sábado, 13 de agosto de 2011

Relação entre Sofrimento e Criação



 ______  __  ______________________A Criação e o Sofrimento

Elza Rocha Pinto


 Nunca ninguém escreveu ou pintou,
        esculpiu, modelou, construiu, inventou,
  a não ser para sair realmente do inferno.[1]
                                                     Artaud
Mas, e o que leva o homem até a expressão de seus conflitos através de uma obra de arte? A inspiração, motivada pelo sofrimento, seria uma das respostas possíveis. Dentro de uma concepção trágica da criação, alguns artistas chegam a afirmar que o sofrimento é essencial para a qualidade da obra de arte.  Freud (1908) aceita  esta perspectiva, tanto que em O poeta e os sonhos diurnos, ele observa:
Pode-se afirmar que o homem feliz jamais fantasia, e sim somente aquele que é insatisfeito. As pulsões insatisfeitas são as forças impulsionadoras das fantasias, e cada fantasia é uma satisfação de desejos, uma retificação da realidade insatisfatória. [2]
Esta posição de Freud vai ser desdobrada pelo escritor e contista Adamor da Silva , um admirador da psicanálise. Entre diversas publicações este autor tem um livro muito interessante, onde analisa inúmeras poesias e romances do ponto de vista psicanalítico. E é em Psicanálise da Criação Literária, que encontramos o seguinte:
Sem a concorrência da neurose, ou mesmo leves conflitos psíquicos, a Arte seria medíocre. Para sua realização completa há invariavelmente, a presença da dor, do sofrimento, e até da infelicidade. É a regra geral da qual poucos fogem. (...) O sofrimento é seu patrimônio e a Arte, a sua grande libertadora. Artista feliz é raro. Quando feliz, produz pouco ou é medíocre.[3]
Como já vimos, existe uma relação muito próxima entre a vida emocional do artista e sua criação. E, realmente, o sofrimento parece ser uma importante força inspiradora. Artaud (1971) chegou a implorar por seus delírios, acusando seu médico de querer retirar-lhe, por meio de eletrochoques, a base de sua poética. O romantismo, em sua vertente alemã, torna corrente este ponto de vista: o sofrimento passou a ser a marca essencial da boa poesia. Sem o sofrimento o artista seria estéril, ou faria poesia de má qualidade. Sobre esta vinculação da arte com a dor, Maria Luiza T. Assumpção (1992) analisa:
O trabalho através da literatura constituiu-se, na verdade, na tentativa de preservar o investimento, pelo qual se sente responsável, e abolir o sofrimento, diminuindo o conflito entre o desejo e o sofrimento. Com isto, podendo chegar tanto ao extremo do mundo interior, o delírio, quanto ao extremo do mundo exterior, a criação.[4]
Sem o sofrimento talvez o artista ficasse reduzido a ser um homem comum, onde a capacidade criativa voltar-se-ia para objetivos mais funcionais. Nietzsche expressa esta mesma opinião em  A Origem da Tragédia.
Realmente, talvez uma das forças do artista esteja na vivência de um mundo interno bastante conturbado por distúrbios e conflitos, determinando nele a necessidade de se exorcizar. T. S. Elliot afirmava que ninguém faz poesias para expressar suas emoções, e sim para fugir delas.[5] A obra de arte seria então uma espécie de exorcismo destes demônios interiores. O artista sempre parece ter uma necessidade inevitável, e inadiável, de exprimir seus tormentos. Só que, à diferença do homem comum, uma das qualidades do artista é seu dom de transformar o sofrimento em beleza. O artista é capaz de materializar sua dor, seus tormentos e suas misérias em uma forma estética capaz de fascinação. A magia da arte vai recobrindo sofrimentos e alegrias com as belas roupagens da música, da escultura, da pintura, da literatura, da dança. Dostoievsky (1963) escreve sua obra a partir de um intenso sofrimento. Seus romances são sombrios. Memória da Casa dos Mortos reflete a densidade de seus tormentos. Humilhados e Ofendidos parece revelar a opressão do autor diante da vida, que tanto o maltratou. Sem  falar dos sofridos personagens de Crime e Castigo ou dos Irmãos Karamazov. A medida desta dor é dada por suas palavras: “Deus torturou-me durante toda minha vida”.[6] Porém, contraditoriamente, ele extraía sua força da própria doença. Sentia-se extraordinariamente bem durante as crises epilépticas, chegando a dizer que “daria dez anos de vida para prolongar tais momentos”.[7] Segundo ele confessava, a felicidade que ele sentia nestes momentos jamais poderia ser experimentada no estado natural.
Botticelli, inválido desde muito cedo, com saúde precária e físico pouco desenvolvido, sublima sua fragilidade e nos encanta com um auto-retrato onde se visualiza como um robusto jovem florentino,[8] expressando uma imagem idealizada de si mesmo. Toulouse Lautrec,[9] cuja auto-imagem parece ter sido tão afetada pelos acidentes que o deformaram, procurava encobrir sua infelicidade sob a aparência de uma falsa alegria. Retratou profissionais da diversão: palhaços, bailarinas, amazonas, cantores; assim como garçonetes dos bares e prostitutas. Seu gênio conseguiu transformar a sordidez dos cafés e bordéis de Montmartre em expressivos quadros que imortalizaram os sensuais movimentos do can-can. Sua dor, no entanto, estava registrada através dos tons apáticos que usava, e na economia e quase desprezo pelas cores.[10] Com sua pintura ele ia testemunhando o inferno pessoal de cada um dos retratados, além do seu próprio.
É a esse inferno pessoal que Lautréamont (1986) se refere em seus Chants de Maldoror, aceitando corajosamente seu destino:
A l’heure que j’écris, de nouveaux frisson parcourent  l’atmosphere  intellectuelle: il ne s’agit que d’avoir le courage de les regarder en   face.  [11]
 E é de seu inferno particular que Artaud (1971) retira sua força. Artaud convivia bem com a dimensão do trágico. De forma semelhante aos artistas citados, a tragédia, para Artaud, sempre foi vivida com espírito dionisíaco. Melhor do que ninguém, ele sempre se deu conta que diante do sofrimento, da dor e da loucura, não havia nada a fazer, além de escrever. Era isto que o sustentava, pois ele costumava dizer que escrevia para não morrer. A arte, para ele, agia com força imperativa. Ao defender seus estados delirantes como sendo a base de sua poesia, Artaud  constituiu uma das páginas mais belas da anti-psiquiatria.
Esta constatação sobre a força do sofrimento, tão lúcida e acessível para  qualquer poeta, só aos poucos foi sendo admitida pela psicanálise. Não para Freud que, como vimos, já possuía esta noção. Mas, entre seus seguidores, nem sempre o sofrimento foi bem aceito. Mesmo hoje em dia, para a maioria dos psicanalistas a tragédia nunca é celebrada, [12] como em Nietzsche, em Dostoievsky,  ou como em Lautréamont.
Diferente do homem comum, o artista tem um dom: o de transformar em beleza todo um universo de sofrimentos. O horrível, o absurdo na existência, vai sendo transfigurado em imagens ideais que acabam por tornar a vida uma celebração. Imagens sublimes, cômicas, dramáticas ou mesmo trágicas vão se presentificando nos sons das melodias, nas cores das paisagens pintadas, nas imagens do cinema, nos movimentos da dança  ou nas graciosas formas de uma estátua.



[1] Citado por Teixeira Coelho em  Antonin Artaud, p. 88
[2] S, Freud,  O poeta e os sonhos diurnos, p. 1344.
[3] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária, As neuroses dos grandes escritores, p. 36.
[4] Maria Luiza Teixeira de Assumpção, O Projeto Inconsciente de Machado de Assis: O morto na vida e obra de Machado de Assis - Mito e Fantasma, Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 44, nº. 1/2, 1992, p. 125.
[5] Tom e Viv
[6] Valmir Adamor Silva, Psicanálise da Criação Literária, As neuroses dos grandes escritores, p. 93.
[7] Op. cit., p. 41.
[8] Retrato do Desconhecido, em Botticelli, Gênios da Pintura, vol. 11, prancha III.
[9] Toulouse Lautrec, em Gênios da Pintura, vol 37 .
[10] Este fato pode ser obsservado em seu quadro La Troupe de Mlle. Eglantine ; observam-se  ainda os tons sombrios e as massas de cores de denso volume no Exame na Faculdade de Medicina. Toulouse Lautrec, Gênios da Pintura, vol. 37, pranchas V e XVI.
[11] D. I. Lautréamont, Les Chants de Maldoror.     
[12] É difícil para um analista admitir a valorização do sofrimento e da dor por parte de seus pacientes, fato que normalmente seria tomado como indício de perversão masoquista.