terça-feira, 7 de julho de 2009

Entrevista de Devolução

Elza Rocha Pinto




O processo de avaliação diagnóstica ocorre no início de boa parte das estratégias terapêuticas. E como muito bem define O' Campo e col. (1978), trata-se de um processo de curta duração, com objetivos bem definidos, através do qual o psicólogo, utilizando-se de métodos e técnicas específicas, e orientado por uma teoria escolhida previamente, vai avaliar aspectos da dinâmica individual e familiar de uma pessoa; esse processo ocorre sempre após uma demanda de orientação sobre problemas de ordem psicológica.

Para a adequada realização de um processo tão complexo quanto este, são necessários determinados conhecimentos. Em primeiro lugar é preciso um bom domínio de uma teoria de personalidade, a qual vai fornecer os fundamentos teóricos a partir do qual o psicólogo tentará compreender a pessoa. Além disto é preciso que sejam sólidos não somente seus conhecimentos sobre desenvolvimento e psicopatologia, como também sobre os recursos técnicos, métodos, instrumentos e estratégias que a psicologia pode oferecer, no sentido de facilitar uma melhor compreensão sobre a personalidade.

Mira y Lopez (1969), ao comentar os problemas de diversos tipos relacionados ao desenvolvimento das crianças refere-se à necessidade de um diagnóstico etiopatogênico preciso, que possa levar a um adequado plano de tratamento e a um programa pedagógico eficaz.

São inúmeros os problemas que podem surgir vinculados a este processo. De imediato lembramos a necessidade de que a avaliação diagnóstica se fundamente em uma abordagem dinâmica e multidimensional da personalidade.[1] Isto significa supor que todas as afirmações diagnósticas precisam estar contextualizadas socialmente, além de permitir uma clara compreensão sobre as possibilidades de mudanças futuras. Esta perspectiva assume, por um lado, que as causas de um determinado problema devem se inserir em diversas ordens (culturais, institucionais, familiares, genéticas, etc.); por outro lado exige que se mantenha como meta tornar claro, para todos os envolvidos neste processo, a importância do conceito de transitoriedade do diagnóstico. Isto permite uma postura mais clara contra a medicalização e estigmatização, fáceis de ocorrer quando se parte de outros fundamentos teóricos.[2] 

No entanto, escapando de áreas mais polêmicas, vamos procurar manter os limites de um texto didático. Para isto organizamos uma síntese das principais etapas já tão bem desenvolvidas por outros autores como Arminda Aberastury (1969) ou Maria Luiza O' Campo (1978). Porém, numa   homenagem singela ao professor Mira y Lopez, pessoa que tanto  contribuiu no sentido do desdobramento das técnicas de avaliação, escolhemos destacar o uso dos testes como instrumentos complementares ao processo do psicodiagnóstico.


2. Definição e Objetivos do Psicodiagnóstico
Na área clínica, a utilidade da avaliação diagnóstica mostra todo seu valor no que diz respeito ao atendimento infantil. Nem sempre é a criança ou o adolescente que precisa de atendimento. Como diz Manoni (1971), a criança é um sintoma dos pais;[3] ou então usando a designação do Pichon-Rivière (1986), a criança (e podemos perfeitamente falar dos adolescentes também) é o bode expiatório da família; ela adoece porque o grupo nela deposita maciçamente suas próprias partes doentes. E assim ela passa a ser o porta-voz do grupo familiar.
A sociedade confere à criança um estatuto, porque o encarrega, por sua vez, de realizar o futuro do adulto: a criança tem por missão reparar o malogro dos pais, realizar-lhes os sonhos perdidos.[4]
Normalmente não é  a criança quem procura o psicólogo; ela em geral pouco sabe de sua situação; quando muito sabe que sofre e, algumas vezes, nem isto. Em geral são os pais (ou responsáveis) que procuram o auxílio. Em grande parte encaminhados por outro profissional da área de saúde mental, ou então pela escola. Isto porque muitas vezes os pais não se dão conta das condições emocionais desfavoráveis de seus filhos, e nem que existem problemas. Outras vezes os pais percebem claramente que estão vivendo uma situação emocional extremamente desconfortável e dolorosa, mas não sabem o que fazer, nem como agir para modificar aquela situação. Sentem-se muitas vezes angustiados, deprimidos, e desvalorizados enquanto pais. Sofrem, com o sofrimento dos filhos.  Nestas ocasiões pode acontecer que um profissional (médico, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, professor, orientador educacional, etc.), ao lidar diretamente com a criança, tenha seu olhar sensibilizado pelo sofrimento de seu pequeno paciente. Este profissional pode procurar mostrar aos pais a necessidade de uma avaliação psicológica mais profunda. E assim ele procura encaminhar os pais para um psicólogo, que vai então realizar o psicodiagnóstico, para verificar que medidas podem e devem ser tomadas.
Neste momento a responsabilidade do psicólogo se impõe, pois muitas vezes atuando fora de uma equipe multidisciplinar, a ele cabe a decisão sobre a orientação terapêutica a ser dada. Por isto é necessário um exame detalhado e aprofundado, o mais completo possível, para que o grupo familiar possa receber informações sobre a melhor estratégia terapêutica, ou seja, aquela baseada em uma correta visão sobre a dinâmica da situação familiar.
Apesar do psicodiagnóstico poder se aplicar a qualquer pessoa, este processo, tal como será apresentado aqui, é desenvolvido normalmente nos limites da faixa etária que se inicia na infância, passa pela puberdade e termina na adolescência. Exceção feita para casos bem particulares, o diagnóstico do adulto não atravessa as mesmas fases. O adulto - mesmo o adulto jovem - ao procurar uma ajuda já não tem dúvidas sobre a necessidade daquele atendimento. Além disto, diferente da criança, ele verbaliza bem suas angústias e aflições, além de ter um melhor juízo crítico para enfatizar, em seu relato ao terapeuta, aqueles acontecimentos que julga serem importantes na instalação de seu sintoma.[CG1] [5]
Então, o que vem a ser esta avaliação da qual estamos falando? Como Maria Luiza O’Campo (1978) mostra tão bem em seu livro O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas, o psicodiagnóstico é um processo marcado por um contrato de duração temporária, contrato este que se faz entre o paciente (indivíduo adulto, grupo familiar, pais e criança, casal, etc.) e o psicólogo, onde o paciente pede ajuda para um problema determinado, e onde o psicólogo se compromete a dar, uma vez que possa tomar conhecimento da dinâmica daquele paciente em suas interações com seu meio. Para isto o psicólogo vai lançar mão de vários recursos: entrevistas de anamnese, contato com profissionais responsáveis, observação livre da criança dentro da própria situação familiar, entrevistas de sessão livre, entrevistas para a aplicação de testes, entrevistas de devolução, entrevistas de orientação final.
Esse processo tem duração variável, pois o número de sessões depende de cada caso a ser examinado. No entanto podemos imaginar a média das sessões varia entre seis a oito sessões, realizadas em um período que poderá durar de uma semana a um mês, dependendo do caso e do profissional. Existem atendimentos que são muito simples. Desde o início já se pode ter uma noção muito clara do tipo de comprometimento do paciente. Nestes casos algumas poucas entrevistas são suficientes para que a hipótese diagnóstica possa ser verificada. Porém existem casos de difícil compreensão; casos em que o diagnóstico diferencial é bem mais complicado. Por exemplo, nem sempre é fácil diferenciar claramente entre uma criança autista e uma outra que apresente deficiência mental. É aqui que a avaliação do psicólogo se torna tremendamente importante visto que muitas vezes o destino do paciente vai depender  inteiramente de sua opinião.
Entre as etapas do processo, escolhemos neste texto apreciar sucintamente a Entrevista de Devolução.

Uma vez que a aplicação dos testes psicológicos chega ao fim, o processo do psicodiagnóstico está praticamente encerrado. As conclusões diagnósticas devem ser trasmitidas a todos os envolvidos no processo de diagnóstico, e sobretudo devem ser conhecidas pela  criança ou pelo adolescente. Os motivos desta comunicação final já foram  muito bem analisados por  Maria Luiza O’Campo e cols. (1988). A entrevista de resultados (ou de devolução) é um dos momentos mais importantes de todo este processo. É da aceitação e de uma boa elaboração das comunicações,  por parte de todos, que vai depender muitas vezes o sucesso ou o fracasso de um possível atendimento psicoterapêutico.[6]
O fato desta etapa estar colocada no final do processo não significa que no decorrer do processo de psicodiagnóstico, alguns dados não possam ir sendo, aos poucos, discutidos com as pessoas. Para nós, a interatividade e a flexibilidade constituem características fundamentais do papel clínico. Porém esta fase da discussão dos resultados permite que o psicólogo possa realizar uma intervenção mais focalizada sobre as comunicações diagnósticas, e sobre as possíveis orientações que podem vir a ser desenvolvidas. Para tanto o psicólogo vai procurar discutir com todos os envolvidos, não apenas o resultado de suas observações, como também sua opinião quanto ao que deverá ser feito. As orientações a serem dadas são diversas, e vão depender do diagnóstico de cada caso. Elas variam desde psicoterapia para o paciente (individual ou de grupo), ou indicação de tratamento para um ou para ambos os pais, até recomendações de ordem pedagógica para a escola da criança ou do adolecente.
Somente através da visão panorâmica que o processo psicodiagnóstico traz para o psicólogo é que ele poderá chegar a propor medidas eficazes para solucionar o problema não só da criança, mas de todo o campo dentro do qual ela está inserida (social, familiar, escolar, institucional, etc.). Como já foi dito, as indicações variam: terapia para a criança ou para seus pais, psicoterapia de casal, encaminhamento para um neurologista em casos de suspeita de comprometimento orgânico ou para outros tratamentos (fonoaudiologia, psicomotricidade, etc), encaminhamento para atividades de socialização ou de expressão artística, orientação para os professores, pais, familiares ou outros profissionais que estejam precisando de auxílio no lidar com aquela criança ou adolescente.
No entanto, a entrevista de resultados é uma etapa delicada, que exige muita sensibilidade e muita técnica por parte do psicólogo. O´Campo e cols. (1988) lembram muito bem que esta comunicação precisa ser feita de forma a permitir que ela seja elaborada pelas pessoas com quem o psicólogo está discutindo a sua opinião. Mesmo que algumas observações já tenham sido dosificadas, ao serem discutidas em momentos anteriores, elas precisam ser recolocadas neste instante, de forma integrada. Algumas vezes a entrevista de devolução precisa se desdobrar em contatos posteriores.  Nem sempre é fácil ouvir o que o psicólogo tem a dizer. E isto se aplica não apenas aos pais, como também à escola ou a outros profissionais que estejam tratando da criança ou do adolescente, e que estejam recebendo a devolução. Às vezes é necessário dar tempo às pessoas, para que elas possam diminuir sua ansiedade, aceitando finalmente a indicação que está sendo dada. Nestes casos, o trabalho de desmontagem das resistências pode exigir que o processo de devolução se desdobre em várias entrevistas. É muito importante que todos, e entre eles especialmente os pais, compreendam bem a situação da criança, e que elaborem adequadamente as possíveis orientações, e as consequências futuras de seus atos atuais. É importante que a escola entenda a necessidade de modificar determinadas estratégias de ensino ou disciplinas. É importante que outros profissionais compreendam a necessidade de um atendimento multidisciplinar, realizado em equipe.
Finalmente nunca é demais lembrar que todo este processo final precisa ser interativo. Isto significa que também o psicólogo necessita processar e elaborar os novos dados e informações que vão surgindo, até a ponto de ampliar ou retificar suas recomendações. Não adianta estabelecer metas ideais cuja realização seja impossível.







[1] A personalidade apresenta aspectos estruturais mais estáveis, porém submetidos a uma constante modificação. Por vezes tais mudanças podem até ser imperceptíveis. Porém quem faz o diagnóstico precisa ter clara esta noção, para poder realizar intervenções modificadoras junto não apenas às famílias, como também às instituições que vão ser cenários para algumas atividades relacionadas à criança e ao adolescente.

[2] Infelizmente o espaço não é suficiente para uma ampla reflexão sobre tais problemas. Enquanto deixamos o aprofundamento de alguns assuntos para outra ocasião, remetemos o leitor ao texto de Roberto Moraes Salazar, O Laudo Psicológico e a Classe Social.

[3]  “O discurso que se processa engloba os pais, a criança, o analista: é um discurso coletivo que se constitui em torno do sintoma apresentado pela criança”. Maud Mannoni,  A criança, sua "doença” e os outros, p. 9.

[4] Op. cit., p.  9.
[5] Não estamos desconhecendo aqui as causas inconscientes, mas apenas reconhecendo a importância de situações e eventos traumáticos que podem ser conscientes.



   
[6]  Lembramos existir uma diferença de objetivos entre a entrevista de resultados e a entrevista de contrato; esta última focaliza as condições que se prendem ao atendimento psicoterapêutico. Naqueles casos em que o atendimento psicoterapêutivo vai ser assumido pelo mesmo profissional que realizou a avaliação diagnóstica, e quando a devolução é bem aceita, podem ocorrer superposição de objetivos nas entrevistas finais. 

Referências Bibliográficas

ABERASTURY, ARMINDA - El psicoanalisis de niños y sus aplicaciones. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1972.
  • ABERASTURY, ARMINDA - Teoría y Técnica en Psicoanálisis de Niños. Buenos Aires: Paidós - 2a. ed., 1969
  • CUNHA, JUREMA ALCIDES, NUNES, MARIA LUCIA TIELLET, WERLANG, BLANCA GUEVARA - As Respostas ao CAT-A na faixa pré-escolar - Porto Alegre, Psico, v. 22, no. 2 , p.89-103, Jul/Dez 1991.
  • GRINBERG, REBECA; FAIGON, DELIA e SOIFER, RAQUEL - Conceptos Actuales sobre el análisis de niños en el grupo argentino. Apostila do Curso da Professora Arminda Aberastury, organizado pelo Dr. Fábio Leite Lobo, e vinculada à Clínica Psicoterápica do Rio de Janeiro.
  • HAMMER, EMANUEL F. - Tests Proyectivos Gráficos. Editorial Paidós, Buenos Aires, 1969.
  • KOPPITZ, ELIZABETH MUNSTENBERGER - Psychological Evaluation of Childre's Human Figure Drawings - Grune & Stratton, Inc., l968
  • LAWRENCE EDWIN ABT e BELLAK, LEOPOLD - Psicologia Proyectiva,
  • MACHOVER, KAREN - Proyección de la personalidad en el dibujo de la figura humana. Ediciones Cultural - Colombia - l974
  • O’CAMPPO, MARIA LUISA SIQUIER DE, ARZENO, M.E.G., PICCOLO, ELSA GRASSANO y colab. - Las Técnicas Proyectivas y el Proceso Psicodiagnóstico. Buenos Aires: Editorial Nueva Visión - 4a. ed., 1978.
  • O'CAMPO, MARIA LUIZA e colaboradores - O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas - Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1978.
  • NEJAMKIS, JULIO - Los estilos del dibujo en el psicoanalisis de niños - Alex Editor, 1977
  • PICHON-RIVIÈRE, ENRIQUE - Teoria do Vínculo. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1986.
  • RAPAPORT, DAVID - Tests de Diagnostico Psicologico - Editorial Paidos, Buenos Aires, 1965
  • SALAZAR, ROBERTO MORAES - O Laudo Psicológico e a Classe Especial - Psicologia, Ciência e Profissão, Ano 16, no. 3, págs. 4-11, 1996 - Revista do Conselho Federal de Psicologia.

 

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