segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O Delírio e a Prática Psicanalítica



__________________________ O Delírio e a Prática Psicanalítica

Elza Rocha Pinto

 
Quero estar desperto no sonho e conduzir meus sonhos como um homem desperto. Não aceito o inconsciente, não quero saber disso dentro de mim, de modo algum. [1]
                                                Artaud
A prática da clínica psicanalítica não pode se desvencilhar de alguns referenciais teóricos. E por isto às vezes os psicanalistas acabam por agir como os médicos citados por Artaud, e não aceitam o delírio em seus pacientes.
Para a psicanálise, as defesas das pessoas precisam estar ajustadas na justa medida platônica.[2] Na medida. Não fora dela. O trabalho do analista acaba sempre por focalizar o ego, tanto na perspectiva mais ortodoxa quanto na linha lacaniana. Freud e Melanie Klein sempre assumiram, sem o menor pudor, seu compromisso com a cura. Mas a escola lacaniana parece ter reagido a isso.
Mas, na genealogia do psicanalista existe um fio que vem do filósofo, passa pelo confessionário e termina no divã do consultório. A escuta do paciente pelo seu analista veio substituir claramente a confissão católica.[3] A terapia laica dentro da cidade é uma cena que vai sendo constituída aos poucos. Antigamente o tratamento da problemática psíquica era basicamente religioso. Não foi à toa que Levi-Strauss (1991) comparou os terapeutas da cidade com a figura religiosa dos pagés e feiticeiros nas primitivas tribos indígenas. Ao analisar a eficácia simbólica, ele afirma:
A psicanálise pode recolher uma confirmação de sua validade, ao mesmo tempo que a esperança de aprofundar suas bases teóricas e de melhor compreender o mecanismo de sua eficácia, por uma confrontação de seus métodos e de suas finalidades com os de seus grandes predecessores: os xamãs e os feiticeiros. [4]
O perdão dado pela figura do padre se transformou na elaboração da culpa, que o paciente vai realizar acompanhado por um super-ego externo menos cruel, o analista. Ora, a crítica marxista vai focalizar a  religião como um anestésico, um ópio do povo. O padre católico seria o moderno traficante desta droga. Lacan deve ter percebido a nítida correlação entre estas duas gestalts: o confessor e seu penitente, e o analista com seu paciente. Sendo a culpa sempre o fulcro da questão. A compreensão do caráter social e político, do exercício e da prática psicanalítica, no contexto do século XX, podem ter determinado a reação da escola lacaniana quanto à prática da cura.[5] 
Ora, em paralelo, o impacto brutal dos bits e bytes marcaram uma diferença acelerada por relação ao tempo em que Freud viveu. Na era da comunicação, a velocidade das transformações tem sido muito intensa. Se a psicanálise foi a prática revolucionária da passagem do século, já deixara de ser em poucos anos de existência. Hanna Arendt (1987) reeditou muito adequadamente o caráter público do ato político grego. O ato político é um ato grupal. É nas ruas que se faz a política. Nas praças. Ou nas passeatas. Não nos consultórios semi-iluminados dos psicanalistas, onde o sujeito volta-se para dentro de si mesmo, numa viagem quase interminável ao interior de uma subjetividade particular. Não há política no particular.
Talvez por isto Lacan tenha tentado recusar o papel do novo religioso. Intelectual de esquerda, ele não poderia compactuar com a idéia de estar contribuindo para a formação de uma população dócil e bem adaptada. Os lacanianos sempre afirmaram que não há objetivos de cura, quando atendem um paciente. Mas isso não se sustenta: nem teoricamente, nem na prática.[6]
Lacan tenta confirmar sua distância das concepções naturalistas da psicanálise freudiana com o auxílio da lingüística saussureana. Uma lingüística estruturalista. Sem falar do recurso às matemáticas, que forneceram os famosos matemas. E que  fazem um combate ruidoso contra as categorias do imaginário. Foi assim que a psicanálise francesa se modernizou, passando a enxergar a psicanálise americana com um certo desprezo. Esta é acusada entre outras coisas do pecado da “cura”, pois quer livrar o paciente de suas loucas fantasias, e de seus estranhos delírios. Os plebeus americanos vulgarizaram a psicanálise, pois em vez de se centralizarem simplesmente na nobre escuta do inconsciente, se arremeçaram ao fortalecimento do ego. E pretenderam desenvolver todo um trabalho tendo como foco o sintoma. Abominável heresia!
Mas na verdade é Lacan (1966) quem faz o grande combate contra a categoria do imaginário. Já no estágio do espelho[7] o imaginário se apresenta como que articulado pelo simbólico. Ou seja, para Lacan só interessa o imaginário enquanto prisioneiro do simbólico. Não se quer uma autonomia real para o imaginário.
De novo é preciso lembrar o grito desesperado de Artaud, implorando que seu médico não o livrasse de suas visões delirantes: “Os estados místicos do poeta são a base de sua poesia!”. Embora sua carta visasse o Dr. Ferdière, ela poderia ser perfeitamente endereçada a alguns representantes da psicanálise, que tanto rezam pela cartilha do simbólico, que prezam a racionalidade. É preciso não esquecer que Freud tinha uma grande expectativa a respeito da razão. Ele desejava que a razão pudesse um dia construir o seu reinado:
A voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não consegue uma audiência. Finalmente, após uma incontável sucessão de reveses, obtém êxito. Esse é um dos poucos pontos sobre o qual se pode ser otimista a respeito do futuro da humanidade e, em si mesmo, é de não pequena importância. E dele se podem derivar outras esperanças ainda. A primazia do intelecto jaz, é verdade, num futuro muito distante, mas, provavelmente, não num futuro infinitamente distante. [8]
Como complemento, lembramos mais uma vez as origens de Lacan, na antropologia de Levi-Strauss (1991), que por sua vez foi buscar a função simbólica dentro da lingüística saussureana. Levi-Strauss luta contra a diversidade através de uma unidade básica: o átomo do parentesco. [9]
Saussure, já no início de seu livro, Curso de Lingüística Geral,  quando se pergunta o que é a lingüística, vai desfazendo-se de todas as multiplicidades, até constatar que a lingüística tem seu objeto teórico na Langue, que é o grande sistema. Ele estabelece a sintaxe, que é a “lingüística sincrônica”, cuja unidade última é o signo. 
Todos os três - Lacan, Levi-Strauss e Saussure, - lidam com o objeto do conhecimento, ou seja, com o objeto abstrato. Não se interessam pelo objeto real, o qual seria o referente. Lacan e Levi-Strauss fogem da rude aplicação do modelo lingüístico saussureano através de seus estilos diferentes. Mas não podem esconder o óbvio: que é sempre atrás de uma totalidade abstrata, e atrás de formas de controle que o pensamento deles se constitui.
E o que é atingido com isso? O que é atingido é sempre a multiplicidade, as bifurcações, o imaginário. Atinge-se o mesmo objetivo que Platão desejava. Platão também combatia as multiplicidades e as singularidades. Queria expulsar os simulacros, criados pelos sofistas.[10] E é com dificuldades que ele abre seu coração para admirar o poeta. Para ele Homero e Hesíodo deviam mendigar de cidade em cidade, onde jamais seriam “carregados pelo povo”, pois que este lugar só caberia a alguém que defendesse as essências, a verdade, o abstrato.
Este discurso contra a aventura do imaginário nunca deixou de ser retomado na civilização ocidental. A  psicanálise pode ser vista como uma das últimas versões do platonismo. Paradoxalmente, apesar de ter sido revolucionária no início do século, ela teve também seu papel regulamentador. A função de controle da psicanálise foi levantada por Foucault (1977): passamos a vigiar a alma ou psiquismo. O interior do sujeito, com a psicanálise, passa a ser vasculhado com o objetivo de se garantir a saúde mental. Evitam-se as regressões, ou a “imaturidade afetiva e mental”. O objetivo é a disciplina da mente, porque em paralelo o Estado organiza a disciplina do corpo, como forma de submissão.[11] Nenhuma corrente psicanalítica aceita a morbidez de uma libido fixada ou regredida em neuroses ou psicoses. Só isto já serviria para mostrar como a psicanálise funciona dentro de um universo teórico com padrões platônicos. O comportamento ideal seria o “normal”. Procura-se a “medida” grega. Nada em excesso, a máxima inscrita no templo grego, e que norteou a filosofia aristotélica, está inscrita também no coração de qualquer psicanalista.
Com Freud ou com Lacan, vive-se num mundo de carência, um mundo de necessidade, onde o horizonte é de ameaças: a ameaça da perda de controle, a ameaça da loucura. Acabamos de indicar como Lacan combate o imaginário, terminando com a subordinação do pequeno outro pelo grande Outro. Ou seja, Lacan elege o domínio do simbólico. Sua teoria trata afinal do “grande objeto abstrato”, defendendo a Lei, através do nome do Pai.
Ora, a autonomia do imaginário só pode ser encontrada nos sintomas psicóticos. O psicótico seria aquele que não aceita a lei da castração. Como Artaud nos lembra, o louco é o homem que preferiu enlouquecer “no sentido socialmente aceito”, a se trair, a trair uma determinada idéia. E por isso o louco não tem entrada neste reinado do simbólico. Para os lacanianos, o louco não se socializa, não se humaniza. Um pouco mais de impiedade e estaríamos dizendo com La Mettrie, aplicado discípulo de Descartes: “Cela crie, mais cela ne sent pas”,[12] referindo-se à falta da alma racional nos animais.
Por tudo que foi exposto é que podemos dizer que, apesar de todos os disfarces, os lacanianos também querem a cura, através da aplicação da lei. A prática da clínica lacaniana procura a mesma coisa que os analistas americanos ou ingleses. Todos eles acertam os ponteiros do ego, ajustando suas defesas na exata medida. Afinal uma simples pontuação no discurso do paciente, ou um simples “por que?” já denuncia  o desejo do analista, indicando que parte do ego ele estará querendo reforçar.  O fato é que a potência do inconsciente não deve se manifestar. Em sendo assim, não há escândalo algum em se afirmar parentescos entre as diversidades psicanalíticas.
De qualquer forma, a psicanálise não poderia agir de forma diferente. O pensamento filosófico do Ocidente parece participar de um determinado cenário, cujo empenho é excluir os fluxos livres, as desterritorializações. O pensamento deve se subordinar às aparências do conhecimento, aos encaixes da lógica, da coerência, da metodologia, da sintaxe. Existe toda uma predisposição da subordinação ao abstrato. É o que se pode chamar, para usar a linguagem lacaniana - ou psicanalítica - o lugar do pai. Ou melhor, com Althusser (1983), o lugar do Estado. Tudo organizado para constituir como Nietzsche diria, a moral do escravo.[13] Para constituir o rebanho, o cidadão. Não há como negar que a psicanálise tem a sua contribuição na constituição deste lugar: a lei do pai,  a necessidade da castração, a normatização das pulsões, a valorização da culpa e da depressão, fontes do sentimento do amor, uma certa desqualificação da emoção em benefício da voz suave da razão.
Podemos dizer que a psicanálise nunca deixou de ser platônica. Seu chão é grego. Ela trabalha na escuta do inconsciente. Sim, ela o admira, mas quer domesticá-lo, se é que podemos falar assim. O inconsciente produtor, como queria Nietzsche ou Artaud, este inconsciente maquínico de Guattari (1981) e de Deleuze (1976), cujo desejo não se deixa capturar pelas medidas da cidade grega, pelos “padrões” da moral do escravo, pelas identificações, ou pelo nome do pai, este inconsciente a psicanálise ainda não suporta.
Freud logo percebeu que o fenômeno da criação necessitava de um mergulho neste inconsciente desmedido. Mas seus seguidores, ligeiramente assustados, preferiram assitir a cena freudiana confortavelmente instalados em um teatro de palco italiano, e reduziram o inconsciente freudiano à representação de uma peça grega: Édipo-Tirano. O inconsciente psicanalítico passou a ser uma consciência afundada na profundidade. E mais, em termos gerais, a psicanálise teve dificuldades para admitir a regressão com fins adaptativos. Somente a partir da colaboração de Kris (1968) passou-se a aceitar, com mais  tranqüilidade, a idéia de que só se pode criar quando os fantasmas inconscientes ganham voz.  Parafraseando Deleuze: “A loucura, afinal”. A multiplicidade quântica passou a ser relativamente admitida dentro do território psicanalítico. Mas, claro, sempre dentro das medidas.






















[1] Antonin Artaud, citado por Teixeira Coelho, em Artaud, p. 50.

[2] Para Platão existiriam alguns tipos de virtudes que seriam fundamentais: a sabedoria ou prudência, própria da parte racional da alma; a coragem, que seria uma virtude da vontade; a temperança, que seria característica da sensibilidade; e finalmente a justiça, originada do equilíbrio entre todas as disposições éticas e sociais.  É a este equilíbrio das virtudes que se aplica a justa medida platônica.  Ver A Filosofia Pagã de François Châtelet.
[3] Com a ascenção da burguesia ao poder, ocorre um afastamento da igreja. Marx é um dos pensadores que aponta para este grande ateísmo da burguesia. Na constituição das cidades, a prática da Medicina se aliou a esta queda da religiosidade. A medicina começa a se fortalecer,  a partir do século XII. O tratamento dos problemas psíquicos aos poucos vai ganhando características médicas, e uma impressão de cientificidade. A partir do século XIX surge uma nova ética, através das normas médicas que influenciam até mesmo a arquitetura das casas e das cidades. Sobre este assunto, ver A Danação da Norma, de Roberto Machado.
[4] C. Levi-Strauss,  Antropologia Estrutural, p. 236.
[5] Alguns dos conceitos e idéias que apresentamos aqui foram apreendidos, e organizados, através das inúmeras conferências que o filósofo Carlos Henrique Escobar vem realizando no Rio de Janeiro, como parte de seu trabalho de reflexão sobre o papel que a psicanálise desempenha na sociedade contemporânea.
[6] Parece evidente que, com Lacan, a psicanálise vai se transformar numa grande convição abstrata. Em parte porque Lacan tenta higienizar a psicanálise freudiana daquilo que ele chama de biologismo e evolucionismo. Este viés realmente chega a predominar em algumas correntes americanas. Lembramos aqui os trabalhos de Hartmann (1945; 1950; 1956), Kris (1945; 1950) e Loewenstein (1945; 1950). Mas atinge também as sofisticadas teorias da escola inglesa, pois Melanie Klein (1964), apesar de criticar a questão do desenvolvimento através da adoção da teoria da posição, ainda aceita a universalidade do Édipo, que tem suas raizes no biologismo freudiano. Atrás de Melanie Klein podem ser citadas uma série de contribuções inglesas como as de E. Shape (1973), N. Searl (1973), S. Isaacs (1973). Sem deixar de falar nos representantes ingleses da psicanálise do ego, como Anna Freud (1971) ou  Joseph Sandler  (1982).  Já a escola francesa procurou escapar da naturalização do inconsciente, a qual Freud estabeleceu ao afirmar que Édipo era universal. Só que Lacan também se torna responsável por tal naturalização. É certo que o inconsciente lacaniano pretende não ser de natureza, e nem de substância. Fugindo da ingênua concepção de Freud, Lacan procurou dar à teoria um caráter de objetividade e de universalidade. Para isto trocou o Édipo universal, por uma Lei universal. Seguindo a trilha de Levi-Strauss, ele afirma a proibição do incesto como protótipo desta Lei. Pode-se quase dizer que ele acaba naturalizando também, pelo abstrato. Isto para não falarmos da substancialização do inconsciente, que se mantém sem disfarces: “Là où c’était, dois-je advenir comme sujet”. O “isso” já existe previamente como substância. Não estaríamos voltando assim ao caminho platônico das idéias inatas, e à Lei, pela qual Sócrates deu sua vida?
[7] J. Lacan, Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, em Écrits I
[8] S. Fred, citado por A. G. Penna em  A Filosofia da Mente.
[9] Para Levi-Strauss, o inconsciente está sempre vazio. Ele é estranho às imagens, limitando-se a impor leis estruturais aos elementos inarticulados das pulsões, emoções, representações, recordações. O inconsciente organizaria todo este vocabulário da história pessoal segundo suas leis, que são sempre as mesmas. A estrutura permanece sempre a mesma, e é por ela que se realiza a função simbólica. As estruturas são as mesmas para todos, e são pouco numerosas. A grande massa de contos e mitos conhecidos poderiam ser reduzidos “a um pequeno número de tipos simples, se forem postas em evidência por detrás da diversidade dos personagens algumas funções elementares”. Levi-Strauss, Antropologia Estrutural.
[10] Em Górgias, Platão ataca os sofistas, dizendo que eles mereciam o ostracismo, porque faziam o povo acreditar nas aparências, nas ilusões e nas imagens criadas pelos falsos argumentos de sua retórica.
[11] Michel Foucault analisa a demarcação da geografia da subjetividade no livro História da Sexualidade, vol. I, A vontade do saber, e levanta as diversas formas de submeter os indivíduos, formando os corpos dóceis em Vigiar e Punir.
[12] Citado por Duane Schultz em História da Psicologia Moderna.
[13] Nietzsche, em Genealogia da Moral, analisa a transformação das forças ativas em reativas. Separada do que ela pode, a força ativa volta-se contra si, produzindo a dor.  E inventa-se um novo sentido para a dor, um sentido interno: faz-se da dor a consequência de uma falta ou pecado. Assim a força ativa é transformada em sentimento de falta, de temor, de castigo. A má consciência é a moral do escravo.

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