sábado, 15 de novembro de 2014

Lazer na Sociedade Contemporânea



Os seres humanos possuem necessidades. De um lado, necessidades materiais que mantêm as pessoas vivas, vinculadas ao poder, ao dinheiro, ao consumo e à acumulação de riquezas. Essas podem ser chamadas de necessidades quantitativas. Por outro lado, existem as qualitativas que se referem ao amor, à amizade, à convivência, à introspecção e à brincadeira. Elas não requerem dinheiro para serem satisfeitas e sim, tempo livre (DE MASI, 2000).
Nas últimas quatro décadas, o lazer e o tempo livre começaram a receber atenção por parte de várias ciências. Há abordagens sociológicas, históricas, antropológicas, psicológicas, filosóficas ou mesmo geográficas e culturais que se diferenciam consideravelmente. No entanto, segundo Ortega (2000) é possível distinguir entre elas duas grandes orientações. Uma enfatiza o lazer como satisfação individual, enquanto a outra sublinha sua dimensão coletiva, no sentido de que ele “deveria ser desfrutado por todos, independentemente das diferenças sócio-econômicas, políticas e culturais” (ORTEGA, 2000:167).
Cada contexto social diferencia ideologias, valores, perspectivas, atitudes, comportamentos e práticas. O lazer também obedece a essas regras, pois ganha expressões diferentes conforme a época histórica e o enquadramento sócio-cultural em que se situa. Uma “pelada” na praia, um bate-bola nas ruas, ou um futebol jogado no campo, nas fazendas ou sítios brasileiros, não conta com um campo demarcado e elaborado como nos clubes e estádios das cidades. Porém, apesar do espaço sagrado ser diferente, o prazer dos jogadores não se altera muito. A alegria associada ao jogo pode transformar-se não apenas em tensão, como em arrebatamento, independente de onde o jogo aconteça. É Huizinga (1980) quem fala deste aspecto sagrado dos locais onde ocorrem as atividades lúdicas, ao fazer uma comparação entre elas e os rituais religiosos. Segundo o autor, não existe diferença formal entre esses espaços: “a pista de corridas, o campo de tênis, o tabuleiro de xadrez ou o terreno da amarelinha não se distinguem, formalmente, do templo ou do círculo mágico” (HUIZINGA, 1980:23).
No entanto, os campeonatos atuais são diferentes das competições sagradas, onde as consagrações e mistérios constituíam parte integrante da festa. E as provas às quais o iniciado é submetido não são mais sangrentas ou cruéis, como eram em determinadas culturas no passado. Por outro lado, algumas atividades de lazer são características de certos sistemas econômicos, culturais e políticos. E com isto, podem servir como meios de opressão através da exclusão de determinados indivíduos, ou através da sua inclusão forçada.
Na sociedade contemporânea, marcada pelas possibilidades das novas tecnologias, as paisagens do lazer estão mudando. Segundo Ortega (2000), a indústria dos entretenimentos, com o objetivo de incentivar o consumismo, vem incorporando elementos de fantasia que pertencem à cultura mediatizada das massas. O movimento de globalização que socializa um mesmo conjunto de valores, idéias e aspirações, atua inclusive no campo das atividades de lazer onde, no entanto, é também pluralista. Por isso, é possível verificar a permanência de uma constelação de culturas locais e específicas em que as expressões individuais e comunitárias continuam integradas ao contexto histórico, político e sócio-cultural local onde cada pessoa se insere. Assim, contemporaneamente, a atividade de lazer reflete características globais e ao mesmo tempo locais, dos grupos onde ela foi gerada e desenvolvida. O mesmo país pode abrigar diferentes expressões, localizadas nos nichos urbanos de uma mesma cidade, ou até do mesmo bairro. Desta forma, revelam-se diferenças de lazer por faixas etárias, por sexos, etnias, educação, religião, classe social, status econômico.
Dumazedier (1999) foi o autor que ofereceu a contribuição mais importante para a abordagem das atividades de lazer citadas nas entrevistas desta pesquisa. Em função de sua ampla pesquisa, a obra, Sociologia Empírica do Lazer, tornou-se um texto clássico e de leitura recomendável.  Além de contextualizar historicamente a constituição desse fenômeno, o autor identifica uma diversidade de possibilidades, relacionando-as em seu livro, e que, por economia de espaço, não serão abordadas aqui. Este autor leva em conta inclusive a fonte ou origem dos lazeres, que algumas vezes são disponibilizados pelas organizações sócio-espirituais (igrejas, clubes, dentre outros) ou sócio-políticas (empresas, locais de trabalho, organizações governamentais e não-governamentais). Dumazedier (1999) completa seu trabalho fazendo uma sistemática organização e classificação de todo este material. Baseado nesta sistematização foi montado o Questionário sobre as Atividades de Lazer (Apêndice 3), aplicado como complemento das entrevistas.
Segundo esse sociólogo, o sentido principal do lazer é a liberação das obrigações habituais. E a seu ver, o lazer compreende três funções interdependentes: descanso, diversão e desenvolvimento da personalidade.
Embora a definição central do conceito de lazer para esta tese tenha sido baseada em Dumazedier (1999), ao procurar compreender os significados das atividades de lazer foi impossível não pensar em outros autores e buscar apoio também na noção de lúdico de Huizinga (1980), e de brincar da Psicanálise (mais especificamente em Winnicott, 1975), já que esses termos apresentam características bem semelhantes. Na verdade, Dumazedier equipara a atividade de lazer do adulto com o brincar da criança, embora não chegue a usar o conceito winnicottiano. Porém, as atividades de lazer, as atividades lúdicas tanto quanto as atividades do brincar apresentam as mesmas propriedades: negativas, relacionadas com as obrigações impostas; e positivas, que podem ser definidas em relação às necessidades da pessoa. É preciso, no entanto, esclarecer alguns pontos.
Em primeiro lugar, nunca é demais enfatizar o fato do lazer se constituir como um fenômeno social e histórico. As características socioculturais das atividades de lazer são adquiridas através do convívio do indivíduo com seus grupos. Após as reflexões desenvolvidas por Morin (1996), não é mais possível pensar que o lazer possa ser considerado um fenômeno simples. “Tudo está em tudo e reciprocamente” (MORIN, 1996:275). Para esse autor, “cada indivíduo numa sociedade é uma parte de um todo, que é a sociedade, mas esta intervém, desde o nascimento do indivíduo, com sua linguagem, suas normas, suas proibições, sua cultura, seu saber; outra vez, o todo está na parte” (MORIN, 1996:275). Portanto, a atividade de lazer se constitui como um processo cuja causalidade não pode ser vista linearmente. Como qualquer outro fenômeno humano, o lazer precisa ser compreendido em amplitude e complexidade. Sua causalidade é múltipla.
Em segundo lugar, seguindo a trilha do pensamento da complexidade, é possível afirmar que as atividades de lazer, como outras mais que fazem parte da condição humana, devem ser diferenciadas em suas características particulares; porém também precisam ser articuladas num todo, através de seus aspectos mais gerais. Cada atividade de lazer apresenta características gerais e específicas, por isso seu entendimento precisa passar pela inserção em contextos micro e macro-sociais. “Cada parte conserva sua singularidade e sua individualidade, mas, de algum modo, contém o todo” (MORIN, 1996:273). Portanto, pode-se compreender o lazer como uma construção histórica que reflete características da sociedade que o engendrou.

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