sexta-feira, 31 de maio de 2013

O Alcoolismo no Brasil



Em A Danação da Norma, Machado et al (1978) faz uma análise sócio-histórica da Medicina e da Psiquiatria no Brasil, analisando em detalhes como o saber médico se aliou ao poder do Estado no controle da família, colaborando para a higienização e disciplinamento das cidades. Esta obra influencia uma série de autores, inclusive Costa (1983) que reconhece o papel estratégico da Medicina na fundamentação do poder do novo sistema contra a antiga ordem colonial. Este autor comenta que “nem sempre os dois poderes reconheceram o valor da aliança que haviam estabelecido. Só historicamente é possível perceber que em meio a atritos e fricções, intransigências e concepções, estabilizou-se um compromisso: o Estado aceitou medicalizar suas ações políticas, reconhecendo o valor político das ações médicas” (1983:29).
No Brasil, o consumo do álcool apresentou a mesma trajetória percorrida nos estados americanos. Antes da industrialização, seu uso não era considerado um problema. Porém de um certo ponto em diante, passou a ser alvo das ações médicas. A diferença é que o Movimento da Temperança, com sua vertente religiosa não existiu no Brasil. No entanto, com o movimento da Liga Brasileira de Higiene Mental nos anos 1920 e 1930, a Psiquiatria começou a adotar a noção de prevenção, que defende uma intervenção anterior ao surgimento de qualquer sinal clínico de doenças, como estratégia privilegiada para a ação psiquiátrica. O alcoolismo foi enquadrado nessa perspectiva. Considerado como uma doença hereditária, precisava ser enfrentado através de medidas preventivas. Costa (1980), ao analisar a história da Psiquiatria no Brasil, ressalta como os ideais eugênicos da medicina alemã foram incorporados à prática psiquiátrica e compara o movimento higienista brasileiro ao avanço da ideologia nazista em relação à psiquiatria alemã. O caráter normativo do discurso psiquiátrico brasileiro da época mostrava uma feição autoritária, vinculando-se a políticas públicas de “saneamento moral” e aprimoramento da raça, defendendo a eugenia e criticando a miscigenação. O alcoolismo passou a ser associado à cultura das camadas mais pobres da sociedade. Pelo fato de estarem submetidas a condições precárias de vidas, estas pessoas eram forçadas a recorrer a estratégias de sobrevivência marginais, a assaltos, vagabundagem, prostituição e alcoolismo.
Como dentro desse cenário social o alcoolismo era uma constante, os psiquiatras tomaram-no como causa da desorganização moral e social da sociedade (COSTA, 1980). Apesar disto, o álcool no Brasil nunca foi considerado uma substância ilícita. Nem mesmo durante o combate ao “bárbaro e selvagem” festejo do entrudo na segunda metade do século XIX. O foco das autoridades era colocado na higiene. Querendo evitar o emprego de substâncias pouco limpas e de imundícies, no divertimento do entrudo, proíbem a exposição, uso e venda de laranja, limões de cheiros e bisnagas (ARAÚJO, 2008). Porém, a venda do álcool nunca foi proibida. O Brasil não enfrentou o movimento da chamada “Lei Seca” como ocorreu nos anos 1930, nos Estados Unidos. No entanto, a análise de Costa (1980) deixa clara uma similaridade na atuação entre os dois países, já que o objetivo do programa brasileiro de higiene mental também era basicamente manter a ordem social. Nesta época, no Brasil, a ideologia moral e de eugenia fundamenta a prática psiquiátrica, procurando impor medidas repressivas com o objetivo de diminuir o alcoolismo na sociedade.
O código penal se alia a esses ideais eugênicos, impondo penas para aquele que transgride a lei. O alcoolista passa a ser responsabilidade também do Judiciário que enxerga nos “viciados” um potencial para o “mal e para o crime devendo, portanto, ser excluídos do convívio social” (SÁAD, 2001:23). Na união da Psiquiatria com o Direito, o vício passa a ter uma dupla inscrição: como doença e como crime. Essa visão dicotômica predomina até os dias de hoje. Apesar das tentativas de descriminalização, o “viciado” ainda é considerado um “infrator”. Minayo & Deslandes (1998) chamam atenção sobre esta situação, lembrando autores que mostram como no Brasil se adota “uma política de criminalização de certas drogas associando-se a visão jurídica (‘caso de polícia’) ou a uma perspectiva médico-psiquiátrica (‘doença mental’)” (MINAYO & DESLANDES, 1998:39).
No imaginário social, ser alcoolista tem um efeito sobre o autoconceito, que vai refletir os preconceitos sociais. Na maioria das vezes a sociedade se refere aos alcoólicos com sentido pejorativo. A própria conceituação da dependência de drogas é vista como um problema moral e de caráter do indivíduo. Em sua tese de doutorado, Sáad (1998) verifica que as representações dos usuários e dependentes de substâncias psicoativas baseiam-se fortemente em conceitos de “falta de caráter”, com seu problema sendo considerado uma questão moral, própria da esfera jurídica.
A partir da década de 1940, o saber médico no Brasil finalmente passa a abordar de uma outra forma o problema do álcool e das drogas. Desde então, na opinião de diversos autores é preciso não demonizar o consumo das bebidas alcoólicas. Existem aspectos positivos relacionados ao álcool. Segundo Lima (2007), seria necessário valorizar o efeito relaxante e desinibidor no plano individual, assim como o aspecto gregário que a bebida alcoólica permite, sobretudo em festas e rituais. “É pertinente ressaltar que o problema do alcoolismo está no abuso e em suas conseqüências e não no uso social por si só” (LIMA, 2007:16). Também Minayo & Deslandes (1998) comentam os efeitos paradoxais que as drogas são capazes de provocar, sob a dupla face da inserção e da exclusão social,  percorrendo desde estados de êxtases dionisíacos até profundas depressões.
Embora não seja um bom argumento para a defesa de uma atitude mais tolerante em relação ao consumo, alguns autores como Lima (2007) lembram a contribuição econômica que a indústria de bebidas alcoólicas representa para diversos países, inclusive para o Brasil, onde a cerveja é um produto de forte peso comercial. Segundo Pinsky e Jundi (2008), a indústria cervejeira no Brasil fatura mais de 20 bilhões por ano, tendo gasto só em publicidade em 2006, mais de 700 milhões, segundo a Folha de São Paulo. Além dessas cifras, não se pode desconsiderar a mão-de-obra empregada na produção, distribuição e comercialização e o volume de dinheiro que o governo consegue arrecadar com impostos:
No que tange à receita da indústria de bebidas alcoólicas em termos de taxas e impostos relacionados com a produção, distribuição e comercialização, os governos destes países se beneficiam com a arrecadação de importantes recursos financeiros. Os impostos e taxas que incidem sobre a produção, distribuição e comercialização determinam a “arrecadação de importantes recursos financeiros. Portanto, este aspecto sócio-econômico não pode deixar de ser considerado ao se discutir as ações e estratégias de combate ao alcoolismo, a partir de perspectivas de políticas públicas nas áreas de saúde, educação, segurança, trânsito e trabalho (LIMA, 207:16).
                   Esse médico reconhece que a situação brasileira é preocupante, por ser o país um dos maiores produtores de bebidas alcoólicas, o que é um determinante para o fato dos brasileiros serem um dos maiores consumidores do mundo. “Deve-se ainda levar em conta alguns aspectos agravantes no caso do Brasil, visto que, por exemplo, o consumo de cerveja dobrou nos últimos 5 anos, cabendo aos jovens e às mulheres a maior participação neste aumento” (LIMA, 2007:17). O autor ressalta que a ética do mercado não deve prevalecer sobre outros valores relacionados à qualidade de vida e à saúde pública, sendo preciso, inclusive, ocorrer um controle sobre a publicidade e o marketing das bebidas alcoólicas.
Existem inúmeras pesquisas sobre o uso indevido do álcool. No entanto, as mulheres até recentemente estiveram pouco representadas nas estatísticas destes estudos científicos (STOCCO et al, 2000; AQUINO, 1997). Um rápido levantamento na base de dados PubMed informou um total de 53.995 pesquisas sobre alcoolismo. Com o auxílio dos descritores (female AND alcoholism; male AND alcoholism) foram encontradas 21.311 pesquisas (72,5%) com mulheres, e 29.375 pesquisas com homens. Isso caracteriza uma diferença de 27,5% a favor dos homens. Nova pesquisa realizada em janeiro de 2010 constatou um total de 27.531 pesquisas sobre mulheres (74,3%), e 37.058 sobre homens, constatando-se um ligeiro aumento percentual em relação às pesquisas com populações femininas (25,7%). A análise de uma amostra de cem, retiradas destes 27.531 estudos, mostrou duas questões: (a) apenas cinco estudos focalizavam exclusivamente a mulher; as outras 95 pesquisas eram constituídas por uma amostra mista, onde poucas traçaram um perfil de gênero. Como a presente pesquisa focaliza a importância do lazer em relação ao alcoolismo feminino, procurei verificar até onde a amostra contemplava este tema. Porém isto não ocorreu, o que deu margem para a segunda questão: (b) a associação do alcoolismo com atividades de lazer não foi abordada, apesar de três artigos focalizarem a questão da prevenção.
Isto confirma os achados de Hochgraf e Brasiliano (2004:1), que examinaram um levantamento dos estudos realizados no período entre 1970 e 1984, afirmando que “só 8% dos sujeitos participantes de pesquisas científicas sobre alcoolismo eram mulheres”. Também não são muitas as investigações que se dedicam a verificar as diferenças entre os sexos, em relação ao consumo do álcool. Menor ainda é o número de pesquisas que se referem ao uso de álcool por adolescentes do sexo feminino.
De fato, na base PubMed,[1] deixando de lado os recursos do Medical Subject Hearing (MeSh), na busca simples com a frase “alcoolismo feminino” foram encontrados apenas 47 artigos. A conclusão mais óbvia é que ainda não existe uma preocupação em analisar este fenômeno. Sobre a relação existente entre alcoolismo feminino e lazer, a busca utilizando descritores MeSH revelou apenas 93 pesquisas registradas no PubMed. Desse conjunto, foram analisados 35 artigos, pois nos outros não havia clareza quanto à interrelação entre esses dois fenômenos.


[1] Base de dados, desenvolvido pelo National Center for Biotechnology Information, na National Library of Medicine, e localizado no National Institutes of Health.


Para referência: Este texto é parte da tese de Doutorado, "Alcoolismo Feminino: Conhecer para Prevenir", defendida em 2006, no programa de Saúde da Criança e da Mulher, no Instituto Fernandes Figueira, FIOCRUZ/RJ
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, PATRÍCIA VARGAS LOPES DE  (2008) - Folganças populares: festejos de entrudo e carnaval em Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Editora: Annablume
AQUINO, MARIA THEREZA C. ­ (1997) - A Mulher e a Droga: Motivação para o Uso, Efeitos Diferenciados, Tratamento e Possibilidades de Prevenção, in BAPTISTA, Marcos e INEM, Clara (orgs.) – Toxicomania – Abordagem Multidisciplinar. Rio de Janeiro: NEPAD/UERJ: Editora Sette Letras.
COSTA, JURANDIR FREIRE (1983) – Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2ª. edição.
COSTA, JURANDIR FREIRE (1980) – História da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Editora: Campus
LIMA, JOSÉ MAURO BRAZ DE (2007) – Alcoologia – O alcoolismo na Perspectiva da Saúde Pública. Rio de Janeiro: MedBook Editora Científica Ltda.
MACHADO, ROBERTO, LOUREIRO, ANGELA, LUZ, ROGERIO, MURICY (1978) – Danação da Norma - Medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. RJ: Edições Graal.
MINAYO, MARIA CECILIA DE SOUZA & DESLANDES, SUELY FERREIRAA Complexidade das Relações entre Drogas, Álcool e Violência . Cad. Saúde Pública v.14 n.1 Rio de Janeiro jan./mar. 1998
PINSKY, ILANA; JUNDI, SAMI A. R. J. ELO Impacto da Publicidade de Bebidas Aalas sb o Consumo entre Jovens: revisão da literatura internacional. Revista Brasileira de Psiquiatria. Vol. 30, no. 4. São Paulo. Dec. 2008, Epub. Nov. 24, 2008.
SÁAD, ANA CRISTINA (2001) – “Tratamento para dependência de drogas: uma revisão da história e dos modelos” in CRUZ, M. S. & FERREIRA, S. M.B. orgs – Álcool e Drogas – usos, dependências e tratamentos. Rio de Janeiro: Edições IPUB – CUCA – Centro Universitário de Cultura José Octávio de Freitas Júnior.
STOCCO, PAOLO; LLACER, JUAN JOSÉ LLOPIS; DEFAZIO, LAURA; CALAFAT, AMADOR; MENDES, FERNANDO (2000) – Woman Drug Abuse in Europ: Gender Identity. Spain: Irefrea & European Comission. Disponível em <URL: http http://www.irefrea.org/spain/Mujeres.htm > Acesso em: 10/10/2004.