignidade para os procedimentos relativos a tratamentos e cuidados. Porém lembra que a especificidade deve ser levada em conta quando estiverem em pauta objetivos sociais, antropológicos e legais “e, principalmente quando se tratar da abordagem individual do paciente e sua subjetividade” (CRUZ, 1997:117).
A crítica mais radical à medicalização do alcoolismo vem do movimento da antipsiquiatria que pergunta se a dependência não estaria sendo vinculada não a uma doença, “mas a uma forma deplorável de desvio, ou seja, o termo dependência estaria se referindo a uma identidade estigmatizada geralmente atribuída a um indivíduo contra a sua vontade” (SÁAD, 2001:19). Stein (1990) procura destacar esta função de controle social que a concepção de toxicomania como doença tem poder de exercer sobre as minorias. É claro que esse tipo de crítica se fundamenta em pensadores como Foucault (1972), Deleuze (1976), Guattari (1981) e Nietzsche (1976). Neste último autor é possível ler uma crítica irônica à temperança do equilíbrio apolíneo, embora seu objetivo não fosse exatamente refletir sobre o alcoolismo:
Tais desgraçados nem sequer suspeitam da palidez cadavérica ou da aparência espectral de tanta “saúde”, quando na frente deles passa o furacão, ardente de vida, dos sonhadores dionisíacos. (...) O homem diviniza-se, sente-se Deus, e por isso a sua atitude é tão nobre e tão extática como a dos deuses que ele viu em sonhos. O homem deixou de ser artista para ser obra de arte: o poderio estético de toda a natureza, agora ao serviço da mais alta beatitude e da mais nobre satisfação do Uno primordial, revela-se neste transe, sob o frêmito da embriaguez (NIETZSCHE, 1953:39-40).
Como é possível ver, para alguns autores, não existe doença ou problema moral relacionado ao excesso do consumo. Esses autores diriam que tais representações são produzidas por interesses de classes. No entanto, a maioria da sociedade e o próprio alcoolista são influenciados por tais valores. Segundo Silva (2002), as representações presentes na sociedade e nos alcoolistas em relação ao consumo excessivo é complexa e dicotômica, já que admitem uma abordagem jurídica que abre caminho para desqualificação e marginalização daqueles que bebem.
Nas últimas décadas, ainda segundo Lima (2007), sobretudo nos países da Comunidade Européia, uma nova ótica passou a ser utilizada ao se focalizar o consumo de álcool a partir da ênfase atribuída à prevenção. Não é apenas a dependência que interessa, porém também, o uso e o consumo excessivo ou abuso do álcool. “Situações habitualmente não relacionadas passaram a figurar dentro do cenário do alcoolismo de forma mais ampla” (LIMA, 2007:15). Assim, a geografia do uso e abuso de bebidas alcoólicas se ampliou para abranger acidentes de trânsito, problemas de saúde do trabalhador, violência familiar contra mulheres e crianças, síndrome alcoólica fetal. Anteriormente, tais situações não eram levadas em consideração por um modelo que apenas destacava a dependência com a característica síndrome de abstinência, em um modelo que sublinhava a importância dos aspectos biológicos. 

Para referência: Este texto é parte da tese de Doutorado, "Alcoolismo Feminino: Conhecer para Prevenir", defendida em 2006, no programa de Saúde da Criança e da Mulher, no Instituto Fernandes Figueira, FIOCRUZ/RJ