quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Estética da Loucura



___          ____________ __________        A Estética da Loucura

Elza Rocha Pinto

     A tragédia no palco não me basta mais, vou transportá-la para minha vida [1]
                                                       Artaud
Os super-homens suportam com dignidade, ou para usar ainda a palavra nietzschena, com nobreza, esta experiência do pensamento que Nietzsche vai chamar de horror,  a loucura. Por ela passaram homens como Hölderlin, Nerval, Maupassant, Rinbaud, Verlaine, pintores geniais como Van Gogh; músicos como Schumann, Henri Duparc, Maurice Ravel; ou mesmo bailarinos como Nijinski, o qual escolheu uma forma sensual de expressar seu pensamento: através da dança.
Todos eles trilharam um caminho fora da medida, atravessando a desrazão. Neles a ética da criação procurava o desatino. Bukowski, alcoólatra convicto, refletiu cristalinamente esta demanda quando uma vez respondeu a alguém que queria salvá-lo da miséria e do alcoolismo: “Não se pode escrever nada de bom fora do sofrimento”.[2] A criação para Nietzsche tem sua matriz no sofrimento e nas paixões dilacerantes. Foi isto que Artaud tentava esclarecer em sua carta ao Dr. Ferdière, e que por ser tão expressiva resolvemos transcrevê-la integralmente:
Algo de meu mundo interior lhe escapa e o senhor sente raiva de mim por eu me abrir com outras pessoas. Não é isso que eu pretendo. Eu sempre quis levá-lo para dentro de minha esfera poética própria, mas percebi que o senhor não queria acreditar nela e isso me dilacera o coração. Os estados místicos do poeta não são manifestações de delírio, Dr. Ferdière. São a base de sua poesia.
Considerar-me um alucinado é negar o valor poético do sofrimento que desde a idade de 15 anos vive em mim diante das maravilhas do mundo do espírito que o ser da vida real nunca pode realizar; e é deste sofrimento admirável do ser que extraí meus poemas e meus cantos. Como é que aquilo de que o senhor gosta em minha obra não o leva a gostar da mesma coisa existente em mim enquanto este personagem que sou? É de meu eu profundo que extraio meus poemas e meus textos e o senhor gosta deles. Todo poeta é um Vidente. E é de seu Iluminismo que Rimbaud extraiu as Iluminações e Temporadas no Inferno. E William Blake viu no mundo místico do Espírito o objeto destas visões maravilhosas transcritas no Casamento entre o Céu e o Inferno. Se eu não acreditasse nas imagens místicas de meu coração, não conseguiria dar-lhes vida.
Creio no Céu, Dr. Ferdière, mesmo não crendo no Inferno, e considero uma revoltante falta de piedade taxar de delirantes as imagens que me forjo desse céu.
Em Paris, o senhor me havia prometido defender-me sempre e me disse que meus estados místicos eram a própria verdade e não um delírio doentio, e que seria preciso o advento de uma época de crimes, de ignorância e loucura para tratá-los como doença. Suplico que se lembre de sua verdadeira alma e compreenda que uma outra série de eletrochoques me aniquilaria.
E não creio que em sã consciência o senhor deseja isso. [3]
Deixando de lado o fato de Artaud estar tentando livrar-se de uma nova série de eletrochoques, a lucidez na formulação do problema transcende qualquer razão imediata. Ela coloca em foco uma das questões centrais da criação poética. Principalmente quando aquele que cria recebe o rótulo de doente mental. Antecipando Foucault, que vai tornar claro as várias capturas do fenômeno, Artaud defende o contexto da loucura como criação poética,  posicionando-se  contra seu amesquinhamento como doença mental. [4]
Como as pessoas podem gostar de uma obra por aquilo que ela deixa entrever, e odiar a mesma coisa quando ela se apresenta na pessoa? É esta a pergunta de Artaud. Aparentemente o que pertuba as pessoas é o fato do poeta acreditar em suas imagens. Esta crença dá às imagens uma materialidade, uma densidade e realidade que não se suporta facilmente. Não é fácil aceitar as falsas sensações, como por exemplo a audição colorida, através da qual Rimbaud (1960) emprestava cores aos sons das vogais;[5] ou então como na demanda da nota azul de Chopin.[6]
Para a maioria das pessoas a arte torna-se aceitável enquanto for elemento de um mundo irreal, fictício, longínquo. Com o qual apenas se brinca de acreditar. Mas quando alguém, como Artaud, afirma tais imagens como verdadeiras e necessárias, o recurso mais imediato é taxá-las de delirantes. E interna-se o poeta. No hospício ou na prisão. “Esquizofrenia visceral de uma sociedade que propaga esta bactéria como uma epidemia”.[7] Quando o preconceito não pode desprezar a obra, por ela ser muito bela, acaba-se por desprezar o poeta, numa epidemia de desqualificações: Artaud e Van Gogh eram loucos; Rimbaud, um gênio, porém crápula e pervertido; Ezra Pound, um fascista, anti-semita; os contos de Borges são obras primas, mas seu autor é um narcisista. No Brasil, durante anos Jorge Amado foi considerado um autor menor, superficial e palatável, apesar de ser um dos escritores que melhor retrata a alma e a cultura baiana. Nelson Rodrigues? Um degenerado e obsceno, eternamente mergulhado na lama.[8]
Foucault perguntaria quem dita essas classificações. E em que circunstâncias? Os poetas, os grandes criadores, os super-homens nunca foram bons cidadãos do rebanho.
Lamentavelmente por vezes a psicanálise acaba servindo a estes objetivos, de assujeitamento. Através de alguns de seus conceitos que desempenham tal papel inocentemente. Ou através da boa vontade e do bom senso  de alguns psicanalistas. A nível teórico, a determinação da sublimação como meta do social é um dos melhores caminhos para estremecer o território do poeta. Artaud, por exemplo, jamais aceitaria uma tal proposta. Para ele não se poderia falar em  jogar qualquer substituto para a meta da pulsão. Indignado, ele denuncia em Van Gogh, o Suicidado da Sociedade:
O doutor Gachet não chegou a dizer a Van Gogh que estava ali para endireitar sua pintura (como ouvi o doutor Gaston Ferdière, médico-chefe do manicômio de Rodez, dizer que estava ali para endireitar minha poesia), porém mandava-o pintar a natureza, sepultar-se na paisagem para evitar a tortura de pensar. [9]


[1]  Carta a Jean Louis Barrault, em Teixeira Coelho, Artaud, p. 14.
[2] Charles Bukowski, em Barfly, de Barbet Schroder, 1987.
[3] Citado por Teixeira Coelho, Antonin Artaud, p.  25. 
[4] Foucault  vai mostrar em História da Loucura como os critérios para a definição da loucura, assim como as razões para o encarceramento dos loucos, traduziam diferentes motivos sociais. Artaud em Van Gogh, o Suicidado da Sociedade, faz uma áspera crítica destes motivos. Entretanto seu alvo mais direto é a psiquiatria. Diz ele: “Em todo demente há um gênio incompreendido cujas idéias, brilhando na sua cabeça, apavoram as pessoas,  e que só no delírio consegue encontrar uma saída para o cerceamento que a vida lhe preparou. A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença para assim ter uma razão de ser; mas a psiquitria nasceu da multidão vulgar de pessoas que quiseram presevar o mal como fonte da doença. E que assim produziram do seu próprio nada, uma espécie de Guarda Suiça, para extirpar na raiz o espírito de rebelião reivindicatória que está na origem do gênio. É quase impossível ser ao mesmo tempo médico e uma pessoa honesta. Mas é escandalosamente impossível ser psiquiatra sem estar ao mesmo tempo marcado pela mais indiscutível loucura: a de ser incapaz de resistir ao velho reflexo atávico da multidão que converte qualquer homem da ciência aprisionado na turba numa espécie de inimigo nato e inato de todo gênio”.  Antonin Artaud, em Escritos, p. 139.
[5] Ver o poema Voyelles, A. Rimbaud, Poèmes, p. 106.
[6] Era assim que Chopin denominava seus momentos de inspiração. Só quando atingia Zal, como ele chamava sua nota azul, é que ele conseguia improvisar.
[7] Antonin Artaud,  Van Gogh, o suicidado da sociedade,  em  Escritos.
[8]  Em  22/8/67 sai um artigo em O Jornal, com o título O Album só de negativos, onde um anônimo repórter escreve o seguinte: “Não me conformo em ver integralmente sórdidos todos os seres, todos com o pé na lama, nenhum tendo um instante na vida que seja para o sorriso de bondade e ternura. Todo homem, por pior que seja, tem um momento em que se descuida e experimenta um bom sentimento; todo diabo tem a sua fraqueza de anjo, num relance inesperado. Os personagens de Album de Família, não: não é sangue humano o que lhes corre nas veias - é pus. Eles falam e o hálito é de carniça. Nenhum deles tem olhos para ver um amanhecer tranquilo, a flor desabrochando, o vôo da andorinha; só olhos para o charco”. O Jornal, 22/8/67.
[9] Op. cit., p. 139.