sexta-feira, 10 de abril de 2009

A Etimologia da Perversão



_____________________A Etimologia da Perversão

Elza Rocha Pinto


A palavra perversão apareceu tardiamente na linguagem médica. Ela é derivada do latim perversione, que tem o significado de alteração ou transtorno. Dentro da terminologia médica, a palavra perversão possui um sentido preciso: é o desvio ou perturbação de uma função normal, sobretudo no terreno psicológico. De acordo com este sentido, a perversão sexual vai indicar qualquer anomalia do comportamento sexual. É assim que o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda nos apresenta esta palavra. Como sinônimos, propõe as palavras corrupção, desmoralização, depravação.
Já o adjetivo perverso - derivado do latim perversu é aplicado ao indivíduo perverso, ou seja, àquele que revela perversão ou hábitos perversos. O indivíduo perverso é aquele que "tem malíssima índole", que é muito mau, que é malvado. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, o verbo perverter, do latim pervertere vai apontar para a pessoa que torna-se perversa ou má. Tem como sinônimos os verbos corromper, depravar, desmoralizar, desvirtuar, deturpar, desfigurar.
Em francês o significante perversion já é registrado desde 1444.  Ele se origina do latim clássico  perversio criado através do supino do verbo  pervertere.  Tanto  Lanteri-Laura (1994)  quanto Chazaud (1976) pesquisam o Dicionário publicado por Émile Littré, no século XIX, o qual define perversão como a transformação do bem em mal, definição que poderia se aplicar desde a perversão dos costumes até a  perversão dos sentidos (visão, apetite, odor). O significado sempre indica uma mudança do melhor para o pior, uma degradação. Neste dicionário de Littré,[1] ainda não existe o sentido de perversão sexual.  Perverso, no mesmo dicionário indica a pessoa cuja alma se voltou para o mal, enquanto que perversidade se refere ao estado do perverso. [2]
A perversão vai se confundir com a desrazão, na medida em que também se referia a sensações de odores ausentes, ou a confusão de um odor com o outro. São as perversões dos sentidos, distúrbios que parecem pertencer ao domínio das alucinações e dos erros. Interessante é que no Nouveau Petit Larousse Illustré (1955), “perverso” é apresentado como equivalente de depravado, cuja rápida explicação, “des goûts pervers”, parece ser ainda uma herança deste antigo significado de perversão dos sentidos. Os outros termos que este dicionário oferece já se ligam ao sentido de degeneração: corrompido e vicioso.
 A psicopatologia médica vai aproveitar o termo perversão, para constituir  uma variedade de degeneração mental: a perversão moral, que se confunde com  loucura moral. A perturbação da satisfação, o prazer desnaturalizado é julgado como prazer contra natura.
Mas foi um artigo do médico V. Magnam, Anomalias, aberrações e perversões sexuais, lido em 1885 perante a Academia de Medicina, que acabou fornecendo o sentido sexual do termo perversão. E é como perversão sexual  que o significado vai prevalecer no século XX. O significante perversão acaba por designar as singularidades da sexualidade. Na modernidade desaparece o uso de anomalias sexuais, que tinha o sentido quantitativo de um desvio em relação a uma média. Cai em desuso também o termo aberrações sexuais, que significava ao mesmo tempo “afastamento” e “erro”. [3]
Para terminar é importante uma última distinção. Perversion em francês pertence à mesma série de perversité, pervers, perverti. Pode-se dizer que  o termo perversão aponta para comportamentos ou condutas que se passam na realidade dos atos de alguém. E enquanto perversidade denotava uma falha mais ou menos grave do sujeito, uma disposição permanente de caráter.
As perversões relacionavam-se com o comportamento sexual, ao passo que a perversidade remetia à agressividade, bem como à duplicidade: cruel e maligna, determinando inexoravelmente o mal em outrem. Perversidade pertencia ao mesmo campo da mania sem delírio, ao delírio dos atos e, mais tarde, à psicopatia. Nesse aspecto, as perversões apareciam como os sintomas  manifestados pelo perverso. [4]
Estes sentidos, por outro lado, estão bem próximos do significado que a palavra perversão tem dentro do contexto psicanalítico. Se tomamos o Vocabulário da Psicanálise, vamos ver que Laplanche e Pontalis (l970) discutem a questão do "desvio", e terminam afirmando a dificuldade de conceber a noção de perversão fora da referência a uma norma.
Antes de Freud, e ainda nos nossos dias, o termo é usado para designar "desvios" do instinto, definido este como um comportamento pré-formado, próprio de determinada espécie e relativamente invariável quanto à sua realização e ao seu objeto. [5]
 Deixaremos para examinar em outro texto algumas das colocações freudianas sobre a sexualidade em geral, e sobre as perversões em particular. Aqui no entanto, podemos adiantar a síntese que estes dois autores fazem daquilo que Freud irá designar como perversão. Em seu sentido mais amplo, este conceito vai indicar o conjunto do comportamento psicossexual que acompanha algumas formas atípicas de obtenção do prazer sexual:
Diz-se que existe perversão quando o orgasmo é obtido com outros objetos sexuais (homossexualidade, pedofilia, bestialidade, etc.), ou por outras zonas corporais (coito anal, por exemplo) e quando o orgasmo é subordinado de forma imperiosa a certas condições extrínsecas (fetichismo, transvestismo, escoptofilia e exibicionismo, sado-masoquismo); estas podem mesmo proporcionar, por si sós, o prazer sexual. (...) Em psicanálise, fala-se de perversão apenas em relação à sexualidade. [6]  
Assim, para a psicanálise, perversão indica sempre o desvio em relação ao ato sexual normal. A norma aqui aponta para a obtenção do orgasmo através da relação sexual genital com um parceiro do sexo oposto.
Em outro artigo vamos examinar o trajeto feito pelo fenômeno das perversões, desde o território das leis até o domínio da psiquiatria.


[1] Datado de 1875.
[2] Os personagens de Nelson Rodrigues são dotados desta perversidade. Amado Ribeiro, personagem de Asfalto Selvagem, é descrito como “o repórter policial mais cafageste da face da Terra, capaz de achacar suspeitos, inventar culpados, chantagear a mulher da vítima e o diabo a quatro, tudo para vender jornal”.  Em Dorotéia a maldade de D. Flávia toca as raias da insanidade. Assassina duas de suas primas, arruina a beleza de Dorotéia, obrigando a moça a contaminar seu lindo rosto com chagas e, com inveja da felicidade de Das Dores, para castigá-la destrói as ilusões de sua filha, contando-lhe que ela está morta. O fim da peça se encontra na solidão de Dorotéia e D.Flávia, e a fala final é de uma crueldade exemplar:
“Dorotéia: Qual será o nosso fim?
  D. Flávia: Vamos apodrecer juntas”, Nelson Rodrigues, Dorotéia, Ato III,  p. 107.
[3] Em inglês prevalece o termo aberration, com um sentido próximo de delírio: afastar-se da trilha. Em alemão existem duas palavras. Uma delas é o termo Sexuellen Abirrugen, ou aberrações sexuais, que Freud vai tornar clássico.  Mas existe tambémo uso de Anomalien der Geschelechtstrieb que pode ser traduzido literalmente por “anomalias das pulsões de reprodução da espécie”.
[4] G. Lanteri-Laura, Leitura das Perversões, p. 26.
[5] Cf. J. Laplanche, J.B. Pontalis, Vocabulário de Psicanálise - p. 432.
[6] Op. cit., p. 432.