quarta-feira, 25 de maio de 2011

Arte e Sublimação



 


___________________________Arte e Sublimação 

Elza Rocha Pinto

 O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que às vezes finge que é dor, a dor que deveras sente.                                  
                                  Fernando Pessoa
Sendo a arte uma manifestação das paixões do artista, a psicanálise cuja matéria essencial é o desejo, sempre contribuiu  para esclarecer alguns dos motivos determinantes do poeta.  Ou seja, o conhecimento que a psicanálise organizou em torno da subjetividade, com certeza auxilia na maior compreensão  do artista em seu processo criador. Neste domínio gostaríamos de examinar  duas idéias.
A primeira é a que se refere à obra como uma formação de compromisso, onde ocorre a projeção de várias instâncias da personalidade, fragmentadas nos diversos personagens.[1] Para a psicanálise o artista não pode fugir de si mesmo. Seus desejos inconscientes vão transacionar com o possível estabelecido pelas restrições do real e da moral. E o resultado desta transação será expresso através de uma das várias formas artísticas. Caso procure se esconder, ou tentar  controlar a expressão de seus impulsos, o artista   transformará seu trabalho numa produção menor. Da mesma forma Platão afirmava que só sob inspiração divina o artista poderia chegar a compor versos que iriam contagiar a platéia. Sem a inspiração da loucura o artista poderia até criar, mas sua arte não teria o mesmo poder de encantamento e fascínio. Na falta de uma melhor tradução, preferimos deixar o texto em inglês:
For the poet is a light and winged and holy thing, and there is no invention in him until he has been inspired and is out of his senses, and the mind is no longer in him: when he has not attained to this state, he is powerless and is unable to utter his oracles. [2]
Fora desta condição de dominação inconsciente, a arte deixará de ser espontânea, para ser fabricada. Deixará de ser inspirada, para ser cerebral e racionalizada. Aquilo que os artistas chamam de inspiração se refere a esta inexorabilidade da expressão inconsciente. E parece ter correspondência com o que Nietzsche (1982) chamava de  intuição, ao criticar o predomínio da razão,  no mundo ocidental.
A segunda idéia que gostaríamos de examinar, refere-se à hipótese psicanalítica  que afirma a arte como sublimação das pulsões. A sublimação, como já vimos,  é uma das inúmeras defesas que fazem parte do aparelho psíquico. Situa-se entre outras, como  a projeção, a racionalização, a idealização, a identificação. O termo sublimação passa por uma série de transformações em Freud, o que pode gerar algumas confusões. Segundo Kris (1968) a sublimação designaria dois processos intimamente relacionados, de tal forma que em geral são fundidos um no outro, e transformado em um único e mesmo processo: “o deslocamento de energia de um objetivo socialmente inaceitável para um outro aceitável, com uma transformação  da  energia empregada”.[3] Numa tentativa de clarificação, Sophie Mellor-Picaut em seu artigo Idéalisation et Sublimation acompanha o desenvolvimento do conceito na obra de Freud, mostrando como ele vai ganhando a conotação de um deslocamento para o alto, numa “associação com o sutil ou com o sublime que o aproxima dos ideais”.  A partir de O Ego e o Id  a sublimação “como um processo de metabolização da pulsão”, diz Mellor-Picaut, “não se limitou a uma definição em termos de afastamento de um objetivo sexual ou de intelectualização.” A noção tinha se aproximado do mecanismo da identificação:
Esta última, como processo de metabolização da pulsão, não é limitada a uma definição em termos de afastamento do objetivo sexual, ou de intelectualização. Em troca, ela se aproxima da identificação, portanto de uma operação onde o Eu renuncia a achar seus objetos ideais no exterior dele mesmo e, pela introjeção precedida pela renúncia de seus objetos, faz dela seu elemento constitutivo mais importante.[4]
A pulsão inconsciente procura sua realização através dos novos objetivos que vão sendo incorporados ao Ego. Estes ideais, por sua vez, vão surgindo através das várias identificações que se processam no decorrer do processo do desenvolvimento.
O artista utiliza-se da projeção como uma forma de catarse, para se livrar de conteúdos angustiantes e conflitivos. Mas, por outro lado, ele está em processo de sublimação destes  impulsos, transferindo para as obras uma libido dessexualizada, que acaba por domesticar as pulsões mais primitivas. Neste sentido a arte pode ser definida como o faz Adamor Silva (1984):
Arte é, pois, a confissão simbólica de segredos inconfessáveis. Como nos estados oníricos funciona como verdadeiro extravasamento, requerendo um psicanalista hábil para transformar o conteúdo latente em conteúdo manifesto. [5]
O psicanalista neste caso seria o próprio artista, capaz de se auto-interpretar, traduzindo o conteúdo latente de seu mundo interior em conteúdos disfarçados, que vão conformar a obra de arte. Esta opinião seria com facilidade compartilhada por Nelson Rodrigues, que uma vez fez uma comparação entre seu ofício de escritor e a psicanálise. Reconheceu que sua obra funcionava como uma sessão de análise, ainda que ele sempre reafirmasse a sua posição contrária às teorias de Freud:
Vivo preso à minha infância profunda. Trago-a dentro de mim. Como também o desejo intenso de amar o ser humano. Eu não diria que a minha obra é uma análise, porque o psicanalista não existe no meu caso. A minha obra é o que me salva. É possível que sem a minha obra - se eu não fosse dramaturgo, se eu não fosse romancista, se eu não fosse tudo isso - eu tivesse levado a breca. Eu podia estar na esquina rasgando dinheiro, caso não tivesse essa possibilidade de expressão. Este é o meu caso. [6]
É esta delimitação da arte como sublimação que vai permitir Freud (1914) afirmar que Miguel Angelo, ao esculpir estátuas de nus masculinos estaria sublimando a própria homossexualidade. Já Dostoievski[7] sublimava seus impulsos parricidas através de seus personagens. E, em radicalizadas generalizações encontramos alguns autores como o próprio Adamor Silva (1984) afirmando que o tema do adultério tão freqüente em contos, novelas, filmes ou poesias, nada mais seria do que a sublimação do incestuoso complexo de Édipo. O artista, livre da culpa de uma relação proibida, transferiria esta responsabilidade para o amor ilícito de seus próprios personagens.[8]
Sem dúvida a arte permite uma forma diferente de lidar com as paixões interiores. O homem comum, diante de suas pulsões, vai procurar uma fuga. Seu objetivo é evitar o sofrimento através de processos defensivos, ou da ação de censura do superego. Ele procura inibir ou reprimir as tendências que considera agressivas ou amorais. Poderá representar suas fantasias mais perversas, criar o domínio dos sintomas, materializando uma neurose ou uma perversão. Poderá até mesmo enlouquecer, para fugir de um desatino maior, ao lidar com os flagelos das tensões. Já o criminoso e o psicopata se livram da angústia e do sofrimento de uma outra forma. Eles realizam o ato delituoso. Mas todos estes dramas  se passam no território do homem mediano. Porque nos domínios do artista passa-se algo diferente. Em seu artigo, O projeto Inconsciente de Machado de Assis, Maria Luiza T. Assumpção sintetiza a questão da sublimação:
Entre o mundo interno e o mundo externo há uma área de ilusão, onde se dá a criação e a representação. Através da sublimação representam-se ações que de outra forma não seriam aceitas pelo social, não seriam liberadas.[9]
O artista tem recursos para se liberar destas ações. Nele a sublimação se especializa: inspira-se em desejos inconfessáveis, dessexualiza os impulsos da libido, alivia tensões fazendo a catarse, e cria a obra de arte.




[1] Melanie Klein, em artigo de 1929, A personificação no jogo das crianças, mantendo a analogia que Freud faz entre o sonho e o brinquedo, explicita melhor esta idéia. O conteúdo do brinquedo da criança, que se repete constantemente, teria como função a descarga das fantasias sexuais. Indica a personificação como um mecanismo importante no brinquedo que a criança inventa. Através dos personagens que a criança introduz no jogo, vão se personificando as instâncias da personalidade. Dois bonecos em uma brincadeira podem estar fazendo a parte do super-ego e do ego, enquanto que em outro jogo podem desempenhar os papeis do id e do ideal do ego. O super-ego pode se dissociar em suas identificações primárias, que foram introjetadas durante os diferentes estágios do desenvolvimento. “Creio que estes mecanismos (dissociacão e projeção) são um fator principal na tendência à personificação no jogo (...) O conflito intrapsíquico se faz assim menos violento e pode ser deslocado para o mundo externo”.  Os jogos implicam personificações através do mecanismo de representação de personagens. Os personagens podem apresentar rápidas modificações; o amigo pode se transformar em inimigo; a bruxa má se transforma numa fada madrinha. Muitas vezes, estas modificações são observadas depois de uma interpretação, que acabou por permitir que a liberação da ansiedade, até então mal resolvida por uma inadequada dinâmica interna. As imagos terroríficas da primeira infância vão se transformando em identificações mais benévolas, diminuindo-se a severidade do super-ego, fortalecendo-se o ego, e permitindo-se uma expressão controlada das pulsões do id.  Melanie Klein, A personificação no jogo das crianças, em Contribuciones Al Psicoanalisis, p. 196.
[2] Plato, Íon, p. 144
[3] O grifo é nosso. Ernst Kris, Psicanálise da Arte, p. 22/23
[4] Sophie Mellor-Picaut, Idéalisation et sublimation, p. 137
[5] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária - As neuroses dos grandes escritores, p. 32.
[6] Citado por Stella Rodrigues, Nelson Rodrigues, meu irmão.
[7] S. Freud, Dostoievsky e o parricídio.
[8] Concordamos em tese com esta interpretação. Porém temos que lembrar as circunstâncias especiais que regem determinadas traições. Em Nelson Rodrigues, por exemplo, a traição feminina parece estar vinculada à intensa luta da mulher pela conquista de uma sexualidade mais livre. Além disto é preciso considerar que o prazer da traição, em si mesmo, tem um peso. Sobre esta questão, é o próprio Nelson Rodrigues quem fala: A vida como ela é... foi realmente durante 10 anos, dia após dia, um sucesso ferocíssimo, uma coisa incrível. Embora todo mundo a achasse imoral, mórbida, etc. Durante 10 anos, dia após dia, o leitor tomava conhecimento do adultério do dia. A única coisa que realmente não morre como estória é o adultério, seja até um adultério de galinheiro, de galinhas. Faz um sucesso incrível, e o negócio de trair, a mulher trair, ora, esse é o destino dela. E o homem compreende isso. É uma coisa deliciosa, uma satisfação cruel, incrível”. Nelson Rodrigues, Depoimento prestado ao Serviço Nacional do Teatro, em 4/12/1974, p. 115.
[9] Maria Luiza Teixeira de Assumpção, O Projeto Incosciente de Machado de Assis.  Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 43, nº. 3/4, 79-105, 1991, p. 103.