quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A Projeção na Arte



______________________________________A Projeção na Arte

Elza Rocha Pinto


                          A arte de versejar e de poetar
                               É dizer a verdade do sonhar. [1]


 Freud vai chegar à conclusão que a obra do artista será função de uma formação de compromisso.[2] Na constituição do aparelho psíquico, as defesas funcionam com o objetivo de manter a estrutura da personalidade, evitando a angústia. E, a dinâmica da personalidade permite que elas acabem por constituir um compromisso entre os três sistemas,[3] contribui para a manutenção do equilíbrio psíquico. Esse trabalho é nítido no sonho, no sintoma ou no ato falho.
Mas a formação de compromisso também aponta para outros comportamentos. As defesas são funções do ego. Assim, sem sair do contexto freudiano, podemos afirmar que qualquer ato do ser humano surge  também de um compromisso. Pois todos os comportamentos vão ser resultado desta barganha interativa entre as três instâncias da personalidade, onde as defesas têm um papel central. E a obra do artista não vai fugir à regra, revelando-se bastante sensível a este contrato subjetivo; contrato que acaba por facilitar a expressão de fantasias e conflitos inconscientes.
Em suma, as produções culturais sempre revelam a vida interior de seus autores. Esta ideia esteve sempre presente em Freud. Isto pode ser revelado, entre outros caminhos, através do percurso feito pelo conceito de projeção. Freud desenvolveu este conceito em dois momentos distintos. E, dentro de perspectivas bastante diferentes. Quando Freud (1911) examina a biografia do presidente Schreber, a projeção ainda é um conceito limitado. Ela trata do deslocamento do ódio sobre outra pessoa, no caso de alguém que foi humilhado:
Na produção de sintomas da paranoia ressalta, em primeiro termo, aquele processo que designamos com o nome de projeção. Nele uma percepção interna é reprimida e como sua substituição, seu próprio conteúdo, depois de sofrer uma deformação, vai surgir na consciência como percepção vinda do exterior.[4]
Aos poucos Freud vai desenvolvendo sua ideia. Já em Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901-1904), no tópico sobre Crença no Acaso e Superstição, o conceito é ampliado o suficiente para permitir englobar uma gama maior de fenômenos. Freud está trabalhando na idéia do determinismo psíquico, e para exemplificar, começa a analisar o fenômeno da superstição. Compara os mecanismos psíquicos do paranoico e do supersticioso. O paranóico projeta na vida psíquica dos outros aquilo que existe na sua, de forma inconsciente. Quanto ao supersticioso, Freud lembra que ele, por desconhecer a causa interior, projeta esta causalidade psíquica no exterior, interpretando como intencionais determinados fatos puramente casuais. Ou seja, o indivíduo vai atribuir uma significação aos fatos externos, sentindo de algum modo que este tem correspondência com seus próprios sentimentos e representações que lhes são ocultos, por serem inconscientes:
O supersticioso, por ignorar a motivação dos próprios atos casuais e porque o fato desta motivação luta por ocupar um lugar em seu reconhecimento, se vê obrigado a transportá-la por meio de um deslocamento, ao mundo exterior. (...) Creio, com efeito, que grande parte daquela concepção mitológica do mundo que perdura ainda na entranha das religiões mais modernas não é outra coisa que psicologia projetada no mundo exterior. A obscura percepção (poderíamos dizer, percepção endopsíquica) dos fatores psíquicos e relações do inconsciente, se reflete na construção de uma realidade sobrenatural que deverá ser transformada pela ciência em psicologia do inconsciente. (...) Quando os homens começaram a pensar se acharam, sem dúvida compelidos a interpretar antropomorficamente o mundo exterior como uma pluralidade de personalidades feitas à sua própria imagem. [5]
A projeção, agora revisitada dentro da vida cotidiana e normal, ganha mais uma qualidade. Além do significado da expulsão paranoica, passa a representar também o simples desconhecimento, por parte do sujeito, de desejos e emoções que não são aceitas por ele como sendo suas (ou então das quais é parcialmente inconsciente), e cuja existência ele atribui à realidade externa.
Neste deslizamento, a projeção passa a se aplicar a outros fenômenos dentro da vida quotidiana, quando antes esta defesa só se referia à expulsão de desejos intoleráveis em si próprio, tendo um viés patológico. Com a extensão do conceito, passa-se a utilizar a projeção como explicação para o deslocamento de sentimentos, idéias e emoções consideradas positivas e valorizadas. Em Totem e Tabu (1912), o “deslocamento para fora”, o qual é a essência da projeção, mescla-se com a atribuição de qualidades (agora negativas ou positivas) ao objeto externo.
E esta desterritorialização vai permitir que, agora, o conceito se constitua como base de fenômenos tais como o animismo, o pensamento mágico e a onipotência das idéias, todos resultados da projeção dos processos psíquicos primários sobre o mundo exterior. As histórias míticas adquirem o estatuto de formação de compromisso; e podem desempenhar o papel de expressão e elaboração de conflitos. Da mesma forma, a obra de arte vai poder conter uma projeção do artista.
Fazendo um rápido parênteses, é justamente esta leitura freudiana que fornece a base para as técnicas projetivas da psicologia, as quais afirmam a possibilidade de dizermos algo sobre alguém, através de sua produção, de suas visões. Tanto a closura guestáltica das manchas do teste projetivo Rorschach, quanto o rabiscar de um desenho através das chamadas técnicas de Grafismo, ou ainda a produção de uma estória nos testes temáticos ao estilo do T.A.T.[6] ou do C.A.T.[7] - todos estes processos vão permitir a leitura da vida emocional do indivíduo. Os desenhos, por exemplo, podem ser toscos e grotescos, sem a maestria da técnica dominada pelos  grandes pintores como Da Vinci, Renoir ou Picasso. Ou bem a técnica poderá ser sofisticada, traduzindo-se em desenhos  muito bem elaborados. A forma definitiva não importa. O que interessa é que todos eles, desde as garatujas de uma criança, até o elegante e sofisticado traçado de um arquiteto, podem revelar o mundo interior daquele que desenha. Ou seja, a presença ou ausência do domínio da gramática e da sintaxe da linguagem gráfica, dos pontos, linhas e sombreados, não impede a revelação da vida subjetiva de uma pessoa.
Os próprios pintores são os primeiros a reconhecer este fato. Foi um artista, Elbert Hubbard,[8] quem observou o seguinte: “quando um artista pinta um retrato, em rigor pinta dois, o do modelo e o próprio; e é de outro pintor, Alfred Tunnelle,[9] o comentário de que “o artista não vê as coisas como são, mas como ele é”. Existem múltiplas constatações desta vinculação entre o retrato e seu pintor. Estudiosos de Leonardo já afirmaram:
O sorriso de Mona Lisa provavelmente não pertencia em absoluto à Mona Lisa; representava a perspectiva do próprio Leonardo Da Vinci diante da vida, e refletia a distraída superioridade da qual se armava para compensar seu ressentimento contra o pouco generoso tratamento que o destino lhe dera,  e a freqüente falta de reconhecimento do lugar que lhe correspondia na vida. [10]
Existem diferenças acentuadas nos estilos dos pintores. É nítido o contraste dos tons depressivos, disfóricos, angustiados e sombrios em El Greco. Vista de Toledo parece traduzir seu próprio estado emocional, de desalento e tristeza. Já Van Gogh utiliza cores intensas, cores espessas, fortes e contrastantes, com tracejados rápidos e impulsivos. Com isto consegue imprimir na tela uma potência de forças e movimentos que só poderiam surgir da pressão de violentas paixões internas, tão vibrantes e rebeldes quanto seus torturados girassóis, ou seus brilhantes campos de trigos açoitados pelos ventos.
A mesma análise pode ser feita com relação aos textos escritos de autores teatrais, de jornalistas, ou mesmo do escolar que delineia uma tímida composição sobre um tema singelo. A este propósito lembramos aqui a façanha escolar, que tanto prazer causou a  Nelson Rodrigues, então com oito anos de idade, quando ele surpreendeu a todos em seu colégio.  Sua professora havia pedido que os alunos fizessem uma redação sobre um tema qualquer.  A melhor composição seria lida em voz alta. Foram selecionadas duas vencedoras, talvez porque a primeira colocada não pudesse ser lida, na opinião da mestra. Uma das redações tinha um caráter infantil, e descrevia o passeio de um rajá no seu elefante. A outra já revelava todo o talento do futuro escritor, trazendo uma das marcas rodrigueanas - era uma estória sobre adultério:
Um marido chega de surpresa em casa, entra no quarto, vê a mulher nua na cama e o vulto de um homem pulando pela janela e sumindo na madrugada. O marido pega uma faca e liquida a mulher. Depois ajoelha-se e pede perdão. [11]   
Este trecho da composição certamente revela um aspecto do mundo privado de Nelson, onde o adultério feminino vai ganhar uma dimensão ímpar. Em Álbum de Família, esta mesma estória se desdobra na traição de Senhorinha.
Estendendo-se para a vida cotidiana, Ernst Kris (1968), em seu importante e cuidadoso estudo sobre as contribuições da psicanálise para o entendimento das artes, estendeu seus comentários também aos jornalistas. Na verdade, basta uma análise, às vezes superficial, para revelar as vinculações entre a vida subjetiva do artista e sua  obra. Freud, no artigo de 1908, propõe explicitamente esta tarefa:
Tentaremos aplicar às obras do poeta nossa tese anterior da relação da fantasia com o pretérito, o presente e o futuro e com o desejo que flui através dos mesmos, e estudar com sua ajuda as relações dadas entre a vida do poeta e suas criações. [12]
É desta compreensão que Freud desenvolve a leitura psicanalítica das obras de Jensen (1907) e de Leonardo (1910). Só achamos necessário ter o cuidado de evitar leituras reducionistas,[13] que podem constituir-se em empobrecimento da obra de arte.[14] Freud correu este risco. E por vezes parece limitar a obra de Leonardo (1910) a uma fantasia incestuosa. Na leitura da Gradiva, quase chega a transformar aquilo que era uma paixão de amante num delírio patológico, a ponto de Jensen[15] reagir mal à análise de sua narrativa. Mas Freud era um gênio. E sua intuição e sensibilidade conseguem contornar esta armadilha. Afinal, se o mundo da criação pode revelar algo da patologia ou da perversão que vive no interior do artista, a obra artística não pode ser reduzida drasticamente aos conflitos pessoais de seu autor. Pois para além da projeção, a obra do artista é uma interpretação criativa, crítica e singular do mundo.



[1] Resposta de Hans Sachs, nos Mestres Cantores. O trecho completo diz o seguinte:  Amigo, a verdadeira obra do poeta / É anotar e interpretar sonhos. / Acreditai que a ilusão mais certa / Vive no sonho dos humanos / A arte de versejar e de poetar / É dizer a verdade do sonhar”. Citado por Nietzsche, em A Origem da Tragédia, p. 36.  
[2] Formação de compromisso são as produções do inconsciente que resultam de uma espécie de contrato entre o id, o ego e o super-ego.
[3] Segundo o ponto de vista psicanalítico a personalidade seria o resultado da interação entre três instancias: id, ego e super-ego.
[4] S. Freud, Observações psicoanalíticas sobre um caso de Paranoia, p. 1520
[5] S. Freud, Crença na Casualidade e na Superstição, em Psicopatologia da Vida Quotidiana, p. 918.
[6] Thematic Apperception Test, de H. A. Murray e C. D. Morgan.
[7] Children Apperception Test, de Leopold e Sorel Bellak.
[8] E. Hammer,  Tests Proyectivos Graficos, p. 22
[9] Op. cit., p.  22
[10] T. Craven, Leonardo Da Vinci, in: E. Hammer, Tests Proyectivos Graficos, p. 22
[11] Ruy Castro, O Anjo Pornográfico, p. 24.
[12] S. Freud,  O Poeta e os sonhos diurnos, p. 1.347.
[13] Durante a revisão bibliográfica que realizamos, encontramos vários trabalhos cujos resumos parecem indicar este tipo de leitura, que acaba por reduzir o valor de uma obra de arte às comprovações de uma determinada teoria.
[14] Podemos citar dois livros recentes que sairam no Brasil. Um deles de Waldemar Zusman, Os filmes que eu vi com Freud,  que, segundo Daniel Kupermann, “não consegue evitar excessos da imaginação interpretativa que, se não são inverdades teóricas, arriscam-se a decepcionar o leitor que encontra personagens marcantes do cinema demasiadamente simplificados, senão reduzidos à ‘exibição de doentes’, usual para fins didáticos na academia médica”, Jornal do Brasil, Caderno B, 25/03/95. O outro é o livro de Carmine Martuscello, O Teatro de Nelson Rodrigues - Uma leitura Psicanalítica, e que mereceu de Sonia Rodrigues Motta uma crítica ferina: “O livro perde quando o autor se dispõe a psicanalisar não os personagens, mas o autor das peças. (...) Temas recorrentes, e até obsessivos, como rivalidade entre irmãos, adultério, vingança, morte, incesto, não são uma característica exclusiva do universo rodriguiano. Mantendo-se no limite por ele mesmo proposto, do ‘exame psicológico da obra de Nelson Rodrigues’, Martuscello correria menos riscos do que ao levantar hipóteses sobre os aparentes ‘desdobramentos projetivos da personalidade do autor, que lhe permitiriam expressar inconscientemente sua ‘ambivalência de  sentimentos em relação ao pai’, ou ‘os momentos em que o Édipo irrompe na obra teatral de Nelson’, ou aqueles que supostamente revelam que ‘em Nelson Rodrigues, a nostalgia da mãe é enorme. Essas hipóteses são arriscadas no terreno da teoria porque Nelson Rodrigues não foi psicanalisado por Carmine Martuscello.” O Globo, Segundo Caderno, 16/01/94, p. 6.
[15]Talvez seja preferível”, escreve Jensen, “atribuir a descrição dos processos psicológicos... à intuição poética...”, em Ernst Kris, Psicanálise da Arte, p. 20

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O Processo de Criação




____________________________________O Processo de Criação

Elza Rocha Pinto

O desejo utiliza uma ocasião do presente para projetar, conforme ao modelo do passado, uma imagem do porvir.[1]
                                         Freud
A obra de arte - e sobretudo a obra literária - não se impõe apenas como um objeto de gozo ou de conhecimento; ela se oferece ao espírito como objeto de interrogação, de indagação, de perplexidade.  [2]
       Gaëtan Picon
Como um complemento ao referencial psicanalítico, achamos que cabia articular alguns pontos de vista sobre o proceder da criação artística. Principalmente no que diz respeito ao fenômeno da inspiração. E incluímos algumas questões sobre o papel da  sublimação. Apesar de Freud (1908) ter afirmado uma correlação entre a sublimação e a arte, existe no processo de criação um momento bem nítido que não se pode articular com as definições clássicas de sublimação. É a “travessia do fantasma”, como diz Pommier[3] ou a “manifestação do espírito” nas palavras de Artaud (1971).
Acreditamos que os trabalhos de leitura crítica que a psicanálise vem realizando sobre textos literários, não somente ampliam a compreensão de tais textos, como também permitem um entendimento maior sobre o próprio autor. Além de contribuírem para tornar mais claro o processo criativo. 
Freud se interessou por alguns pintores: Leonardo da Vinci (1910) e Miguel Angelo (1914), por escritores como Dostoievski (1928), do qual examina Os Irmãos Karamázov e Crime e Castigo. Da literatura estuda ainda a Gradiva de Jensen (1907) e algumas obras de Shakespeare.[4] Seus estudos muito contribuíram para fortalecer a compreensão de que é impossível separar o artista de sua criação. Ao realizar sua obra, o artista a envolve com seu estilo, imprimindo uma espécie de marca registrada nas suas criações.
Em O Poeta e os Sonhos Diurnos, Freud (1908) avança uma explicação sobre o processo da arte. Diz que existe uma grande aproximação entre a brincadeira da criança e a criação do artista.
Toda criança que brinca se conduz como um poeta, criando para si mesma um mundo próprio, ou, mais exatamente, situando as coisas de seu mundo em uma nova ordem, agradável para ela. [5]
A diferença estaria no fato do artista brincar apenas em sua imaginação. Enquanto a criança precisa do referente, no real, onde apoiar sua imaginação.
Para Freud , “a poesia, como o sonho diurno, é a continuação e o substitutivo dos jogos infantis”.[6] A criança ao crescer, interrompe o seu brincar, aparentemente renunciando ao prazer que extraía do jogo. Mas, na verdade, na poesia não existe renúncia alguma, apenas uma substituição onde o indivíduo vai prescindir “de qualquer apoio nos objetos reais, e em lugar de brincar, fantasia. Faz castelos no ar; cria aquilo que chamamos fantasias ou sonhos diurnos”. [7]
O artista vive intensamente seu mundo interior, apoiando-se não mais nos elementos externos - os brinquedos de quando era criança, - mas nos elementos simbólicos[8] já integrados em sua personalidade. Segundo Freud (1908), o artista teria uma necessidade inadiável de ultrapassar seus tormentos, elaborar seus conflitos e sentimentos contraditórios, sublimar, enfim, suas pulsões.
Freud indica o processo da sublimação, através da elaboração destas fantasias. A criação vai atravessar três dimensões do tempo[9]. A fantasia criadora surge da mesma forma que o sonho: através de enlaces múltiplos. Uma impressão atual, uma situação do presente, se torna capaz de despertar um desejo no sujeito. Acompanhamos Freud no desfiar destes tempos:
Uma fantasia flutua entre três tempos: os três fatores temporais de nossa atividade representativa. O trabalho anímico se enlaça a uma impressão atual, a uma ocasião do presente, capaz de despertar um dos grandes desejos do sujeito; a partir deste ponto, apreende regressivamente, a recordação de um acontecimento passado,  quase sempre infantil, na qual ficou satisfeito tal desejo, e cria então uma situação que se refere ao futuro, e que apresenta, como satisfação de tal desejo, o sonho diurno ou fantasia, a qual leva, então, em si, as marcas de sua origem, na ocasião e na recordação.  Assim, pois, o pretérito, o presente e o futuro, aparecem como que entrelaçados pelo fio do desejo, que passa através deles. [10]
Afirma Freud que, da mesma forma como os sonhos noturnos são satisfações de desejo, as fantasias e os sonhos diurnos também procuram realizar os anseios e expectativas do indivíduo.
Os escritores de novelas e contos produzem estórias com uma característica singular. Todas elas tem um protagonista que é o centro do interesse do autor e dos leitores. É através deste herói que se expressa o ego do autor. Segundo Freud, o ego é o real personagem de todos os sonhos e de todas as novelas. Mesmo nas tramas mais complexas dos enredos modernos. Freud vai afirmar que a novela psicológica deve sua peculiaridade “à tendência do poeta moderno a dissociar seu ego por meio da auto-observação em egos parciais, e personificar em conseqüência em vários heróis as correntes contraditórias de sua vida anímica.” [11]
Ou seja, é o desejo do sujeito que flui através da relação que a fantasia mantém com o passado, com o presente e com o futuro:
Um poderoso acontecimento atual desperta no poeta a recordação de um acontecimento anterior, pertencente quase sempre a sua infância, e desta parte então o desejo, que se cria satisfação na obra poética, a qual do mesmo modo deixa ver elementos da ocasião recente e da antiga recordação. [12] 
Finalmente, Freud faz considerações sobre o processo psicológico dos poetas, afirmando que a vida do artista precisa ser levada em consideração, pois seus conflitos íntimos influem na elaboração da obra. Esta conclusão vai ser desenvolvida por Freud, através dos conceitos de projeção e sublimação. A ideia de uma determinação inconsciente não é nova. Traduz uma retomada do pensamento platônico. Platão (1952), se bem que não se refira a conflitos íntimos, afirma que o bom poeta é aquele que enlouquece. Ao criar ele está obedecendo a razões de ordem extra-lógica, para além do alcance de sua consciência.
O próprio Nelson Rodrigues compartilha desta opinião de Freud, uma vez que são constantes as suas referências ao menino que vivia enterrado nele e que lhe trazia lembranças de um passado profundo. Muitas das suas crônicas, refazem seu mundo infantil, onde ele muitas vezes foi o espectador de cenas trágicas e cruéis.[13] Em suas peças, onde a morte é um elemento constante, esta morte raramente é natural. Os desfechos trágicos ocorrem em função de violências. Sábato Magaldi (1987) diz que o próprio Nelson Rodrigues gostava de afirmar que ele tinha sido marcado pelo assassinato de seu irmão Roberto.
Sobre esta questão é bem interessante o diálogo que Sócrates mantém com Íon, onde o filósofo afirma que o artista ao fazer seus lindos versos, da mesma forma como o ator ao representar intensamente seus personagens, eles não estão em seu juízo perfeito. Perdem a consciência, caindo na esfera de atração da divindade, e só assim, inspirado pela Musa ele será capaz de fascinar os outros com seu canto, sua música ou sua dança.[14] Assim a criação literária, para Platão, também obedecia a um sentido oculto, que era necessário investigar.[15]









[1]  S. Freud, O Poeta e os Sonhos Diurnos, p. 1344
[2] Citado por Valmir Adamor da Silva, em Psicanálise da Criação Literária - As neuroses dos grandes escritores., p. 20.
[3] Gérard Pommier, A sublimação e o  final da análise - em  Revista Arriscado - ano II, nº. 4.
[4] Como Hamlet, Othelo e Macbeth.
[5] S.  Freud, O Poeta e os Sonhos Diurnos, p. 1234.
[6] Op. cit., p.  1347.
[7] Op. cit., p. 1344.
[8] Na literatura a criação artística vai simbolizar através das palavras aquilo que o autor pretende dizer.  O elemento simbólico - a palavra - substitui o referente.
[9] A criação, para Freud, vai ser o resultado do enlace entre passado, presente e futuro. Algo na vivência presente do artista se enlaça com algum acontecimento do seu passado e ele, então, se expressa na obra de arte. E esta se lança para o futuro, uma vez que cria um mundo inexistente, um mundo virtual, nem presente, nem passado, um mundo ainda por vir.
[10] O grifo é nosso. S. Freud, O Poeta e os Sonhos Diurnos, p. 1344
[11] Op. cit., p.  1347. Esta afirmação de Freud acaba dando oportunidade para uma contribuição de Melanie Klein, em artigo datado de 1929, A personificação no brinquedo das crianças, onde ela sistematiza e amplia esta idéia. A criança personifica através de seus brinquedos não apenas seu Ego, mas conteúdos do Id e do Super-Ego, que são distribuídos através dos diversos personagens que fazem parte da trama de uma determinada brincadeira. Assim como a criança, ao brincar, vai depositando partes suas nos diversos personagens da brincadeira, um romancista ao desenvolver seu enredo também vai distribuindo características da sua personalidade através dos diversos heróis da trama.  Um exemplo do próprio Nelson Rodrigues pode ilustrar este fato. Numa das mudanças feitas por sua família, Nelson encontrou um diário de uma adolescente, entre os pertences esquecidos pelos antigos moradores. E passa a ler, curiosamente, as confissões da jovem, cujo nome era Alaíde. Nelson parece ter sentido sua curiosidade como coisa de mulher, tanto que projeta este pequeno incidente em Vestido de Noiva, onde Alaíde acha o diário Mme. Clessy, passando a lê-lo atentamente. Ao mesmo tempo projeta outros aspectos de sua vida em outros personagenes. A expectativa diante da operação da moça, atropelada em frente ao relógio da Glória leva as pessoas a especular sobre se ela vai morrer ou nao. Este fato parece refletir a ansiedade pela qual a família Rodrigues atravessou, quando seu tio Augusto Rodrigues, desapareceu durante dias; ele havia morrido atropelado, em frente ao mesmo relógio, e estava sem documentos.Freud, S. O poeta e os sonhos diurnos, Pag. 1347. Esta afirmação de Freud acaba dando oportunidade para uma contribuição de Melanie Klein, num artigo de 1929, A personificação no brinquedo das crianças, onde ela sistematiza e amplia esta idéia de Freud. A criança personifica através do brinquedo não apenas seu Ego, mas conteúdos do Id e do Super-Ego, que são distribuídos através dos diversos personagens que fazem parte da trama de uma determinada brincadeiraFreud, S. O poeta e os sonhos diurnos, Pag. 1347. Esta afirmação de Freud acaba dando oportunidade para uma contribuição de Melanie Klein, num artigo de 1929, A personificação no brinquedo das crianças, onde ela sistematiza e amplia esta idéia de Freud. A criança personifica através do brinquedo não apenas seu Ego, mas conteúdos do Id e do Super-Ego, que são distribuídos através dos diversos personagens que fazem parte da trama de uma determinada brincadeira
[12] Op. cit., p. 1347
[13] Como o suicídio da adolescente que foi sua primeira paixão platônica de menino. A esse propósito, ver Lilia ardeu como uma estrela, em Nelson Rodrigues, O Óbvio Ululante, p. 39.
[14] Plato,  Íon, p. 142  .
[15] Em oposição, Aristóteles em sua Arte Poética não via razão para se preocupar com os motivos que levam um homem a escrever. As condições individuais que dão origem a uma obra de arte não importam. Aristóteles não estuda o gênio na arte. Para ele a tendência à criação poética podia ser vista como uma manifestação instintiva fundamental. “A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância (...) Pela imitação adquire seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam prazer (...) a aquisição de um conhecimento arrebata não só o filósofo, mas todos os seres humanos, mesmo que não saboreiem durante muito tempo essa satisfação. Sentem prazer em olhar essas imagens, cuja vista os instrui e os induz a discorrer sobre cada uma (...) Como nos é natural a tendência à imitação, bem como o gôsto da harmonia e do ritmo (...), na origem os homens mais aptos por natureza para estes exercícios aos poucos foram dando origem à poesia ou suas improvisações.” Aristóteles, Arte Poética, p. 294.  Aristóteles entendia que a análise estética se esgotava na própria obra de arte. Interessa-se pelo fim a que se propunha a obra, e pelos meios que a criação artística empregava, pricipalmente no domínio do teatro. Ao tentar precisar as características do belo, ele insiste mais nos elementos racionais, do que nos sensíveis. O belo residiria na grandeza da ordem. Suas formas se expressam através da unidade ou coordenação (proporção ou simetria, no sentido grego), na determinação ou precisão. Aristóteles, Arte Poética, p. 283.