quarta-feira, 13 de agosto de 2008

A Criação Artística e a Obra de Nelson Rodrigues



A Importância da Criação Artística e o Contexto da Obra de Nelson Rodrigues

Elza Rocha Pinto


Para entender Nelson Rodrigues é preciso desdobrar um outro assunto, que tangencia este autor. É aquilo que diz respeito ao próprio acontecer da criação. Nelson Rodrigues em várias ocasiões afirmou que sua obra era decorrência de sua vida. Através da escrita Nelson pôde suportar tantas tragédias que marcaram sua existência.[1] Desde seu início a psicanálise vem contribuindo para a compreensão da criatividade. Freud (1908) afirmou a existência de uma relação entre o artista e sua obra. Apesar de não ser original, esta reafirmação deu impulso, na modernidade, a uma série de leituras psicanalíticas: dos textos e de seus autores. Apesar de nosso interesse ser a leitura de Álbum de Família, não poderíamos deixar de aproveitar a ocasião para desenvolver, em paralelo, uma discussão sobre alguns aspectos da criação.
Muitas pessoas vêm se dedicando à aplicação da psicanálise ao território da arte, numa tentativa de responder ao problema instigador, colocado por Ernst Kris (1968), que se questiona sobre o significado que uma obra de arte tem para seu autor e para o público. Segundo Kris, a psicanálise pode contribuir muito para este vasto campo de investigação. E de fato isto vem acontecendo. Procuramos realizar um levantamento bibliográfico a este respeito. Mas já podemos adiantar que, no Brasil, estes estudos são ainda em pequeno número. Podemos citar, entre outros, os diversos artigos que Maria Luiza Assumpção[2] vem publicando como resultado de sua ampla pesquisa sobre Machado de Assis. Encontramos ainda um ensaio intitulado Freud e Shakespeare, do casal Portella Nunes, e dois artigos de P. A. Corrêa Netto, Os Sete Crimes de Édipo, e O Complexo de Macbeth. Além destes artigos, destacamos também dois livros publicados recentemente: O Teatro de Nelson Rodrigues - Uma Leitura Psicanalítica, de Carmine Martuscello, e Os filmes que eu vi com Freud, de Waldemar Zusman. Um deles traduz a visão psicanalítica de seu autor sobre alguns filmes; enquanto o outro realiza uma interpretação psicanalítica sobre algumas peças de Nelson Rodrigues; lamentavelmente Álbum de Família não faz parte da seleção do autor. 
Mas a nível internacional podemos citar a realização de incontáveis trabalhos. Através da Internet tivemos oportunidade de entrar em contato com um conjunto de conferências do Institute for Psychological Study of the Arts (IPSA), o qual funciona na Universidade da Flórida, nos Estados Unidos.[3] Este Instituto mantém uma forum de discussão,[4] que se chama Psy-Art. Seu objetivo é o estudo da literatura em particular, e das artes em geral.[5] A relação dos livros que se propõem a discutir psicanálise e arte é bastante extenso.[6] Fizemos uma seleção de alguns títulos que nos pareceram mais pertinentes, que pretendemos publicar em um texto em separado.[7]
Porém, para entender melhor o texto de
Álbum de Família
, será necessário contextualizar esta peça em relação à biografia do autor.  Muitos pessoas concordariam com a afirmação de que, para além dos motivos individuais,  a arte é uma função de causas sociais e históricas.  A situação histórica determina o ambiente no qual a criação terá  lugar. A arte não surge num espaço vazio. Nelson Rodrigues, uma vez escreveu: “Vem assim dos meus sete anos casimirianos, toda a minha compaixão pela infiel. É um sentimento que sobe, que se irradia de não sei que profundezas. Muito mais tarde, já homem feito, escrevi um drama cujas raízes estão cravadas na Rua Alegre”.[8] Não se pode pensar em uma orfandade de influências. Nenhum artista é independente daqueles que o antecederam. Podemos dizer que o artista trilha o mesmo caminho que um adolescente, na árdua construção de  sua identidade, e de seu estilo pessoal. Também o artista parte de modelos e possui seus ídolos.[9] O artista está imerso em uma determinada cultura e, “como o cientista e o filósofo, faz parte de uma tradição específica e opera dentro de uma determinada problemática”.[10]
A obra de Nelson Rodrigues ganha um maior relevo quando podemos enquadrá-la corretamente no decurso da história. Ele inaugura o teatro da modernidade. Mas para se ter a dimensão real deste fenômeno é preciso realizar um mínimo enquadramento da época que Nelson viveu, através de sua biografia.  Por isto, em outros artigos vamos procurar traçar o contexto da época em que a peça foi escrita e montada, situando alguns aspectos do teatro brasileiro, assim como a reação causada pelas montagens de suas primeiras peças. Pensamos que desta forma poderíamos configurar melhor a situação de Álbum de Família, dentro de uma continuidade de ações e reações que se estende pela década de 40. É um período que se inicia com A Mulher sem Pecado e se encerra com Dorotéia, processo através do qual Nelson Rodrigues ganhou o estatuto de autor maldito.
Finalmente o último capítulo será dedicado à análise do texto que escolhemos. 





[1] “Se eu não escrevesse, seria um desgraçado. A rigor, se voce examinar bem, todos os meus personagens são tristes”. Citado por Carlos Vogt e Berta Waldman, Nelson Rodrigues, flor de obssessão, p. 62.
[2] Até onde sabemos já sairam quatro artigos de Maria Luiza Teixeira de Assumpção publicados na revista Arquivos Brasileiros de Psicologia entre 1991 e 1995. Sua interpretação do escritor é realizada através da consideração de um amplo espectro de seus romances. E além disto são considerados não apenas dados pessoais, informações gerais sobre sua vida familiar e profissional, sobre a vida das pessoas com as quais Machado conviveu. Mas também inclui uma minuciosa e atenta análise sociológica e cultural do Brasil da época. Em O projeto inconsciente de Machado de Assis, por exemplo, a autora trabalha com o conceito do “espaço vivido” de Gisela Pankow, e vai abordar a dinâmica da espacialidade no mundo de Machado de Assis.
[3] Localizado na Universidade da Flórida, o Institute for Psychological Study of the Arts foi fundado em 1984 por Norman Nelson Holland e por seu atual diretor Peter L. Rudnytsky. Conta atualmente com inúmeros associados, sendo responsável por várias atividades, entre as quais o Group for the Application of Psychology. O GAP se encontra mensalmente para a discussão de artigos pré-determinados. Sua composição é interdisciplinar, contando com membros americanos e europeus, participantes ou não da academia. A programação de 1992 a 1994 incluiu a apresentação de temas como: Psicanálise e Melodrama (prof. Scott Nygren, da Inglaterra);  A receptividade do Freudismo na Moderna Literatura Chinesa (prof. Wang Ning da Universidade de Pekim); Gata em Teto de Zinco Quente, um Auto-Retrato Simbólico (prof. Marian Price, da Universidade da Florida Central); O mundo Interno de Paul Gauguin (prof. John E. Gedo, M.D. do Instituto Psicanalítico de Chicago); A linguagem do corpo (prof. Martin Glisrman da Universidade Rutgers); Male Masochism, Spectatorship, and Performance Therory (prof. Lisa Starks da East Texas State University), entre outros.
[4] Este forum de discussão conta atualmente com cinco mil participantes de várias partes do mundo.
[5] O IPSA mantém arquivos sobre as conferências já realizadas, além de dois arquivos bibliográficos cobrindo os anos de 1993 e 1994. Todos estes  arquivos podem ser obtidos através de ftp anônimo. Embora recebam comentários, artigos e conferências de outras orientações psicológicas, a tendência do forum é manter-se dentro do registro psicanalítico, como afirma seu moderador, o prof. Norman Nelson Holland. Além das conferências importamos, via Internet, os arquivos IPSA Abstracts and Bibliography in Literature and Psychology, com a intenção de fazermos uma revisão bibliográfica sobre a leitura psicanalítica de romances, poemas, pinturas ou filmes. 
[6] Em 1993 abrange em torno de mil títulos, chegando perto de 1600 em 1994.  Achamos que seria interessante a realização de um levantamento que delimitasse certos tópicos pertinentes ao nosso estudo.
[7] Neste próximo artigo vamos incluir, inclusive, outros trabalhos brasileiros.
[8] A Rua Alegre foi onde Nelson passou sua infância. Fica na Aldeia Campista.  Neste momento ele se refere a Perdoa-me por me Traíres. Memórias de Nelson Rodrigues, p. 58-26
[9] Mesmo que seja para adotar depois uma filosofia do martelo, e dizer como Nietzche: “Em geral não gosto de aprovar; prefiro contradizer e até negar”. Como foi o caso de Nelson Rodrigues, em relação ao teatro tradicional. Nosso autor admirava O’Neill, de quem sofreu influências, inclusive na escolha de algumas temáticas. Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, p. 105
[10] Ernst Kris, Psicanálise da Arte, p. 19