quinta-feira, 9 de julho de 2009

Sessão Livre como Meio de Observação

por Elza Rocha Pinto

Observação da Criança em seu Meio Ambiente
No Brasil não temos ainda, vinculado à clínica, a figura de um psicólogo social, como em algumas clínicas, na Inglaterra. Suas funções são algo semelhantes à do nosso assistente social: avaliar as condições sociais bem como a dinâmica do grupo familiar. O psicólogo pode desenvolver estas observações nas vizinhanças e na própria residência familiar. A visita do psicólogo ao lar onde o paciente vive pode trazer informações valiosas sobre as interações do grupo familiar, assim como sobre o próprio espaço físico e seus significados.
Esta compreensão do espaço, tal como nos revela Gisela Pankow (1988) é muito importante.[1] A etologia, pelo seu lado, vem mostrando a importância dos espaços para o mundo animal, onde a marcação do território é um fenômeno comum. Conforme M. Augras (1978) nos lembra:
O espaço próprio, sendo extensão do corpo, não pode ser invadido. Constitui condição imprescindível de sobrevivência, tal como os limites corporais. É, textualmente, o espaço vital, cuja extensão deve ser mantida, custe o que custar. Toda a história do mundo é escrita em termos de manutenção e extensão do território, e em nenhum outro campo a transgressão dos limites acarreta mais dores e sofrimentos. (...) Proteção e extensão do corpo, a casa é por excelência o território próprio. Estende-se em todas as direções da espacialidade: em cima, por baixo, ao lado, em frente, atrás. Nela, o homem é realmente o centro do espaço. [2]
A dinâmica do espaço, tal como ele é vivenciado pelos membros da família, pode trazer informações adicionais e complementares, enriquecendo a compreensão sobre determinados estados emocionais, assim como sobre os hábitos e atitudes de uma pessoa. Além disto o conhecimento do grupo familiar se torna muito mais concreto para o profissional que vai lidar com o caso. Esta prática já nos foi útil em ocasiões passadas;[3]  e achamos que poderá ser indicada na avaliação de alguns casos.

Sessão Livre
 Em contrapartida, torna-se muito útil, também, a observação livre da criança dentro de um setting mais controlado e homogêneo. Mira y Lopez diz que "...os jogos infantis, longe de serem uma atividade secundária, optativa e susceptível de controle externo, são uma atividade essencial, necessária e básica para o normal desenvolvimento da personalidade da criança".[4] A sala de brinquedo, da mesma forma como o material da caixa da sessão livre, fornece uma situação padronizada, e bastante neutra, para que a criança possa expressar, através do brinquedo, seus conflitos, fantasias, angústias, temores e expectativas. Os primeiros analistas infantis viram a tremenda importância desta linguagem lúdica. Freud pelo menos em dois momentos dentro de sua obra já havia apontado a trilha desta linguagem.[5] Continuando o trabalho freudiano, Melanie Klein (1964) teve a ousadia de comparar a seqüência do brincar com as associações livres que o adulto produzia. Ao fazer isto conseguiu chamar atenção de todos para a significação do brincar, e abriu as portas da psicanálise para as crianças. A partir daí o brinquedo passou a ser a via principal de acesso às fantasias e conflitos inconscientes da criança. Na esteira dos psicanalistas infantis a hora de jogo diagnóstica passou a ter uma vida própria no processo de avaliação. Lembramos mais uma vez Mira y Lopez:

A seriação dos motivos de jogo, modificação do ânimo e experiência, tarefa construtiva ou destrutiva das atividades lúdicas e, sobretudo, o grande simbolismo dos "temas" (reveladores diretos de conflitos, temores e desejos básicos) colocaram esta exploração psicolúdica em primeiro plano entre as técnicas da moderna Psicologia Evolutiva (dinâmica, global e personalista).[6] 

Nesta hora de jogo diagnóstica, a criança deve ficar livre para determinar a direção da sessão, realizando o que bem entender: poderá brincar, desenhar ou conversar. "Ao oferecer à criança a possibilidade de brincar em um contexto particular, com um enquadramento dado que inclui espaço, tempo, explicitação de papéis e finalidade, cria-se um campo que será estruturado, basicamente, em função das variáveis internas de sua personalidade."[7] Constitui-se assim uma excelente oportunidade para que o psicólogo possa testar as hipóteses diagnósticas mantidas até então. Esta observação direta pode contribuir para confirmar ou não a impressão diagnóstica causada pelo relato dos pais, e pelos contatos com profissionais diretamente envolvidos com a criança; pode estabelecer a precisão de um diagnóstico diferencial; e pode ajudar o psicólogo a decidir sobre a necessidade ou a urgência de uma terapia. Rebeca Grinberg, Delia Faigon e Raquel Soifer (1968), realizaram uma pesquisa entre  psicanalistas argentinos de crianças e adolescentes, onde confirmam este ponto de vista:

Aqueles que tomam sistematicamente a hora de jogo, fundamentaram tal prática na necessidade de verificar a impressão diagnóstica obtida durante a entrevista com os pais, ter um contato direto com a criança e poder decidir se se sentem contratransferencialmente dispostos a tratá-la. Ou seja, emprestam a esta sessão uma categoria semelhante à entrevista com o adulto. Contudo, deixam de lado esta norma naqueles casos em que a criança já vem diagnosticada previamente por uma pessoa cuja experiência respeitam. [8]

Semelhante às primeiras entrevistas com os pais, esta fase nem sempre se esgota em uma única entrevista; podem ser necessárias a realização de duas ou mais sessões livres, conforme a necessidade do atendimento em questão.
A partir deste momento, alguns processos psicodiagnósticos podem ser encerrados. E  então o psicólogo passará para a fase da  devolução de suas observações. Isto se dá quando o caso é muito claro, quando as condições dinâmicas são transparentes, e sempre quando o psicólogo consiga formar uma visão adequada sobre o encaminhamento. Só assim ele poderá indicar uma estratégia de atendimento, sem ter necessidade de recorrer à etapa seguinte. Porém nem sempre isto acontece. Muitas vezes o diagnóstico diferencial não fica claro, e precisamos realizar outras observações. Para obter mais informações o psicólogo poderá, então, recorrer a outras técnicas, específicas de sua profissão: os testes psicológicos.


[1] Também para Cassirer, quando afirma que "o lugar é uma parte do ser". Citado por Monique Augras, no capítulo "O Espaço", em O Ser da Compreensão, p. 38.
[2] Monique Augras, O Ser da Compreensão - Fenomenologia da Situação de Psicodiagnóstico, p. 40/41.
[3]  Por ocasião de nosso trabalho como supervisora do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Santa Úrsula, no período entre 1976 e 1989, tivemos oportunidade de desenvolver este tipo de observação em diversos casos atendidos por nossas equipes de psicoterapia infanto-juvenil.
[4]  Emilio Mira y Lopez  - Psicologia da Vida Moderna - A vida e o Psicólogo, p. 10.
[5]  Em l909 Freud publica o historial clínico onde ao analisar a fobia de um menino de cinco anos de idade leva em conta o claro significado de algumas brincadeiras de Hans. Posteriormente, em 1920, em Além do Princípio do Prazer, ao estudar a compulsão à repetição, analisa a brincadeira de uma criança de um ano e meio; afirma que o brinquedo repetido foi o meio usado pela criança para elaborar sua frustração diante do afastamento da mãe, renunciando à satisfação da pulsão. Com isto apontava o caminho que levou ao rápido desenvolvimento da psicanálise para crianças.
[6]  Emilio Mira y Lopez - Psicologia Evolutiva. Rio de Janeiro: Editora Científica, s/d, p. 20.
[7]  Os critérios  para a avaliação do brincar, segundo uma perspectiva psicanalítica, podem ser encontrados na excelente exposição desenvolvida por um grupo de psicanalistas infantis, no capítulo VII do livro de Maria Luiza O' Campo e col., de onde tiramos o trecho citado acima. As Técnicas Projetivas e o Processo do Psicodiagnóstico, p. 169.
[8]  Rebeca V. de Grinberg, Delia Faigon e Raquel Soifer - Conceptos Actuales sobre el Análisis de Niños en el Grupo Argentino, p. 6.

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